Lorena escrita por slytherina


Capítulo 10
Feijões


Notas iniciais do capítulo

"Eis o seu CASTIGO. Eu lhe concedo uma DÁDIVA. Em troca dos anos de HOSPITALIDADE ... você ganhará ... ETERNO DESPERTAR!" Sandman, o mestre dos sonhos por Gaiman, Keith e Dringenberg.



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Lorena, a menina de nove anos, dispôs suas barbies nas cadeirinhas de plástico. A seguir colocou a leiteira e a chaleira no centro da mesinha, junto com as xicarazinhas. E então seu maior orgulho, um pratinho de plástico com feijões. Era o mais parecido que conseguiu de bolinhos de chocolate, e ela não iria mesmo comê-los. Ela sorriu para as bonecas, enquanto servia o chá fantasioso nas xicarazinhas de plástico e lhes oferecia a imaginariamente deliciosa iguaria.


– Você deveria comer os feijões, Lorena. Eles têm proteínas que são importantes para seu desenvolvimento. - Disse a boneca Emmy.


– Por que está falando como minha vovozinha? - Lorena perguntou.


– Ela tem razão, sabia? Não é porque é sem sabor que um alimento não é nutritivo, menina. - Falou a boneca Sissy.


– Nutritivo? O que é isso? - Perguntou Lorena.


– Significa que um alimento ajuda seu corpo a crescer e ficar forte. Os doces por outro lado, apenas te deixam gorda e com acne, e você não vai querer ser uma adolescente desengonçada, não é, Lorena. - Disse a boneca Gigi.


– Hein? - Perguntou Lorena.


– Só estamos falando isso para o seu bem, querida. Afinal os alimentos constroem o corpo e fortificam a mente. Isso é muito importante durante o crescimento.


– Notamos que você só come besteiras que irão estragar seus dentes e lhe dar cáries. E ninguém quer ter um sorriso feio, além é claro de uma baita dor de dente.


– Mesmo sendo apenas de faz de conta, isso cria péssimos hábitos. Você deve se policiar e passar a comer mais vegetais, como chuchu e beringela. Além, é claro, de produtos orgânicos.


– Calem a boca! Calem a boca! - Lorena colocou as mãos nos ouvidos para não ouvir mais as bonecas, enquanto fechava os olhos bem apertados.


Quando não ouviu mais nada, abriu os olhos novamente, temerosa de ouvir coisas estranhas proferidas por suas bonequinhas. Elas continuavam sendo suas bonecas barbies, com corpo plastificado, olhos pintados a tinta, e sorrisos perenes no rosto. Os feijões continuavam intocados. Não havia mais ninguém no quarto com ela.


Ela nunca antes tinha tido uma percepção aguda de seu quarto, como agora. As paredes nuas, a parca mobília, a grande janela envidraçada, os poucos brinquedos, a pequena televisão. Ela estava sozinha, sem amigos, sem outros parentes. Poderia ir para aquele outro quarto, da outra menina, que era tão luxuoso e cheio de televisões, mas ela não sabia como, pois aquele era um evento aleatório, que não dependia da sua vontade. Estava irremediavelmente sozinha e presa naquele quarto, com bonecas de plástico. O pânico veio crescendo devagarinho, e antes que começasse a gritar por sua avó, resolveu procurá-la. Saiu do quarto e foi para a cozinha.


Sua vovozinha estava na estreita cozinha de seu apartamento, cuidando de uma gaiola de passarinho. Lorena sentiu como se o mundo tivesse perdido um elemento importante naquele momento, como se uma peça de puzzle estivesse faltando, para completar a figura inteira. Ou talvez fosse justamente o contrário?


Sua avó estava alimentando um sabiá amarelo, e conversava com ele imitando-lhe o canto.


– Piu, piu, piu, piu! Já conhece minha netinha, pequeno pipiuzinho? É esta menininha aí parada. Ela não é linda? Nós a chamamos de Lorena.


Subitamente, um gato malhado apareceu por detrás das cadeiras da mesa. Ele tinha o rosto bicolor: metade branco e metade negro, como o resto de seu corpo, com as bochechas arriadas e um olhar preguiçoso. Lorena sentiu o ar ficar preso em sua garganta. Não conseguia falar nada e sabia que em breve sufocaria, pois não conseguia respirar também.


– Querida, você está se sentindo bem? - A vovó perguntou. - O gato lhe assustou, meu amor? Oh, esse gato malvado vive assustando meu pobre pipiuzinho. Xô, gato danado!


O mundo escureceu diante dela, como uma TV que é desligada. Lorena desmaiou.


Ao acordar estava em sua caminha. Suas barbies continuavam na mesinha, em eterna adoração aos nutritivos feijões. Sua avó aproximou-se de sua cama, pois estivera próxima à janela, admirando a paisagem. Ela continuava se parecendo com a vovó do desenho animado. Graças a Deus tinha deixado PiuPiu e Frajola na cozinha.


– Você está melhor querida? Deveria se alimentar melhor. São essas comidinhas de brincadeira que você acredita estar comendo, mas não se preocupe, farei uma saborosa sopa de feijões para você. Aliás, suas bonecas parecem apreciar feijões muito bem. - A avó sorriu. - Quer que ligue a TV, querida? Deve estar passando algum desenho animado.


A avó ligou a pequena TV que ficava próxima à caminha de Lorena. Estava no horário das propagandas, com meninas brincando com bonecas rechonchudas, que mamavam em mamadeiras de brinquedo. Lorena se distraiu olhando para isso, que nem percebeu a avó saindo do quarto.


Chuviscos apareceram na imagem, e logo a TV perdeu a sintonia fina, com a fala da menina ficando entrecortada e arrastada. A imagem virou um grande borrão cinza, que subia sem parar, como se um porquinho da índia estivesse correndo sobre a tela da televisão. Lorena ficou absorta naquelas imagens, sem conseguir desviar o olhar.


Ela percebeu com o canto do olho, quando suas bonecas se levantaram das cadeirinhas e se aproximaram de sua caminha. E uma delas trazia o detestável pratinho com feijões. Quando elas lhe dirigiram a palavra foi um choque.


– Coma os feijões, Lorena. Eles lhe farão sentir melhor. E eles são reais.


Lorena gritou com toda a força de seus pulmões.


Longe dali, outra Lorena muito mais velha acordou de seu pesadelo, gritando e esperneando, quase caindo de seu leito de hospital. Foram preciso inúmeros auxiliares de enfermagem, jovens e fortes, para segurá-la, que inclusive tiveram que pôr faixas de contenção. Logo mais, uma enfermeira robusta, de meia-idade, trouxe um sedativo que foi aplicado na alquebrada anciã.


– Podem retirar a contenção agora. Ela não dará trabalho por pelo menos doze horas. - Falou a enfermeira.


Os auxiliares retiraram as faixas que deixaram marcas nos pulsos da pele frágil e encarquilhada da velha mulher. Seus olhos vidrados, de um verde esmaecido, ficaram fitando o vazio com uma expressão de terror, até que lentamente se fecharam.


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