Pecado da Ganância escrita por Ikarus


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

faz tanto tempo que eu não escrevo socorro



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Seu nome era Ban e seu pecado foi querer demais o que não tinha. No livro sagrado do Cristianismo, consta o nome “Ganância”; e hoje, ele responde por esse substantivo e por um animal, a raposa.

Mesmo que a Bíblia diga que todo homem nasce pecador pelo pecado original de Adão e Eva, há quem acredite no contrário. Há quem se torne pecador. Todos nós nos tornamos pecadores em algum ponto.

Você se torna ganancioso. O apego às coisas terrenas, riquezas, glória, status… Isso tudo vem de alguém que nunca teve nada. Uma criatura que rasteja com os vermes desde sua mais tenra idade não poderia proteger-se de sua própria natureza humana. Talvez não nasçamos pecadores, mas com certeza incompletos. Qual é a razão de uma vida? Qual é o significado da permanência de nossas consciências na existência? Somos incompletos, de fato. Somos vazios.

E até que esse vazio encontre um preenchimento, há a busca por qualquer coisa que simule a completidão. Fútil, na maioria das vezes. Então, o menino pecou pela primeira vez. E gostou. Pecou uma segunda, terceira, quarta, quinta, décima, centésima, milésima vez. Seria esse seu destino? Uma vida humana é tão curta para decidirmos nossa direção… Curta demais para podermos preencher esse vazio.

Mas o pecado já estava ali. Ban, o bandido, apenas queria. O quê, não sabia. Tinha lá seus vinte e tantos anos e escalava a grande árvore da Floresta do Rei Fada, local que abrigava a Fonte da Juventude. Sabia que era protegida por uma santa, entretanto santa nenhuma seria capaz contra sua velocidade e sua enorme ganância… certo?

Enganava-se. Escalou a árvore, encontrou a fonte e uma pequena coisinha, uma menininha vestida de branco. Sem perder tempo, tentou obter o cálice cujo líquido fluia para uma fonte, que sustentava a floresta. A garota bem que tentou impedi-lo com súplicas, pedidos jeitosos, mas apenas o pulso de vento ao seu comando foi capaz de pará-lo. Todavia, maior que a força do sopro do ar era a ganância de Ban.

Subiu novamente para ser soprado para longe. E de novo. E de novo. E mais uma vez. Ele não poderia fazer isso para sempre. Por que a floresta o protegia em todas as suas quedas? Aliás, por que a floresta permitiu a entrada desse estranho humano em primeiro lugar?

Foi quando avisou-o de que a ausência da Fonte secaria a floresta e a destruiria que ela pôde ler sua mente e seu coração. Eram puros como o branco de seu vestido; genuínos como o suspiro de derrota que o bandido soltou. Mas mesmo assim, ele não foi embora. Não, ele não ficaria para roubar a Fonte por suas costas, ficaria?

Ela decidiu acreditar no julgamento da floresta. Queria acreditar na bondade do ladrão. Afinal, era um dos poucos contatos que tivera dentro daqueles setecentos anos como guardiã e cem desde a última vez em que viu alguém. Apesar de humano, Ban não era como os outros, que colocavam seus interesses pessoais acima do bem da floresta e do povo dali.

E por que ele não queria ir? Para onde iria, Bandido Ban? Lugar nenhum, não é? Então por que não prolongar um pouco mais sua estadia ali? Além do mais… sentia que não estava ali pela Fonte da Juventude apenas. Foi como um chamado, como se alguém pedisse para que se embrenhasse na floresta. Um sussurro. “Venha me ver”.

Lá ele ficou por sete dias. “Sete dias que enterraram setecentos anos de solidão”. A fada Elaine nunca se divertira tanto em tão pouco tempo. Então era isso que era viver? Algumas pessoas se contentam com tão pouco. Uma conversa, uma piadinha, uma troca de olhares. Sob as folhas de almoca da copa da grande árvore, nascia um sentimentozinho nos corações de uma fada e um humano.

Uma afeição.

Em setecentos anos, ninguém se importara em saber como estava a solitária princesa das fadas. Em vinte e seis anos, ninguém se importara em saber como era o homem chamado Ban.

E o que ele queria agora? Não era mais um gole da Fonte. Não era mais a vida eterna. Apenas mais daqueles sete dias compartilhando histórias sobre cervejas com Elaine. Não… Queria Elaine para si. Tomá-la nos braços e carregá-la para longe dali. Oras, precisava apenas encontrar seu irmão, o Rei desaparecido das fadas e Elaine seria sua!

Só. Isso era tudo que ele queria no momento. E aquilo já lhe era mais preciso do que a sua coleção de rótulos de cerveja ou a vida eterna. Finalmente encontrara o que realmente preenchia aquele vazio.

Mas a vida é tão curta… e o destino, tão cruel. Num milésimo de segundos, o verde das folhas foi substituído pelos tons quentes das chamas; e a brisa suave que soprava do leste tornou-se bafo quente, infernal.

À frente deles, estava o demônio. As labaredas que cuspia feriam o santuário que decorou as memórias daquela semana. Ele tinha de parar o monstro. Tinha de mostrar a ela do que era capaz. Tinha de mostrar a ela seu valor.

Com um movimento de seu bastão articulado, arrancou o coração da besta, que agora batia em sua mão. Até que ela o avisou que os demônios possuem mais de um coração; mas já era tarde demais: Um golpe da criatura dividiu o bandido em dois e esculpiu um buraco perfeito no torso da fada.

Ambos à beira da morte, Elaine utilizou suas últimas forças para entregar a Ban o copo cujo líquido lhe daria a vida eterna. Mas ele recusou. Queria que ela bebesse dele. De sua boca, escorria apenas o sangue; de sua mente, esvaía-se suas últimas palavras: “Beba toda a água no copo. Você deve viver”.

E, assim, aos prantos, ela tomou o líquido em sua boca e ele cerrou seus olhos.

Para abri-los novamente em surpresa ao sentir os lábios dela nos seus e o líquido descendo-lhe a garganta. Não, não era pra ser assim. Ordenava-se que parasse de aceitar o presente, mas sua boca não obedecia. Os lábios, presos um ao outro com necessidade, banhavam-se no néctar da vida eterna, no sangue de humano e de fada. Este seria o único ósculo que o casal compartilharia enquanto vivos. O único contato físico de natureza carinhosa que teriam.

Foi com o sabor da mistura dos dois sangues, da água da Fonte e da amargura da perda que Ban encarou o demônio. Suas feridas fechavam-se como se fosse mágica, mas a dor continuava a latejar. Fosse na pele ou no coração, ainda assim dor nenhuma conseguia ser maior do que a fúria e a coragem sobre-humanas que desafiavam o monstro a uma dança mortal. Golpe atrás de golpe, o bandido punia a vil criatura pelo sofrimento que tomara de ambas as partes do casal recém-formando e recém-partido. Os elos da corrente de sua arma ganiam com a agitação. O homem rugia, voando pelas brasas e ardendo em fúria.

Ao fundo, Elaine abria os olhos, sem saber o que acontecia. Duas silhuetas dançavam contra o fogo. Dois monstros castigavam-se impiedosamente. Um ria, sádico. Outro chorava, louco. Cerrou os olhos.

Não era isso que ele queria. Era querer demais ser feliz ao lado de quem finalmente descobriu ser o significado de sua vida? Era esse o seu pecado? Ser feliz?

As nuvens cinzas caminhavam, anunciando a morte iminente daquela que não bebeu da imortalidade.

Nos braços de Ban, a fada Elaine se despedia.


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