Fábula das Vozes escrita por dovahkiin


Capítulo 1
Cenouras e Dedos




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O som ocasionado pela queda do tronco fez Leeaha pular no lugar. Vários pássaros voaram, unindo-se a sinfonia com seus piados e bater de asas.

— Nunca vai se acostumar, vai?

Marc sorria para ela daquele jeito que estava acostumado a fazer: lábio para um lado, sobrancelha erguida. O cabelo castanho ao redor do rosto chegava perto dos olhos quando se abaixava para pegar o próximo tronco. Tentara convencê-lo a deixá-lo que mamãe cortasse, mas o rapaz era teimoso.

Pff. Não é minha culpa se você é escandaloso na hora de cortar sua madeira. Eu sei ser bem mais sutil. — Leeaha rebateu no outro canto da clareira.

Terminara a sua cota de lenha do dia e ocupava-se limpando o machado, tirando todas as farpas e pequenas folhas que grudaram em sua lâmina. Deixaria para afiar quando voltasse a Bruma: o ferreiro da cidade cuidava de ambos, ela e seu irmão, como se fossem filhos, e vivia ajudando com os machados. Em troca pelas lições de metalurgia e algumas poucas técnicas de luta, entregavam parte do dinheiro que arrecadavam com a venda da lenha. Com as moedas que recebiam, compravam carnes e alguns tecidos, itens importantes para a sobrevivência.

— E é por isso que os seus cortes são desnivelados. Você não coloca força nesses braços.

Mais um pedaço de madeira no toco. O silvo do metal passando rápido pelo ar terminava em um impacto forte. Mais lenhas ao chão. Leeaha fechou o rosto e continuou encarando o trabalho do irmão, vez ou outra soltando um xingamento. Não demorou dez minutos antes de se cansar e resolver dar uma volta pelas redondezas.

O hálito quente subia em fumaças condensadas pelo ar, girando em espirais antes de se dissiparem. Lembrava-se das vezes em que brincava com Marc, anos atrás, pulando pelos ares e fingindo ser um monstro maligno, baforando fogo fictício e soltando fumaça. As capas de lã que a mãe tecia serviam para criar o rabo espinhoso, capazes de destruir os vilarejos de madeira que ambos entalhavam.

Boa parte dos seus itens da infância foram dados ou vendidos – roupas, bonecos de barro e esferas macias –, mas fizera questão de manter as pequenas casas. Era um trabalho e tanto: espremeram alguns insetos engraçados que achavam nas cavernas e misturavam com óleo de frutas para fazer o pigmento avermelhado e pintar detalhes nas moradias. Palhas cortadas em pedaços minúsculos iam no telhado, e, quando estavam inspirados, até construíam cercas com gravetos. Poderia valer um bom dinheiro, mas nunca tocavam no assunto de vendê-los. Era como um legado da família, precioso demais para ser trocado por um cobertor decente para todos ou por um bom pedaço de javali.

O som do riacho em seu ouvido trazia sensação de paz, como naqueles segundos logo antes de dormir onde a consciência é suficiente para sentir, mas não para pensar. Deixou-se levar pelo som, pé ante pé, concentrando toda a sua atenção para não se desequilibrar e cair de cara em uma das pedras. As montanhas nas redondezas de Bruma eram íngremes e rochosas, hostis demais para abrigarem moradias. Existia, é claro, os insanos: pessoas que abandonavam a vida em sociedade e construíam pequenas cabanas nos lugares mais improváveis. Leaaha imaginava que boa parte delas acabava morrendo por ali em pouco tempo, mesmo sem nunca ter encontrado um corpo. Talvez os lobos fossem mais rápidos.

Só interrompeu a caminhada quando fincou os pés metros antes de um penhasco. A queda, entretanto, não foi a motivação da sua parada brusca: encarava o horizonte com o rosto confuso, pensativo.

Bruma estendia-se aparentemente tranquila em seu interior. De onde estava, conseguia ver as maiores barracas dos comerciantes locais, negociando vegetais e carnes. Os itens mais caros costumavam ter seu estabelecimento próprio: armas, roupas e remédios. Como a cidade não era comercial, tinha uma quantidade escassa e repetitiva de produtos. Vivia sonhando em conhecer novos lugares, novas faces, novos climas. Gostava da sua cidade, mas sentia que o lugar não lhe acolhia de verdade. Mesmo que fizesse parte de Cyrodiil, o lugar era puramente nórdico. A maior parte das pessoas, seus costumes e suas casas.

Sua família, os Collyridan, eram umas das poucas imperiais da cidade e, ainda assim, também tinham sangue nórdico correndo pelas veias. Tentava fazer o corpo entender aquilo – “Você também é um pouco nórdica! Sinta, sinta!” –, porém ele aceitava isso com tanta facilidade quanto aceitaria se começasse a falar que tinha um chifre saindo da boca.

Sua avó por parte de pai fora uma calma e presente moradora de Falkreath, até se apaixonar por um imperial e decidir morar em Bruma com ele. Construíram uma família: Cesyr, seu pai, nasceu com olhos claros do povo de Skyrim, mas a mesma pele morena e cabelo escuro dos imperiais. Seu irmão era parecidíssimo com a mãe, todo alto e claro. Sempre gostou de Bruma e dos costumes do povo além das montanhas. Por mais que tivessem tentado fazer ele desistir da ideia, partiu cedo para se unir aos Stormcloaks. Não recebiam cartas dele há mais de seis anos. Morto, provavelmente.

Os olhos azuis continuaram nos filhos de Cesyr, assim como a tez de pele e os cabelos escuros. Leaaha e seu irmão eram figuras notórias em Bruma: se destacavam com facilidade na mistura de características. Ela, entretanto, tinha um pouco mais de facilidade para lidar com o povo local: era amigável e tagarela. Adorava conversar. Vivia descobrindo coisas com seus papos bobos, e aprendia a ser cada vez mais observadora com os outros. Esse dom, no momento, estava sendo utilizado, mas não para analisar pessoas.

Analisava as carroças ricas que circulavam sua cidade.

Eram cerca de 15, 20 no máximo. Carregavam bandeiras douradas e carmesim. No local em que estavam, os moradores da cidade não conseguiriam visualizá-las. As fortalezas os escondiam. Os poucos guardas nos fortes iam de um lado para o outro, ignorando a presença extra como se fossem apenas um monte de gansos selvagens a passeio. Leaaha espremeu a boca e abaixou-se um pouco, ficando em uma posição mais segura para tentar se locomover e buscar por um lugar com vista melhor sem que virasse carne moída no chão.

Quando finalmente se estabilizou em uma das pedras, a visão das pessoas que saíam das carroças fez com que perdesse o fôlego. Altos, loiros. Pele amarelada. Orelhas espetadas. As roupas... Nunca chegou a ver um pessoalmente até aquele momento, mas batia perfeitamente com a descrição dos livros.

Thalmor.

A garganta encheu-se com um gosto azedo de puro nojo. Talvez tivesse se deixado influenciar pelos papos do irmão, mas odiava-os. Tinham certa birra com os moradores de Bruma. Destruíram dezenas de pequenos templos a Talos, até mesmo os simbólicos nas casas da população. A grande estátua do Um dos Oito continuava intacta no meio da praça central: considerada parte histórica da cidade, pedra maciça, e nenhum Alto Elfo conseguira autorização para destruí-la. Isso já era motivo o suficiente para odiá-los, é claro, porém eles se esforçavam ainda mais: começaram a espancar pessoas em busca de informações sobre cultos ao “Tiber Septim”.

Algumas pessoas sumiram, geralmente os jovens com cabeça quente e sangue revoltado que não sabiam se calar. O lugar começou a se tornar hostil com os elfos que o visitavam e, aos poucos, pararam de dar atenção à Bruma. Ao menos era o que pensavam, até o momento.

Nada de bom poderia vir daquela visita. Se cada carroça carregasse cerca de 10 pessoas... O número que apareceu em sua cabeça não foi amistoso, principalmente porque conhecia a fama dos guerreiros mágicos Thalmor. Queimavam as pessoas vivas com as chamas. Congelavam os ossos, carnes e veias das pessoas e depois quebravam-nas por pura maldade. Raios carbonizavam seus alvos como se fossem mandados pelos nove divinos. O povo de Bruma não saberia lidar com aquilo. Já tinham poucos guerreiros aptos – a maioria se juntava ao conflito dos Stormcloak ou se unia ao exército Imperial na capital. O medo e ódio por magia que permeava o coração de vários nórdicos também se manifestava ali. Nunca conseguiriam conter um ataque Thalmor.

Demorou mais dois minutos em seu lugar, observando atenta, antes de começar a ouvir comandos ao sul da cidade e o barulho de portões se abrindo. “Malditos”. Pela sua visão, era bem claro o que acontecia: a pequena guarnição dava bandeira branca para os guerreiros elfos, que entravam de forma pomposa pela cidade. Liderando a procissão, um grupo de sete Thalmor com vestes negras chegava perto dos comerciantes. Seria impossível ver a expressão no rosto das pessoas de tão longe, mas Leaaha conseguia imaginar.

Só conseguiu sair da posição onde estava, grudada a uma árvore para não cair, quando o primeiro grito cortou o ar. Junto a ele, o telhado de palha da barraca de carnes começou a queimar. O fogo iniciou-se timidamente, como se pedisse autorização para dançar entre os fios amarelados. Sem ganhar permissão do mesmo, decidiu tomar o que quisesse. Alastrou-se pelo lugar, consumindo cada pedaço de palha, deixando cinzas e fumaça no seu lugar. Leaaha finalmente saiu do choque e correu diretamente para o local onde cortava árvores minutos atrás. Ou teria se passado mais tempo? Pelos Nove, precisava encontrar seu irmão. “Por favor, Arkay. Por favor. Não me deixe perdê-lo”.

A perna bamba fez com que caísse três vezes no terreno rochoso antes de encontrá-lo ali, concentrado nos últimos pedaços de tronco que cortava. Ao levantar o rosto suado, o sorriso sumiu em questão de segundos.

— O que foi? O que houve? — O azul nos olhos dele se intensificou enquanto buscava por machucados no corpo da irmã. — Droga, Leaaha. Responda!

Jogou o machado para o lado e se aproximou enquanto olhava de um lado para o outro, pensando no que falar. Ele não sabia ainda. Não tinha visto. O que aconteceria se falasse? Marc iria atrás da mãe, é claro. Iria tentar ajudar as pessoas. A enorme quantidade de Thalmor que já estava lá dentro, entretanto, deixava uma coisa clara na mente dela: não seria possível fazer algo. Salvar a sua mãe, no máximo.

Agora, há algo engraçado a se esclarecer sobre o modo de pensar da garota: toda a racionalização e pensamentos estratégicos se aplicavam apenas sobre os outros com quais ela se importava e prezava pela segurança. Quanto se referia ao próprio bem-estar e possibilidade de continuar viva, ignorava tudo isso. E, motivada por esse instinto, balançou o rosto e voltou a assumir uma face neutra.

— Queria ter trazido o meu arco. Vi um cervo lindo ali. Teria dado um bom dinheiro. — Sorriu e voltou a olhar para os lados, fingindo estar interessada em alguma outra coisa. Em momento algum virou os olhos para o irmão, temendo que deixasse transparecer mais do que queria se deixasse que ele a encarasse devidamente. — Droga. Acho que deixei meu machado cair. Já volto.

Antes que ele falasse qualquer coisa, estava virando em passos rápidos que logo se tornavam uma corrida desastrada pela descida íngreme da montanha. Seguia o cheiro de fumaça, seguia o som crescente dos gritos, seguia a tensão que sentia surgir no ar. Seguia para a sua casa.

Quando finalmente saiu do declínio e aproximou-se do portão, sentiu alguém a puxando pela capa. Girou no chão por alguns segundos e virou-se, pronta para um ataque, quando deu de frente com o seu irmão.

— Você magoa me tratando assim. Acha que eu sou idiota? É uma péssima atriz. E está com a porra do seu machado na sua cintura! — Ele estava praticamente rosnando enquanto se aproximava mais e mandava um empurrão contra o ombro de Lea. — O que estava pensando? Huh? Quem está lá dentro? — Apontou com o queixo para as fortalezas da cidade. Era fácil notar o confronto: os gritos de protesto e de confronto eram audíveis, a fumaça tão visível quanto o céu nublado.

— M-mamãe. Precisamos salvar ela. — Poupou-se de todas as explicações que poderia dar, ignorando o sentimento de estupidez que a invadia. Não servia nem para fingir e salvar o seu irmão.

Precisavam agir com rapidez, ou tudo acabaria. O rosto de Marc tornou-se concentrado, focado. Estava entrando em modo de batalha. Agora, um fato interessante sobre o rapaz: era um dos melhores guerreiros de Bruma. Treinou com a Legião por um tempo, mas acabou desistindo e voltando para cuidar da mãe após a morte de seu pai. Boa parte do conhecimento de Leaaha sobre o manejo do machado vieram de seu irmão. Se tivesse ele ao seu lado, talvez conseguissem salvá-la e sair da cidade vivos. Marc, entretanto, fitou-a de forma séria.

— Fique aqui.

A ordem era fria e calma.

Leaaha não a seguiu.

Era tão rápida quanto ele. Passaram correndo entre alguns Thalmor e, aos poucos, tornou-se nítido que não tinham enviado os soldados de maior qualidade. Eram despreparados, perdidos e com movimentos lentos. Novatos. Peões que poderiam ser perdidos em uma investida numa cidade não-importante.

Marc decepou o braço de um que tentou impedir a sua corrida, e após isso ninguém pareceu se importar tanto com dois jovens desesperados. O objetivo ali era deter o culto a Talos, e não dizimar a população. Só atacavam quem se opunha e, consequentemente, quem defendia os rebeldes. Infelizmente, isso acabava aos poucos comovendo toda a população. Iam todos morrer, e morreriam porque eram burros e não sabiam o momento de se ajoelhar. Queria chacoalhá-los, falar para pensarem um pouco, mas não havia tempo para isso.

O coração batia rápido quando se aproximava de sua casa. Viraram mais uma esquina e Lea sentiu toda a sopa de legumes que tinha comido subir a tona em sua garganta. As pernas fraquejaram e caiu no chão, esmagando dois repolhos sobre o peso do seu corpo.

A casa, sua amada casa, queimava. Pendurada acima dela como um troféu, duas armaduras Stormcloak. A pequena horta onde cultivavam verduras e vegetais para vender estava destruída. Alguns metros de distância da onde desfaleceu, os olhos negros de sua mãe a encaravam, sem vida. Deslizou pelo chão para mais longe e sentiu sua mão esmagando mais legumes. Virou o rosto para baixo, pronta para empurrar as cenouras para o lado, quando percebeu que eram três dedos retorcidos, arroxeados.

Seu cérebro demorou cerca de cinco segundos para interpretar o que aquilo era de verdade. Quando Marc puxava o seu corpo para longe dali, ainda estava vomitando pedaços de aipim e maçã.

Dez minutos depois e estavam escondidos atrás de uma pedra no alto das montanhas. O fervor da cidade, aparentemente, fez com que os Thalmor com mais experiência saíssem de suas tocas e se unissem a “repreensão amistosa”. Leaaha fora puxada aos gritos da cidade, mas só foi perceber isso quando adentraram a floresta e o barulho fervoroso da cidade foi substituído pelo cricrilar dos grilos. Sua garganta ardia, mas não mais do que os seus olhos, que se recusavam a soltar lágrimas.

— Ei. Ei, Lea. Me escuta. ME ESCUTE! — As mãos ensanguentadas de Marc sacudiram o corpo pequeno da garota, que só sabia tremer e olhar para os lados, assustada. Naquele momento, era fácil perceber a sua tão tenra idade. Ainda não vira a primavera dezesseis vezes. — Você precisa seguir essa trilha, tudo bem? Continue reto. E-eles receberam informações da gente. Sabe que temos stormcloaks na família. Os imperiais não são confiáveis. Entendeu? — Sacudiu-a de novo, esperando que as palavras tivessem entrado em sua mente. Era importante que entendesse. — Procure por Auri. Ela mora perto de Windhelm. Procure por ela, certo? Vai te ajudar. Agora vá. Eu te alcanço daqui uns dias. VÁ!

Talvez fosse o tom urgente na voz de seu irmão. Talvez fosse o medo que martelava o coração de uma jovem que não queria morrer. Talvez fosse o torpor que a atingia após ver a mãe morta e mutilada na sua frente. Talvez fosse tudo junto, misturado e mesclado. Não importa: Leeaha correu, assustada, para onde o irmão apontou. Correu sem pensar, correu desesperadamente, correu aos soluços. Apenas correu, deixando sua vida para trás.


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