Lorena escrita por slytherina


Capítulo 5
Neve


Notas iniciais do capítulo

"Mas em Nárnia é sempre inverno, e há muito tempo. Aliás, vamos apanhar um resfriado se ficarmos aqui conversando debaixo da neve. Filha de Eva das terras longínquas de Sala Vazia, onde reina o verão eterno da bela cidade de Guarda-Roupa, que tal se a gente tomasse uma xícara de chá?" As crônicas de Nárnia por C.S.Lewis



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A neve caía pesada sobre aquele continente, naquela noite. Não havia animais ao ar livre, ou mesmo moradores sem teto nas ruas das principais cidades. Estava frio demais até mesmo para os habitantes mais acostumados à neve e mais bem preparados para enfrentar baixas temperaturas. Até a lua estava encoberta pelo manto branco, que impedia a passagem de raios solares durante o dia.


Todos os habitantes permaneciam em seus lares, com os estoques de alimentos cheios, a dispensa abarrotada com lenha para a lareira, as janelas cerradas, e todos os cômodos fechados, para preservar o calor. Mesmo dentro de casa vestiam várias camadas de roupa, além de meias e echarpes. A maioria dormia quase que o dia inteiro, por conta do frio e para não gastarem suas reservas de alimentos. Todos rezavam à noite para o inverno acabar logo.


Encontramos em um prédio de apartamentos, na parte central de uma grande cidade, uma jovem adulta vestindo jeans e pulover, além de meias grossas e botas. Ela usava o longo cabelo castanho separado em duas longas tranças que lhe davam uma aparência antiquada, como se vinda de um passado distante. Seus olhos castanho-esverdeados pareciam tristes mas compenetrados, enquanto manuseava seu notebook.


Lorena fez login no Facebook. Havia diversas notícias sobre a situação mundial na página inicial. Diversas páginas jornalísticas davam a mesma notícia com a mesma foto de satélite, mostrando a massa de ar polar sobre os continentes acima da linha do equador. E abaixo do equador a situação não estava melhor. Tufões, tornados e alagações eram previstas para os próximos meses.


Por que isso acontecia? Ninguém sabia ao certo. A verdade é que o clima sofrera uma drástica mudança, e o que já era ruim ficara insuportável. Estavam no início do inverno e ainda teriam mais três meses de neve pela frente. Seu país estava acostumado com invernos rigorosos, mas aquilo já era um martírio. Ninguém sobreviveria por muito tempo. Alguns falavam em "fim do mundo", como o conhecemos.


Ela procurou mensagens mais amenas nos grupos que frequentava no facebook. Um a um, seus companheiros de grupo mandaram mensagens com gifs animados, fazendo troça das mudanças climáticas. Alguns mandaram gifs de corações vermelhos pulsantes, enquanto outros mandaram ramalhetes de flores virtuais.


Lorena publicou em sua página no facebook: "Entediada e com frio. Gostaria que parasse de nevar. Sinto falta de caminhar ao ar livre e de observar os passarinhos nas árvores. Ainda ano passado nadei no lago, perto de casa. Agora só posso caminhar sobre ele. Não gosto desse clima. Está frio demais. Alguém aí mora abaixo do Equador?"


Esperou um minuto e depois desistiu de esperar resposta. Procurou por páginas de piadas e humor. Encontrou uma página de amantes de gatos, e ficou vendo repetidamente um video de gatinhos brincando. Ela riu da primeira vez, mas apenas ficou olhando sem realmente se atentar a detalhes, nas outras vezes.


Ela não era popular, tinha que admitir. Tampouco se importava com isso. Acostumara-se a ser sozinha e só depender de si mesma. Não precisava de muletas emocionais que atendessem pelo nome de "melhor amigo", "namorado" ou "noivo". É claro, esperava casar-se um dia, mas por amor, e não apenas para não se sentir solitária.


Sentiu fome. Procurou um ramen no armário sobre a pia e o despejou em uma tigela com água. Ligou o microondas e pôs a tigela lá. Retirou uma caixa de suco da geladeira sob a pia e encheu um copo. Depois devorou o macarrãozinho. A fome foi enganada mais uma vez. Atualmente, seu estoque de suprimentos estava pela metade, e o sistema de entregas de comida estava desativado. Somente os bombeiros e os paramédicos saíam nas ruas a 60 graus negativos. Nem a polícia tinha disposição para isso.


Mantinha sua kitenete sempre limpa e arrumada. Era escrupulosa com esses detalhes, talvez por força do hábito, por ter sido criada em instituições espartanas com disciplina rígida. Mesmo depois que passara a ser independente e considerada adulta o suficiente para morar sozinha, ela não conseguira se desvencilhar do hábito de fazer tudo corretamente, como quem espera pela hora da revista, onde o menor erro seria severamente criticado.


Lorena voltou ao notebook. Ninguém havia ainda respondido a sua postagem. Decidiu passar para o Feed de notícias. Procurou por notícias alegres, mas isso era quase inexistente com a avalanche de notícias sobre o clima. Falavam em nova era glacial. Decidiu comentar alguma daquelas notícias, nem que fosse para falar besteiras ou atestar o óbvio.


Todos os usuários pareciam ter tido a mesma ideia. Ela ficou sem assunto. Às vezes, as redes sociais eram extremamente chatas. Desconectou-se. Talvez se ela se exercitasse um pouquinho, aquela sensação de vazio e inutilidade se dissipasse, e sua solidão poderia ser suportável. Puxou a esteira de corridas de seu encaixe no armário e passou a andar. Não cometeria o mesmo erro da outra vez, em que correra, perdera o equilíbrio e caíra, sem ter ninguém que a ajudasse.


Como chegara até essa situação? Era órfã sem parentes vivos. Fora criada em orfanato municipal. Ao atingir 18 anos lhe conseguiram um emprego e até este kitenete. O estado era generoso, mas ela tinha que fazer sua parte e comparecer ao emprego de assistente em uma gráfica. A mudança climática veio para quebrar o equilíbrio de sua monótona existência.


Graças à onda de frio nunca antes vista, ela não podia mais ir trabalhar. Os alimentos escassearam nos supermercados, e somente a energia elétrica ainda funcionava, mantendo-a viva, pois lhe fornecia o contato com o mundo exterior através de redes sociais, e o aquecedor elétrico funcionando. Se acaso o estado quisesse cortar custos e privá-la de energia elétrica, ela morreria em questão de horas, congelada.


Este pensamento lhe dava calafrios. Ela tinha um plano em mente, para escapar da morte certa. Se acaso ficasse sem energia, pegaria uma faca e se cortaria, para chamar os paramédicos, e ser levada para um hospital. Lá ela teria alimento, calor e cuidados. E o mais importante, poderia conversar com outras pessoas de carne e osso.


Esta era uma ideia assustadora, pois se até os paramédicos deixassem de sair nas ruas, ela morreria mais rapidamente, graças ao ferimento. Queira Deus isso não fosse preciso. Por enquanto ela estava sobrevivendo em seu casulo. Protegida do frio, embora solitária e faminta. De certo modo esse era o que se poderia chamar de "fim do mundo".


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