Fábula das Vozes escrita por dovahkiin


Capítulo 5
"Maldita Kynareth"




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O ar dentro da torre era quase frio se comparado com o caos quente que se instaurara no exterior em chamas. Ainda ouvia os gritos, rugidos e sons de coisas sendo destruídas, mas estavam todos abafados por uma boa camada de pedra. Só naquele momento em que se encontrava em um lugar mais calmo e seguro que Leaaha passou a absorver o impacto do que tinha acabado de acontecer, como se o corpo falasse “agora é possível surtar sem ser morta por chamas”.

— Puta que pariu. Puta... Que... Pariu... — Os passos estavam trêmulos e teve que se encostar na parede para não cair, já que as mãos ainda estavam atadas e não conseguia se equilibrar direito. Ignorou completamente os corpos no canto da torre, mesmo que os tivesse visto.

— Tudo bem, irmã? Tem um urinol ali no canto caso queira vomitar com elegância. Não me importo muito se quiser sujar a roupa, também. — Ralof estava tranquilo como se tivesse acabado de sair de uma festa familiar, e não de um ataque monstruoso.

— Eu ‘tô... Bem... — Costumava ser uma pessoa extremamente tagarela, mas os últimos acontecimentos impediam a sua mente de trabalhar daquele jeito alegre e falador. Respirou fundo mais três vezes. Até vomitaria, se tivesse algo além de bile em seu estômago.

Ralof meneou a cabeça positivamente e afastou-se com passos pesados, aproximando-se dos dois corpos caídos no chão. Se morreram durante a batalha contra o monstro ou contra imperiais, não saberia dizer. As palavras fluindo da boca do nórdico eram gentis e calmas, mas Leaaha não as reconheceu. Alguma prece, provavelmente. Quando o fôlego estava recuperado, junto com o equilíbrio, aproximou-se da cena.

— Droga, eu ainda não soltei suas mãos. Desculpe. Vem aqui.

Instintivamente, Leaaha retraiu o corpo ao vê-lo se aproximando com uma navalha nas mãos, mas relaxou segundos depois ao obrigar o corpo a ser racional. Abriu e fechou os dedos diversas vezes, sentindo o sangue voltar a circular decentemente.

— Obrigada, Ralof. Por tudo. — Por mais que tivesse consciência de que tinha deixado tudo o que amava para trás, pra sempre, em momento algum tinha desistido de viver. Não era esse tipo de pessoa.

As mãos dele remexiam o corpo dos stormcloaks mortos e deu apenas um movimento com os ombros, provavelmente indicando algo entre o “deixa pra lá”, o “não foi nada” ou o “estou com dores nas juntas”.

— Não quer trocar essas roupas? — O olhar de julgamento era claro no rosto dele, mas não de uma forma maldosa. Não totalmente, pelo menos.

— Qual o problema com minhas roupas? — Franziu o cenho, sentindo um pouco de irritação devido o seu extremo senso de proteção. Sua mãe quem tinha costurado aquele traje, feito especialmente pensando nas suas atividades dentro das florestas. Era bem ajustada ao corpo, leve e confortável, sem contar que mamãe tinha costurado o desenho do chifre de um cervo, os animais favoritos de Leaaha, nas costas da roupa.

— Está destruída, rasgada e não oferece proteção nenhuma para ataques. — De novo, Ralof falava com a brutalidade dos nórdicos.

Foi só naquele momento que parou melhor para analisar seu estado físico. Estava toda machucada. Disso sabia, pois conseguia sentir. Em momento algum, entretanto, a proteção da sua roupa tinha importado. Agora, reparando com calma, viu que estava toda rasgada. Sentiu os olhos enchendo-se de lágrimas, mas obrigou-se a não ser sentimental. Levantou os olhos para as roupas que Ralof tinha retirado de uma das mortas e ligou de novo a sua parte insensível. Caminhou até a direção dele, puxou a armadura da sua mão e foi para um canto.

— Fique de costas. — Nem se importaria caso ele decidisse não fazer isso. Estava em um estado mental que, se fosse definir em palavras, chamaria de “foda-se”. Puxou as vestes, grunhindo de dor quando elas arranharam nas feridas pelo seu corpo, e ficou um bom tempo observando-as, uma vez fora do corpo. Não iria se despedir dela. Vestiu a armadura Stormcloak da melhor maneira que pode, tentando ajustar para não ficar tão larga em seu corpo (não obteve muito sucesso), e quando finalizou, amarrou a roupa antiga na cintura. — Pronto.

Caso Ralof tivesse algum comentário negativo a fazer sobre as vestes, decidiu mantê-los para ele.

— Sabe usar alguma arma?

— Eu... — Os olhos azuis arregalaram-se com a possibilidade de ter que usar uma arma em alguém. Sabia que o faria, caso o necessário para sobreviver ou defender os outros, mas discutir a possibilidade ali, a sangue frio, era desconfortável. Racional demais para um ato que Leaaha só esperava fazer baseada no instinto. — Eu acho que sei usar um pouco o machado.

— Vai ter de servir. — Pela confiança no tom de voz de Ralof, ele não acreditava que fosse ser necessário ter habilidades de espadachim para sair dali viva. Com tanta facilidade como se tivesse levantado uma folha, o nórdico puxou um machado escondido nas vestes do outro morto e entregou para Leaaha. — Veja se consegue equilibrar na sua mão.

Receosa, levou os dedos ao cabo de madeira como se fosse-lhe oferecido uma cobra peçonhenta. A outra extremidade de metal era pesada e firme, mas Leaaha já sabia que peso esperar e conseguiu segurá-lo sem grandes dificuldades. Balançou-o no ar, insegura, tentando captar o balanço da arma. Novamente, os olhos encheram-se de lágrimas ao pensar no irmão e nas lições feitas por ele. Recebera tudo: proteção, carinho, paciência, cuidados, inteligência... E, no final, só retribuíra com uma coisa: abandono.

A boca foi aberta para avisar que podiam continuar o caminho no exato momento em que passos se aproximaram pelo corredor. Gostaria de dizer que, no momento em que os imperiais irromperam pela grade de metal, brandindo armas, Leaaha gritou de volta e atacou-os com toda a fúria do mundo. Gostaria de dizer, no mínimo, que ela se defendeu com veemência e coragem. Tudo seria melhor do que o que ela realmente fez, algo que resumia a gritar e ficar fugindo dos golpes sem mesmo utilizar o machado. Só percebeu que Ralof tinha abatido um dos dois imperais quando o mesmo começou a atacar o que perseguia Leaaha. A partir desse instante, conseguiu respirar mais tranquilamente, observando o desenrolar da luta.

Os passos de ambos iam e vinham pelo chão, e era fácil notar que Ralof levava a melhor. Maior, mais forte e, ao mesmo tempo, rápido e ágil, aos poucos ia cansando o outro adversário até o momento em que finalizou a luta com um golpe que atravessou o imperial da barriga ao peito. Queria dizer que ficou chocada, mas estava, sinceramente, acostumada com mortos na sua frente até aquele instante.

— Bom trabalho, garota. — O sarcasmo era mais do que evidente na voz de Ralof, mas não parecia estar brabo. Um pouco decepcionado, talvez, mas não passava disso. Devia entender a atual condição de Leaaha. Não era a melhor pessoa para dar uns golpes em uma disputa com as pessoas tão próximas umas das outras.

— O-obrigada. Quis deixar a glória pra você. — Isso poderia ter sido uma ofensa para algumas pessoas, falar sobre a morte de outro alguém como se fosse passível de elogios, mas eram um Stormcloak matando um imperial. Era justiça, aos seus olhos, e Leaaha teve certeza disso ao ver o sorriso animado em seu rosto.

O resto do caminho correu particularmente tranquilo... Por uns 40 segundos. Leaaha perdeu o passo na descida inclinada do terreno e acabou ultrapassando Ralof. Correu por três metros quando chegou ao terreno reto e, graças a uma dor que trucidou seu joelho por estar forçando-o, caiu de bunda no chão. Felizmente, isso evitou que fosse esmagada pelas rochas que caíram a poucos centímetros na sua frente. Antes do caminho fechar-se, através da cortina de fumaça, conseguiu enxergar cerca de quatro silhuetas paradas de pé, afastando-se do desmoronamento.

Leaaha afastou-se das pedras no chão, praticamente engatinhando com a barriga pra cima, até trombar com as pernas de Ralof. Com os olhos vidrados nas rochas, o nórdico segurou-a pelos ombros e a ajudou a se levantar.

— Eram imperais ou Stormcloaks? Conseguiu ver? — A voz de Leaaha aos poucos parecia ficar menos trêmula. Provavelmente estava criando um escudo contra sustos, de tantos que sofrera nas poucas h oras anteriores.

— Não vi. É melhor ficarmos atentos. Consegue andar? O que tens na sua perna? — Abaixou o corpo inteiro para ficar mais próximo ao joelho dela e deu um leve cutucão na região inchada. Doeu, mas apenas o suficiente para ela estremecer. — Hm. Não está quebrado. Vamos.

Ficou tentada a descobrir o que ele faria caso afirmasse que estava sem condições de andar, mas não estava suicida o suficiente para isso. E se Ralof decidisse sacrificá-la? Apenas o ato de deixá-la pra trás já seria uma morte, basicamente. Sendo assim, aceitou as palavras dele e seguiu-o.

Sentia-se com adrenalina demais no corpo para ficar vasculhando potes em busca de comida, mas assim o fez quando Ralof pediu. Puxou uma grande mochila da prateleira e começou a jogar o que achava ali – e que não estava podre – dentro. Repolhos, algumas cenouras, duas maçãs. Sal. E...

— O que é isso? — Os dedos envolviam uma estranha garrafa vermelha, tingidos pelo leve brilho que ela parecia emitir. Girou-a de um lado para o outro. Líquido. Ela continha algum tipo de líquido.

— Argh. Magia. Deixe isso de lado e vamos.

Foi fácil notar certo rancor em suas palavras, e até mesmo poderia supor que Ralof tinha passado dificuldades na vida relacionados ao uso da mágica, mas conhecia os nórdicos. Tinha conhecimento daquele ódio irracional aos elementos místicos de Tamriel. Era um dos inúmeros motivos que eles tinham para odiar os Thalmor. Com um suspiro, Leaaha deu de ombros e começou a vasculhar os outros itens das prateleiras. Esperou tempo o suficiente até Ralof ir para outro canto atrás de suprimentos para, então, surrupiar o frasco e jogá-lo dentro da mochila. Tinha, afinal, sangue imperial em suas veias, e nunca apresentou temor da magia. Podia não ser como o irmão – um grande amante dela -, mas tinha lá suas curiosidades.

O resto do caminho seguiu com uma tranquilidade exagerada. Isso, é claro, por aproximadamente três minutos e vinte segundos, quando o terreno se abaixou novamente e o som de conflito se aproximou. Ralof brandiu a espada de duas mãos e correu na direção do combate, gritando. Leaaha, por sua vez, escorregou pelo chão inclinado e observou a luta de longe. Foi apenas ao último grito, finalizando a luta, que os olhos azuis da garota se deram a oportunidade de vasculhar o lugar.

Era uma... Sala de tortura?

Devia ter sentido-se muito, muito mal com isso. O estômago, entretanto, parecia ter se revestido com aço, inatingível a cenas grotescas como a que estava diante dela: um corpo pendurado dentro de uma gaiola, sinais visíveis de tortura pela superfície de sua pele – e a ausência de seus olhos -, outro corpo caído no chão de uma jaula, magro o suficiente para ela supor que estava passando fome há dias. Eram imperiais, os dois. Imperiais tinham ajudado a queimar seu vilarejo, sim, mas os imperiais também eram sua família. Era a sua mãe, seu irmão. Eram seus amigos, e o homem que vendia-lhe doces bolos em Bruma, e a avó que lhe tecia belos capuzes para suportar o frio. Podia ter escolhido confiar em nórdicos e stormcloaks, naquela fuga, mas isso não anulava o carinho que sentia pelo próprio povo. Era, afinal, mais imperial do que nórdica. Os mortos eram ela, torturados ao bel prazer de algum louco em busca de informações.

O sangue fervilhava de raiva enquanto encarava um dos dois encapuzados ali. Fazia com que lembrasse do homem que brandia a espada que quase cortara a sua cabeça, minutos atrás. Leaaha não percebeu que estava de pé e com a mão no cabo do seu machado até que Ralof segurou-a pelo braço com força. Parou, abruptamente.

— Não, irmã. Não vale a pena. — O rosto duro dele, entretanto, não trazia raiva ou agonia em ver os corpos ali. Concordava com aquilo. É óbvio: eram seus inimigos. A insensatez, teimosia e cegueira do povo de Skyrim era conhecida em todos os cantos. O único motivo para ele ter interrompido o gesto de Leaaha foi, possivelmente, o fato de achar desnecessário mais algum embate ali, que obviamente terminaria na morte dela. — Aqui, tem algumas gazuas nesse canto. Tente abrir a jaula e ver se acha algo útil.

Se não sentiu um pingo de raiva do loiro até agora, era porque estava guardando para aquele exato momento. Estava caçoando dela, certo? Era a única explicação razoável para aquele pedido tão cortês para algo que nitidamente a deixou enojada. A vontade era enfiar os dedos no nariz dele até vê-los saindo pelos olhos, cheios de sangue, mas não o fez. O motivo para isso era simples: ainda estava sendo segurada. Esses breves segundos, pelo menos, serviram para que ela não agisse no momento da explosão, o que provavelmente salvou a sua vida. Passou do nível “EU VOU MATAR ESSE FILHO DA PUTA” para “eu quero muito matar esse filho da puta”, e isso era fácil o suficiente para controlar.

— Você não é meu irmão. — Parecia uma criancinha fazendo birra, para quem visse a cena de fora, mas não compreendiam a situação de verdade. Ser chamada de irmã ativava a tristeza dentro de si pela perda de Marc, e pedir para que vasculhasse o cadáver de um imperial – que poderia muito bem ser seu irmão – morto por inanição ali era brutalmente cruel. — E foda-se essas gazuas. Foda-se você.

Não iria dar um soco no nariz dele – principalmente porque não conseguiria antes dele desviar ou segurá-la, mas podia ignorar esse fato -, porém foi corajosa o suficiente para jogar as gazuas de metal no rosto de Ralof com força antes de sair pisando duro. Imaginava que a sua extrema rebeldia iria irritar os soldados dali e iriam pular em cima dela, sedentes de sangue, mas ouviu apenas umas risadinhas. É claro. Era uma garota miúda e machucada de 16 anos de idade. Não colocava medo em ninguém.

A partir dali, passou o resto do tempo em silêncio. Andava emburrada, pé ante pé forçando o chão embaixo de si. Deixaram que ela fosse na frente tranquilamente, e era orgulhosa demais para tentar voltar ao final da fila, o lugar mais seguro. A paisagem não mudou por um bom tempo, até avistar uma luz no final de um corredor. Acelerou o passo, mas no exato momento em que passou para o ambiente mais aberto, sentiu um empurrão nas costas seguido por um vento do lado da sua perna.

— Puta merda. — Fitava a flecha que passara centímetros de distância da sua panturrilha e, depois, virava-se para encarar Ralof, o responsável por evitar aquela tragédia. Infelizmente, o mesmo já estava atacando os imperiais que esperavam logo após uma pequena ponte de pedra no meio de um riacho. Era um lugar tão bonito! Para melhorar, só mesmo se retirassem a batalha sangrenta entre as sete pessoas ali.

Não queria quebrar o seu padrão de comportamento. Oras, passara todos aqueles longos minutos dentro da torre se esforçando para manter-se longe de conflitos! Sendo assim, jogou-se atrás das rochas no caminho e encolheu-se o máximo que o tamanho já diminuto permitia. Conseguiu escapar de todas as flechadas, até que ninguém mais prestava atenção nela. Espiou, curiosa, para ver como a batalha se estendia e encarou algo que lhe apertou o coração.

Mesmo que tivesse sentido uma raiva absurda de Ralof, tinha se apegado a ele rápido demais. Vê-lo batalhar com três imperais armados ao mesmo tempo era praticamente assinar que sabia que ele iria morrer. Não queria isso. Analisou todo o cenário, cada pequeno objeto a sua volta que poderia dar-lhe alguma vantagem para ajudar Ralof e formou uma ideia. Preenchida por um surto de coragem que só surgia nos momentos que precisava defender outra pessoa, fixou os olhos em um arco que estava caído ao lado de um imperial morto e correu na sua direção. Os próximos movimentos foram rápidos e precisos: segurou o arco de madeira em suas mãos, agradecida pelos braços não estarem tão machucados quanto o resto do corpo, e deixou seu treino em arquearia assumir o controle.

A flecha de ferro zuniu pelo ar antes de esbarrar na grande esfera de cerâmica que balançava em cima dos soldados. Ela girou, mas não se desprendeu do teto. Leaaha praguejou no seu canto e armou outra flecha rapidamente, disparando-a tão rápida quanto a primeira. A diferença, neste instante, é que Ralof e outro soldado tinham notado o movimento dela e afastaram-se do líquido escuro no chão abaixo deles. Era algo que Leaaha não tinha pensado – o fato de Ralof estar no meio junto aos “inimigos” -, e por isso agradeceu a si mesma por não ter acertado de primeira. O segundo tiro desprendeu a esfera de sua corda. Viu um clarão quente se aproximar antes de ouvir o som da cerâmica se quebrando no chão. O líquido viscoso incendiou-se rápido demais para os dois imperiais fugirem. Ambos caíram nas rochas do riacho, inertes devido a explosão.

Voltou a atenção para Ralof e o imperial restante no exato momento em que o braço com armadura vermelha se levantava contra outro caído no chão, tentando recuperar o fôlego. Teve que pensar rapidamente, naquele instante. Imperiais eram sua família, sim, mas também eram a sua ruína. O homem vestido de soldado, ali, certamente sabia onde estava se metendo. Sabia o que estava ajudando. Os mortos na sala de tortura poderiam ser qualquer pessoa – padeiros, bêbados, professores – e estavam lá, mortos, torturados e Leaaha nunca saberia quem foram. Sabia quem era o humano na sua frente. Um soldado disposto a morrer pela sua causa.

Mesmo com isso em mente, segundos antes de soltar a flecha, mudou o rumo da mesma. Não era uma assassina. Observou enquanto a flecha se enterrava na coxa dele e o fazia cambalear para o lado, tempo o suficiente para Ralof chutar-lhe a outra canela e fugir. Virou o rosto enquanto ele terminava o trabalho, sentindo todo o corpo tremer de nervosismo. Sentia-se mal por ter ferido alguém, mas era isso ou deixar Ralof morrer e, em seguida, ser trucidada também. Pelo menos não tinha sido ela a dar o golpe final.

Continuaram em silêncio por um bom tempo depois disso. Era possível sentir que Ralof pensava em algo para falar, mas nada saía. Deixou que o clima ficasse assim: estava desanimada e sentindo-se culpada demais para montar um diálogo decente. Juntaram as flechas caídas – e ainda funcionais -, esperaram Leaaha conseguir ajustar o arco e a aljava em suas costas e continuaram.

O silêncio continuou por um bom tempo. Passaram por carroças com repolhos, mais lagos, pequenas cachoeiras - onde ambos limparam o sangue das vestes – e vários caminhos ótimos para se perder. Leaaha estava ficando entediada com a paisagem terrosa e cavernosa quando algo ótimo surgiu para tirá-la daquela letargia.

Aranhas gigantes.

Aranhas. Gigantes. Não era perfeito? Claro que sim! Nutria uma relação muito especial com aqueles aracnídeos de gelo. Era um ódio difícil de controlar, uma raiva extrema da simples existência deles. Sua mãe sempre comentara que era uma criança muito corajosa, mas sempre corria das pequenas aranhas que apareciam na casa as vezes. Morria de pavor delas. Isso prosseguiu até um dia que se meteu, junto ao Marc, em uma caverna próxima a Bruma. Leaaha tinha 10 anos, e o irmão estava próximo dos 13, quando viram um exemplar daquela espécie. Melhor do que ver: foram atacados por uma.

Sorte a deles, a aranha era velha e debilitada. Ao contrário do esperado, Leaaha não paralisou de medo. Não surtou ou desmaiou. Era como se sentisse vontade de socar a cara de Kynareth por ter pego as pequenas aranhas, já uma praga suficientemente terrível, e feito elas ficarem cinquenta vezes maior. O que sentiu não foi medo, foi pura raiva. Ódio. Não achava justa a simples existência delas. Foi mais rápida do que Marc na defesa e, com um graveto, começou a espetar a criatura em todas as partes possíveis, sem contar as inúmeras pedras que jogava enquanto corria de um lado para o outro da caverna. No final acabaram fugindo e deixando-a lá, mas desde então Leaaha sempre esmagou as aranhas que via por aí. Era a única atitude plenamente violenta que apresentava – ao menos, a única sem motivo.

No instante em que viu aqueles três exemplares de aranha ali, teve que se segurar para não sair chutando-as na cara, principalmente porque não conseguiria chutar nada na condição que estava. Conseguia, entretanto, puxar uma flecha e lançá-la no meio daqueles olhos negros, e foi isso o que fez. No mesmo instante que o seu tiro nocauteava a aranha do meio, sentiu algo gelado na região do abdômen, e a dor espalhou-se para o resto do corpo em questão de segundos. Não estava se lembrando do veneno, é claro. Via duas dela se aproximando e mal conseguia se mexer, tamanho o frio que a preenchia. Encostou-se na parede e deixou que Ralof passasse a sua frente enquanto o efeito do veneno ainda congelava tudo a sua volta.

— Tudo bem com você? — Ouviu após alguns segundos. O queixo batia violentamente pelo frio, mas só reparou nisso no momento em que tentou conversar com Ralof. Temendo morder a língua, apenas concordou com a cabeça e colocou-se de pé. O soldado encarou-a com receio, retirou a capa azul que trazia nas costas e envolveu-a com ela.

Leaaha não sabia dizer o que sentiu com aquele pequeno gesto. No meio de tantos conflitos, sangue e morte, foi algo realmente tocante. Respirou fundo para não lacrimejar e agradeceu com um sorriso.

Boa parte do resto do caminho continuou em silêncio, agora pela sua incapacidade de falar. Silêncio de sua parte, pelo menos: Ralof comentava sobre as rochas ao redor, sobre o veneno da aranha – não era letal em pequena quantidade -, sobre batalhas... Parecia querer encher a mente de Leaaha de conversas, seja por tédio ou para que ela não ficasse letárgica demais. Funcionou, de qualquer maneira.

A última curva abriu em uma enorme caverna. Leaaha continuou andando tranquilamente até ser puxada por Ralof, que encarava-a com um nítido sinal de silêncio. Apontou para uma rocha ao longe e, só agora, reparando melhor, conseguiu identificá-la como... Um urso? Ok, um urso.

— Vamos passar escondidos pelo canto. Ou prefere abater ele? O pelo daria um bom dinheiro. — A voz não parecia muito ansiosa com qualquer das opções, deixando Leaaha a decidir.

Não precisou pensar muito para decidir. Não era a mais ambiciosa das pessoas, e quando matava, em Bruma, era para alimentação e para comprar roupas para a família. A vontade de arriscar a sua vida e a de Ralof por algumas moedas era mínima. Balançou a cabeça negativamente e seguiu-o pelo caminho de pedra, sentindo o coração martelar no peito a cada passo e respiração profunda do urso.

O alívio ao conseguir passar dele era tocante, e só aumentou ao ver luz no final do túnel. Luz solar. Estavam chegando ao fim! Com as pernas bambas, acompanhou Ralof em todo o caminho, sem ter a menor ideia do que a esperava do outro lado. Alguma cidade? Estariam em Helgen, ainda? Um lugar no meio do nada? Um calabouço? Ao lado de um rio? Montanhas? Só havia um jeito de saber.

Entrou na luz.


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