A Quase Raposa e o Cão de Pedra escrita por Koyama Akira, Chisana Rumiko


Capítulo 12
18 Não É 22 Nem 25


Notas iniciais do capítulo

GALEEEERA, MIL PERDÕES!
Eu sei que esse capítulo está mais do que atrasado, mas é que... bem, o final de ano foi meio turbulento para mim (principalmente por causa de um demônio chamado vestibular :P). Espero que entendam a fase pela qual eu, em particular, estava passando. Muito obrigada a todos pelo suporte que vocês têm dado a mim e a Akira, isso foi muito importante para nós.

Ah, e um agradecimento especial para Scarlet (o que você escreveu foi absolutamente maravilhoso, muito obrigada! ;-;)

Ok ok, chega de melodrama e vamos direto ao que importa!
Boa leitura! O/



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Michi

É hoje que eu acabo com a raça do Iwako-san.

Quem liga que ele salvou minha vida? Eu não ligo! Quem ele pensa que é?! Chega no meu colégio, tira-me da sala de aula, fala um monte de besteiras... E, para fechar com chave de ouro, solta uma frase que com certeza poderia ser interpretada de diversas formas.

E tudo isso bem na frente dos meus amigos…!

Não tive sequer um buraco para me enfiar; tive que enfrentar até o final a tempestade de perguntas sobre quem era o meu “novo namorado” e o que diabos nós estávamos fazendo na enfermaria — o que, por sinal, foi a parte mais difícil de lidar.

O que fez a minha raiva chegar ao limite foi que, mesmo depois de tudo isso, eu não recebi uma única explicação da parte dele sobre o que ele quis com aquela “encenação” na hora de ir embora. Caramba, ele sabia que meus amigos estavam do lado de fora! E não tem como acreditar que ele não sabia que o que disse era… “ambíguo”. Ah, mas ele vai ver só. Quando chegar a hora do almoço, nós dois teremos uma conversinha.



E falando no demônio… Iwako-san estava se debruçando em cima do balcão de pedidos do Neko Ga Nobasa, o restaurante do Hiyato, olhando diretamente para mim. Ele parecia extremamente feliz, como se estivesse vendo seu filme de comédia favorito.

Dessa vez eu não vou aliviar pra você!

— Tudo bem com você, Chibi-chan? — ele disse com certa malícia, o que fez uma veia saltar na minha testa. — Parece chateada com alguma coisa.

A ironia dele corroía meus ouvidos. Como ele se atreve a usar justo esse apelido?

— Pra sua sorte, estamos cercados de testemunhas, então vou ter que esperar um pouco até poder colocar as mãos em você — rosnei baixinho para que apenas ele ouvisse.

Seus olhos faiscaram ao me ouvir, e percebi que a minha frase não estava ajudando muito. Certo, acho que ficou muito… estranho. Bastou olhá-lo que minhas bochechas queimaram, mas decidi ignorar.

— E você também tem um senso de humor muito forte pra um cara tão velho. — Mudei de assunto antes que ele me provocasse com algum trocadilho. — Deveria aprender a ser cavalheiro como o Hiyato — murmurei enquanto fazia um bico.

Hiyato?! — Aparentemente, aquilo era como uma piada para o Iwako-san, porque ele desabou a rir. Isso me pegou de surpresa, já que era para supostamente tê-lo ofendido. — Por favor, poupe-me! — disse enquanto recuperava o fôlego. — Hiyato sendo cavalheiro é a mesma coisa que dizer que demônios não existem. Fora que eu aposto que você não sabe a idade dele, de fato.

— Algo entre duzentos ou trezentos, imagino — arrisquei um palpite.

— Você não entende mesmo de demônios, não é? — O olhar do Iwako-san aparentava desapontamento. — Vamos começar pelo fato de que o Hiyato é um nekomata. Nekomatas são a evolução de um bakeneko que por fim surgem de um gato normal…

— Espera! — eu o interrompi bruscamente levantando as duas mãos. — Está me dizendo que o Hiyato é um... gato? Tipo, um gato normal?

— Não, ele era um gato normal, antes de se transformar em youkai. — O sorriso no rosto do Iwako-san se alargou, o que, por algum motivo, me incomodou bastante. Meu cérebro ficou dividido entre retrucar o Iwako-san e tentar lidar com o fato de que aquele garoto incrivelmente bonito era um gato comum. — Continuando: para um bakeneko se tornar um nekomata precisa ganhar uma segunda cauda. Essa por sua vez só se manifesta quando o youkai possui certa idade, o que pode variar. No entanto, costuma ser por volta dos quinhentos anos.

— Não, não… Calma. — Massageei as têmporas para tentar me acalmar e entender o que o Iwako estava falando. — Eu acho que não entendi… Está me dizendo que Hiyato tem mais de quinhentos anos?! — não fui nem capaz de esconder a minha surpresa. Definitivamente não tinha chance alguma de me interessar por um animal de quinhentos anos. — E que é um gato de verdade?

Iwako-san riu da minha reação mais uma vez, sem se importar com o que eu pensava.

— Para ser mais exato... — Ele olhou por cima dos ombros, como se procurasse por alguém que tentasse nos escutar, e sussurrou: — o Hiyato tem algo em torno de setecentos anos.

Meu corpo todo estremeceu e então eu me senti extremamente estranha por ter me atraído por um gato, ao mesmo tempo em que eu queria acabar com o Iwako-san por ter me contado. De verdade, eu poderia viver feliz sem saber disso… Valeu mesmo, Iwako-san.

Eu estava tão confusa com o que pensar do Hiyato que nem percebi que ele caminhava até nós. Mesmo sabendo que ele tinha setecentos anos — e que era literalmente um gato —, não me sentia menos atraída por ele. E isso era ainda mais estranho.

O que diabos você está pensando, Michi? Ele tem setecentos anos e é um gato demônio... Isso já é demais até pra você!

— Sobre o que vocês dois estão conversando? — Hiyato passou pelo balcão e puxou um dos bancos altos para sentar ao meu lado.

Não deveria ter motivos para estar nervosa, mas mesmo assim estava bastante tensa quando aqueles olhos heterocromáticos encontraram os meus.

— Sobre como você é velho — denunciou o Iwako-san.

Droga, Iwako-san! Você não deixa passar nada mesmo, não é?

— Ah, sim! — Hiyato riu suavemente. — Aposto que você não disse que eu sou duzentos anos mais velho que você.

Momentaneamente, o mundo parou de fazer sentido para mim.

Hiyato é mais velho que Iwako? Como isso é possível?! Mas... Os dois demonstram exatamente o oposto: Hiyato é tão gentil e relaxado, na verdade ele aparenta ser apenas um pouco mais velho que eu; já o Iwako-san é sério e fechado, fora que age como um velho querendo sempre ser o dono da razão. Até mesmo a aparência física dele é mais “dura” que a do Hiyato.

— Ei! Não ache que tem vantagem por isso! — Iwako-san protestou enquanto avançava contra Hiyato, prendendo-o em um gancho e se aproveitando disso para, com o punho, bagunçar o cabelo do nekoyoukai.

Hiyato parecia estar se divertindo com a situação, não estava tenso ou acuado. Ele é tão legal...

Ah, não, essa recaída de novo não! Michi, nada de pensar em ter relações com youkais de setecentos anos!, tentei me repreender. Meus “devaneios” foram interrompidos quando ouvi uma garota do mesmo colégio que eu chamar Hiyato pelo seu nome humano, “Toru”. Agora, esse nome me soa tão estranho...

Volto logo, otouto-chan — disse o Hiyato enquanto balançava os dedos para o Iwako-san e ria um pouco alto.

Certo, tenho que admitir que eu tive uma vontade imensa de rir. Esses dois, não importa o quanto olhem, parecem ser dois irmãos briguentos que se dão muito bem.

Ei! Não me chame…! — Iwako tentou protestar, avançando alguns passos, mas Hiyato foi mais rápido e se afastou num piscar de olhos.

— Otouto-chan! — interrompi Iwako-san com uma risada debochada, assim como a que ele havia dado hoje mais cedo.

Acho que o jogo virou, não é mesmo, Otouto-chan?

Iwako me encarou com uma bela carranca, mas não passava de faixada. Não demorou muito para que ele abrisse o seu usual sorriso debochado.

— O que foi, Chibi-chan? Sentindo-se deslocada porque seu querido gatinho foi falar com outros humanos?

O-oq… O quê?!

Meu rosto enrubesceu no mesmo instante. E olha que, dessa vez, eu nem estava pensando nele!

— Nossa, você é um besta mesmo… — murmurei mais baixo do que eu queria, pois a vergonha não deixava nem ar passar pela minha garganta.

A minha resposta só fez o babaca do Iwako rir mais ainda.

— Olha, você nem negou! — disse entre lufadas de ar. — Não é que a nossa raposinha gosta de gatos?

— Você não…! — Já ia respondendo de automático, mas decidi me calar e respirar fundo… e dar uma resposta melhor. — Em primeiro lugar, eu não te dei o direito de me chamar de Chibi-chan.

— E quem disse que eu preciso disso? — Deixou um sorriso presunçoso escapar.

— Eu disse — respondi firme, mas isso não o fez recuar. Muito pelo contrário; ele parecia louco para me chamar de “Chibi” mais uma vez. — E em segundo lugar, eu não me lembro de ter “um gatinho” ou de ser humana, então você está totalmente errado.

— Ora, vejam só! — ele fingiu um falso espanto. — Ela finalmente admitiu que é uma youkai? É isso mesmo?

— Também nunca disse que era uma youkai — retruquei mais uma vez. — Eu sou uma hanyou, caso não lembre. Viu que você não consegue me entender nem um pouco? — Fiz uma pose imponente e esperei pela feição de surpresa dele.

Mas, na verdade, o seu sorriso só tinha ficado mais brincalhão. Aprendi recentemente que o Iwako brincalhão podia ser tão perigoso quanto o Iwako irritado.

— Ah, é? Então me diga, por que você achava que eu deveria ser mais como o Hiyato, um suposto “cavalheiro”? — Ele flexionou o indicador e o dedo médio, simulando o desenho das aspas.

— Porque a forma como você é agora é insuportável — cuspi as palavras, fingindo desprezá-lo.

Iwako riu e cobriu a boca com uma das mãos, aparentando estar surpreso.

— Quem diria que raposinhas também têm veneno.

Tentei fazer a minha melhor pose de indiferença, cruzando os braços e tudo, mas a forma como ele me olhou foi como se achasse engraçado.

— Não me diga que ainda está magoada pelo que eu fiz na enfermaria. — ele tinha abaixado a voz, o suficiente para ser quase um sussurro, o que o deixou com um tom mais grave.

Por algum motivo, só aquelas palavras foram o suficiente para me enrubescer. E me deixar bem desconfortável.

Iwako me analisou por alguns segundos até, por fim, olhar-me nos olhos como se dissesse “na mosca”.

— Parece que alguém teve que dar algumas explicações hoje, não é, Chibi-chan?

— O suficiente para não querer dar mais uma a você, Otouto-chan. — devolvi dando a língua, imitando uma criança uma criança.

Pensei que ele iria me repreender — como sempre — e fazer alguma piadinha sobre “como eu sou um ser inferior” e essas coisas, mas… ele só relaxou mais a postura.

Iwako está em um humor excelente esses dias, pensei. Não sei por que, mas que continue assim!

— Por que está sorrindo como uma besta? — ele perguntou, apoiando a cabeça na mão.

Na verdade, eu nem tinha notado que estava sorrindo, então a pergunta dele realmente me pegou de surpresa. No mesmo instante, eu contive os meus lábios.

— Estava pensando sobre como você está de bom humor. — Dei de ombros.

Iwako franziu o cenho, de uma forma até… fofa.

— Mas eu estou normal — respondeu, confuso.

Está aí uma resposta que eu não esperava: “Mas eu estou normal”. Não, o normal do Iwako não era esse. Pelo menos, não foi o que eu vi durante esses dias.

E foi então que eu tive um estalo. “Pelo menos, não foi o que eu vi”… E se fui que não conheci o normal dele ainda?

— Achava que você era um rabugento por tempo integral — comentei em um sussurro.

— Ninguém consegue ser rabugento por tanto tempo, Chibi — respondeu revirando os olhos.

— Então, por que agia dessa forma?

Eu o encarei fixamente nos olhos, o que fez com que ele, instintivamente, recuasse um pouco, mas logo desviou o olhar para as mesas que iam sendo ocupadas.

— Eu não sabia… — ele começou, mas logo se interrompeu. Eu inclinei a cabeça para frente, curiosa pelo final da frase. Iwako, de canto de olho, percebeu o meu movimento e sorriu, depois de uma longa arfada. — Eu não sabia que tipo de pessoa você era.

Eu não sei por quê, mas me pareceu que, só com essa frase, ele tinha tirado um bom peso das suas costas. Olhando-o de perfil, pude notar com mais clareza os traços suaves e, ao mesmo tempo, angulosos de seu rosto, e junto com eles a serenidade de sua expressão.

— Todo mundo costuma dizer que eu sou uma pessoa bem aberta.

Aproximei-me e apoiei os cotovelos na bancada. Ele apenas bufou, sem, ainda, me olhar.

— Você poderia ser facilmente o tipo de pessoa que engana os outros. — Deu de ombros.

Há! Quem dera eu conseguisse ser tão boa atriz a ponto de enganar os outros. Eu acho que faço muito mais o tipo de pessoa que é enganada, isso sim.

— E por que diabos eu faria isso com a pessoa que salvou a minha vida mais de uma vez?

Iwako deu um riso contido, mas não um de gozação ou de escárnio; era um riso mais frio, mais… triste. Senti como se alguém tivesse apertado o meu coração.

— E o que é que tem? — Ele deu de ombros. — Não seria a primeira vez no mundo youkai que o salvador é apunhalado pelas costas.

Eu não gosto disso, pensei. Não gosto do que ele está falando, muito menos a forma como ele fala. Pode ter sido por meros dois minutos; eu já sentia falta do Iwako bem-humorado.

— Eu não sou assim — respondi com convicção.

Iwako sorriu e passou a mão no meu cabelo, bagunçando-o. No geral, eu teria me incomodado com o gesto, mas… Vou deixar essa passar.

— Eu sei — disse, ainda sorrindo. — Agora eu sei.

Instintivamente, eu sorri de volta. mas não demorou nem dois segundos para que eu me perguntasse:

— Como você “descobriu” — fiz o mesmo gesto com o indicador e o dedo do meio para indicar as aspas que ele tinha feito antes — que eu não sou uma pessoa ruim?

Iwako arregalou os olhos para mim — provavelmente não esperava por essa. Ele coçou o queixo enquanto revirava os olhos, considerando se me contava ou não. Arg! Não faça tanto drama, Iwako! Assim, eu vou ficar mais curiosa...

— Não vou mentir e dizer que não dá para perceber que você é do tipo lerdinha demais para ser tão ardilosa — concluiu. Ouch, você não precisava ser tão direto. Já estava tomando fôlego para retrucá-lo quando ele continuou: — Mas… acho que quando te vi no colégio com os seus amigos, tudo fez mais sentido para mim.

— Como assim?

— Você não viveu a vida de um youkai. — De novo, Iwako desviou os olhos para as mesas do restaurante, agora lotadas de clientes agitados e barulhentos. — Não teve que correr dia e noite para se esconder de youkais maiores na infância, não teve que entrar em lutas de vida ou morte só para conseguir comida na adolescência… Admito que até senti um pouco de inveja de você quando escutei os seus amigos dizendo que estavam preocupados. — Ele soltou um sorriso singelo, que logo sumiu.

Nossa… Nunca tinha parado para pensar em como seria a vida de um youkai. Não esperava que eles vivessem uma infância, adolescência, meia-idade e terceira idade como nós, humanos. Tinha tanta coisa que eu queria perguntar… “Como você era quando criança?”, “Você arrumava muita encrenca?”, “Seus pais não te ajudavam?”, “Youkais não têm clãs que se ajudam?”... Por que você está com uma cara tão triste?

— E a vida adulta? — perguntei por fim. Ele fez uma expressão de confusão, então eu prossegui: — Você falou da infância, da adolescência… mas e a vida adulta?

— Ah… — Ele deu um suspiro aliviado e sorriu. — Isso é o que eu ainda vou descobrir — disse parecendo, de certa forma, animado.

O mundo fez alguns segundos de silêncio para os meus neurônios que acabaram de morrer. O queeeeê?

Quase que num salto, avancei até a bancada e bati com as duas mãos no balcão, o que chamou a atenção de alguns clientes que estavam por perto e também fez o Iwako recuar um pouco.

— Vai me dizer que você ainda não é um adulto?! — falei um pouco alto demais, o que deixou o Iwako nervoso.

— Shhh! — dizia enquanto colocada o indicador na frente dos lábios. — Não, eu não sou! — sussurrou. — Agora, trate de abaixar a voz...

— Como assim! — Por mais que eu tentasse, eu não conseguia controlar a minha voz; a surpresa não deixava. — Mas você tem cara de uns 22 anos, como você pode ser mais novo que isso?!

Iwako não esperou eu me acalmar mais; ele simplesmente avançou por cima do balcão e tapo a minha boca com a sua mão.

Será que dá para parar de gritar? — disse, ainda num sussurro, só que… bem mais próximo de mim.

Iwako deve ter percebido o meu desconforto, pois olhou em volta, para as pessoas que nos “assistiam”, suspirou e se afastou, soltando a minha boca.

— Para vocês, mundanos, eu tenho pouco mais de 500 anos.

Tudo isso e ainda não é um adulto?! — disse, ainda em ultraje, mas com o tom de voz baixo.

Iwako no mesmo instante lançou para mim um olhar bem ameaçador, então eu recuei um pouco e passei o indicador unido ao polegar pelos lábios, simulando um zíper, indicando que eu não falaria mais nada.

— Você já deve saber que o tempo para nós, youkais, passa mais “devagar”, certo?

Eu assenti com a cabeça.

— De maneira geral, pode-se dizer que um ano para nós são, para vocês, algo em torno de… 27 anos?

— Ah, fala sério… — choraminguei. — Por que tinha que ser um número quebrado?

Iwako me olhou com censura de novo. Ah sim, eu deveria ficar calada. Já ia fazer o gesto de “zíper” de novo quando ele riu de mim e balançou a cabeça. Entendi como que estivesse tudo bem.

Então, quer dizer que são 27 anos… 27 anos… Ei, espera!

— Mas, se a proporção é de 27 para um, então você tem...

— Algo em torno de 18 anos — ele me completou.

Acho que não tenho palavras para descrever o quanto a idade do Iwako foi um choque para mim. Eu fiquei alguns segundos só o encarando, sem ter nada para dizer.

— Como assim… — minha voz saia num fio. — Mas… Hiyato não…

— Ah, o Hiyato? — Ele coçou o queixo enquanto fazia as contas. — Se não me engano, ele tem uns… 25 anos?

O quê?! — De novo, minha voz quase não saiu.

— É sim, ele tem uns 25 anos — confirmou.

Tive que me segurar no balão para me apoiar. Vocês não se cansam de me contar esses detalhes superimportantes um milênio depois?!

E o pior: isso quer dizer que… o velhote… é o Hiyato?!

— Não sei por que você se importa tanto com a idade — disse Iwako.

Por que me importar? Claro que eu vou me importar! Eu quase quis entrar em uma relação de pedofilia!

— Como não me importar?! — consegui dizer.

Iwako deu de ombros e começou a mexer no pote de canetas que estava em cima do balcão.

— A idade só é importante de verdade durante os primeiros 100 anos de vida de um youkai. Depois disso, é quase tudo a mesma coisa — disse com certo desdém.

— Então quer dizer que vocês com 2 ou 3 anos já viveram tudo o que tinham para viver? — perguntei bastante estupefata.

— Não, claro que não. — Ele riu, como se eu estivesse falando algum absurdo. — Quero dizer que crianças youkai não são tão estúpidas como as humanas. Podem ser tão infantis quanto, mas certamente são mais espertas que você. — De novo, seu tom brincalhão surgiu.

— Há, há, que engraçado. — Revirei os olhos, esperando que ele continuasse brincando, mas ele apenas arqueou as sobrancelhas como se dissesse “isso é sério”. — Vou me lembrar disso — murmurei, mais para mim do que para qualquer outra pessoa.

Então quer dizer que o Iwako, de aparentes 22 anos, tem 18; Hiyato, de aparentes 18, tem 25; e que uma criança de 3 anos pode facilmente me passar a perna. Mais uma vez, o meu mundo era desconstruído aos poucos, cedendo espaço para as novas descobertas que eu fiz nessa última semana. E o mais impressionante: eu não me sentia nem um pouco mal por isso. Um pouco confusa, talvez, mas não que isso fosse ruim; cada vez mais que eu descobria algo novo, mais curiosa ficava.

Mas, espera...

— Por que a sua idade e a do Hiyato estão invertidas?

— Como assim?

— Hiyato, que é mais velho, parece ser mais novo e você, que é mais novo, parece ser mais velho.

— Ah, isso... — Ele coçou a nuca, meio envergonhado. — Eu pedi para que ele fizesse um encanto para que eu aparentasse ser mais velho, e o preço foi deixá-lo permanentemente mais novo.

— Isso deve ser fácil, já que vocês, youkais, mudam de forma toda hora...

— Não é bem assim. — Iwako franziu o cenho para mim. — Tem várias condições.

— Tipo quais?

Foi só eu perguntar que ele se apoiou em cima do balcão, aproximando-se, todo empolgado.

— Primeiro vem a espécie — explicou, sempre gesticulando, o que era bem engraçadinho. — Nem todo youkai consegue vir para a forma humana, você sabe.

— E isso é bom, não é?

— Claro que é — gabou-se. — Quer dizer que você está num patamar relativamente bom. Humanos, há alguns séculos atrás, acreditavam que youkais que mudavam para a forma humana eram os mais perigosos. — Ele deu um sorriso malicioso, como que ri de uma piada interna. — Humanos são divertidos.

Eu quase retruquei dizendo que eu não era assim, mas... Bem, eu sequer sou humana...

— Então, é tipo o Hiyato, que consegue mudar para várias formas diferentes?

— Hm... É, é tipo o Hiyato. — Deu de ombros.

— Então... você é fraco? — arrisquei um palpite.

Iwako olhou para mim um pouco incrédulo, como se eu o tivesse estapeado. Opa, acho que ele entendeu errado. Meio nervosa, tentei me corrigir antes que ele ficasse realmente chateado.

— Quero dizer... Você se transforma em humano, mas... Em outras coisas... Não, espera, você ainda tem a forma de bicho de pedra, isso conta? — Eu comecei a soltar as palavras tudo de uma vez. Iwako levantou uma sobrancelha, desaprovando-me. Respirei fundo e recomecei. — Não estou dizendo que te acho fraco, mas você precisou da ajuda do Hiyato para mudar a sua forma...

— Ah, sim! — disse, sorrindo de novo.

Ele deu um suspiro de alívio e — para minha surpresa — eu também. Quem diria que chegaria o dia em que eu me importaria com o que o Iwako pensa de mim...

— Mas só se transformar não quer dizer muita coisa, Chibi-chan — falou enquanto bagunçava o meu cabelo. — Você ainda tem muito para aprender.

Dando um passo para trás, livrei-me da sua mão e arrumei a franja com cuidado.

— Então... O que Hiyato fez não foi nada de mais? — arrisquei outro palpite.

— Errado de novo! — Ele fazia isso parecer um jogo. — Claro que transformar-se é um talento natural dos nekoyoukais; eles pertencem à classe dos metamorfos, que já possuem aptidão para esse tipo de coisa.

Ah, isso explica tanta coisa...

— E você?

— Os koma-inu pertencem à classe guerreira — disse com o peito inflado, cheio de orgulho. — Não é estranho que eu não conheça tantas artimanhas quanto o Hiyato para mudar de forma, mas se for para entrar numa briga... Com certeza eu saio na vantagem.

— Hm... pensei que você e o Hiyato estavam de igual para igual... — pensei alto.

Iwako parou por alguns segundos para pensar.

— Acho que você tem razão, o Hiyato não é qualquer um.

E não é que até o Iwako consegue achar um pouco de modéstia?

— Ele é tão bom assim para que até você deixe de lado o seu orgulho? — brinquei.

Iwako cerrou os olhos para mim, mas depois sorriu. Ele sabe que o que eu falo é verdade.

— Aparentar ficar mais novo é algo muito simples para os metamorfos, mas ficar mais velho... — Ele fez uma pausa dramática para balançar a cabeça. — Não é para qualquer um. Ainda mais fazer um feitiço tão complicado em outra pessoa... Hiyato é mesmo incrível.

Iwako parecia genuinamente orgulhoso do Hiyato, algo que eu não esperava. Isso foi... fofo?

Mas ainda tinha uma pergunta que não saía da minha cabeça:

— Por que quis ficar mais velho?

Passou-se alguns segundos com a cena congelada assim: eu, aguardando uma resposta do Iwako, e ele, em estado de choque. Mesmo que por pouco tempo, pude perceber o pequeno conflito interno dele se me contava ou não, e a resposta final foi:

— Não acha que está perguntando demais? — disse num tom de voz frio e distante, como costumava ser.

Oh, não. Eu fiz besteira. Eu nunca fui muito boa em lidar com situações como essa, em que eu tenho que conduzir a conversa para um assunto agradável. E o meu maior obstáculo era justamente o fato de eu estar morrendo de curiosidade para saber o que fez um garoto de 18 anos querer parecer logo um homem de 22.

— E qual o problema? — tentei pressioná-lo, como última chance de tentar fazê-lo falar.

Ele deu um sorriso vazio e desviou o olhar. Seja lá qual for o motivo, parece ser bem... sério.

— Garotinhas como você não precisam escutar histórias como essa... — falou de forma evasiva.

O quê? O queeeê?! Ah, não, mais frases enigmáticas?! Eu estava quase desistindo de saber, mas... Mas agora eu quero saber ainda mais!

— Fala sério, Iwako, para de enrolar e me conta logo! — acabei soltando o que eu pensava, sem nem mesmo perceber.

Céus, eu preciso ir num psicólogo ver se essa minha mania de sair falando as coisas é normal...

Antes que eu me desse conta, Iwako já estava petrificado na minha frente. O que aconteceu...?

— Você me chamou de quê...? — ele mal conseguiu terminar a frase. Franzi a testa, demonstrando que eu não entendi do que ele estava falando. — Você não me chamou de Iwako-san... mas de Iwako?

Naquele momento, a ficha caiu. Por algum motivo, eu simplesmente me esqueci de usar o título honorífico no final do nome... Ai meu Deus, por que eu fiz isso?!

— E-e qual o problema? — resmunguei enquanto tentava achar uma forma de sair daquela situação embaraçosa. Como tratá-lo com tanto distanciamento depois que você se abriu tanto para mim...? — Agora que deixou de agir como um velhote ranzinza, você perdeu o respeito para mim.

A expressão de Iwako logo se iluminou, e eu soube que o seu bom humor estava de volta. Ufa, pensei que a gente passaria por aquele momento embaraçoso de “não me chame de tal forma, porque você ainda não tem tanta intimidade comigo!”, ou coisa do tipo...

— Parece que alguém precisa de aulas de etiqueta sobre como tratar os mais velhos!

Iwako esticou o braço por cima do balcão e, com apenas um movimento rápido, passou o antebraço pelo meu pescoço e me prendeu firme naquela posição pare que, com o outro braço, pudesse esfregar o punho no topo da minha cabeça, bem como uma criança.

— Me solta, seu besta! — gritava entre risos.

— Só depois que você aprender onde é o seu lugar, raposinha! — devolveu, no mesmo tom brincalhão.

— Fala sério, Iwako-kun, o horário de pico estava um caos e você nem mostrou a cara... — Assim que escutamos a voz do Hiyato, congelamos na mesma posição em que estávamos. Por algum motivo, meu coração acelerou. Nossa, por que eu estou tão nervosa? — O que exatamente... vocês estão fazendo? — perguntou num misto de genuína surpresa e diversão.

Nada não! É só Iwako dando uma de criança!, tentei dizer, mas por algum motivo algo na minha garganta travava a passagem de ar.

— Nada não, é só eu e a Aohono-san... — Iwako fez uma pausa, deu uma olhada de cúmplice para mim, e prosseguiu: — Ou melhor, eu e a raposinha nos entendendo melhor.

Iwako terminou dando um sorriso de menino travesso, o que foi muito fofo, mas... Na frente do Hiyato... Recomponha-se, Michi!

— Pois é... — começou Hiyato, nos analisando de cima a baixo. — Bem até demais.

Pronto. Esse foi o fim para mim. Eu não precisava nem me preocupar em tentar esquecer qualquer sonho infantil que eu tenha tido com o Hiyato, porque agora sim seria impossível.

— Ah, mas não se preocupe, Hiyato! Digamos que a nossa raposinha prefere ga... — Iwako foi interrompido por um beliscão meu. Ok, eu deixei de me importar, mas não é para tanto. — Ai! Por que você...?

Bastou que ele olhasse para os meus olhos o fuzilando que ele entendeu que era para fechar a droga da boca antes que mais besteira escapasse. Mas não pude deixar de sentir uma pitada de culpa quando vi a sua cara de “eu fiz algo de errado?”, como se a culpa fosse minha.

Não, Michi, não se renda a um par de olhinhos de cachorro! Ele quase queimou todo o seu filme com o Hiyato!

Hiyato pigarreou, como quem dissesse “eu ainda estou aqui”. No mesmo instante, eu tratei de me afastar do Iwako, ciente das minhas bochechas escarlate, e fiz questão de não olhá-lo diretamente nos olhos e abaixar a cabeça, torcendo para que meu cabelo laranja cobrisse o rubor.

De canto de olho, pude perceber que Hiyato analisava bem a situação, ora olhando para mim, ora olhando para o Iwako. Passados alguns segundos nesse terrível desconforto, Hiyato andou a passos lentos em minha direção.

Pronto, é hoje.

— Bem, quem diria, não é? — sua voz era morna e sedutora. Ele sabe bem o que faz... e isso é perigoso. — Iwako não é o tipo de pessoa que se abre para um estranho tão rápido... — A essa altura, Hiyato já estava a um braço de distância de mim.

Ai meu Deus...!

— E o que é que tem? — resmungou o Iwako, visivelmente não percebendo a tensão existente entre eu e o garoto de supostos 18 anos a minha frente.

— Hm... Nada não. É só que... — a sua voz foi abaixando, e, a medida que diminuía, seu rosto ia se aproximando da minha orelha esquerda, deixando a sua cabeça entre a minha e a do Iwako. —... eu achei impressionante — sussurrou.

Cada pelo do meu corpo se arrepiou naquele instante. Sim, o Hiyato sabe o que faz, e é perigoso... Mas também é muito bom nisso.

Eu estava prestes a ceder à minha imaginação quando Hiyato repentinamente recuou e se afastou uns dois passos, e se dirigiu à porta.

— Bem, não era sobre isso que eu ia falar... — disse, sumindo no vão da entrada.

Com a mão um pouco desgovernada, pus uma mecha de cabelo atrás da orelha, e respirei fundo. Michi, você está parecendo uma idiota. Não, pior; você é uma idiota por completo. Caramba, vê se reage! Você não pode deixar o Hiyato chegar e fazer o que bem entender!, tentava gritar comigo mesma, mas não adiantava. Eu precisava de um motivo melhor do que os 25 anos do Hiyato para esquecê-lo.

Enquanto isso, o Iwako me olhava confuso do outro lado do balcão. 500 anos e não entende o que aconteceu? Há... e depois sou eu quem tem muito para aprender. Ele franziu o cenho, como se perguntasse “está tudo bem?’, e eu devolvi um tímido sorriso de “sim, obrigada”.

—... Eu queria falar sobre isso com vocês. — Hiyato ressurgiu da porta de entrada, apontando para as suas costas. — Nós temos visita. E más notícias.

— Nossa, que bela forma de se apresentar a chegada de alguém. — Eu reconheci aquela voz de imediato, mesmo que só tenha escutado ela recentemente. Do vão da porta atrás do Hiyato, surgiu uma figura pálida, de olhos brancos e cabelos curtos, trajando uma camisa bem decotada de manga longa que favorecia a sua silhueta e calça justa e saltos agulha, todos tão negros quanto a cor de seu cabelo. — Mas, por ter sido direto e preciso, acho que vou relevar.

— Yue-san... — murmurei. Como sempre, ela está deslumbrante.

— Michi-chan, é bom ver que você está bem — disse amavelmente.

— Bem que eu senti que algo estava fedendo daquela porta — resmungou Iwako, que não fazia questão de esconder o seu desgosto para com Yue-san.

Ela se limitou a abrir um belo sorriso afiado e devolver:

— Vejo que a carrocinha não passou aqui ainda para te pegar, vira-lata.

Outra coisa que eu queria muito saber: por que o Iwako e a Yue-san brigam tanto um com o outro, mesmo depois que a Yue-san o salvou...?

— É porque, diferente de você, eu não fui abandonado.Pronto, está aí o antigo Iwako-san de sempre.

Não vou mentir, tive que me segurar para não rir nessa hora. Embora tenha mantido a expressão fria e controlada, Yue-san não conseguiu disfarçar a pequena veia que saltava da sua testa.

— Há controvérsias, menino vira-lata. Sem falar que eu não sabia que pessoas que decidem fugir são consideradas abandonadas... — Ela fingiu uma falsa preocupação, como se precisasse pensar muito nisso.

Iwako já estava quase no seu limite, e quase quebrou a ponta do balcão na qual estava segurando.

Wow, esses dois estão ficando sério... Só por precaução, dei dois passos para o lado e deixei o caminho entre eles livre. Hiyato provavelmente sentiu a minha angústia — ou só não queria que seu balcão de entrada fosse destruído — e interveio.

— Iwako-kun, se acalme. Yue trouxe notícias importantes, e eu preciso da sua ajuda.

Iwako, no mesmo instante, mudou a sua postura para uma de preocupado.

— Muito bem lembrado, Hitori-kun... — disse a Yue-san, já se dirigindo a uma das mesas do restaurante enquanto mexia na bolsa.

Hiyato... — ele a corrigiu.

Mais uma pergunta: por que o Hiyato tem mais de um nome?

... Por sinal, você é o que mais deveria estar preocupado — ela concluiu, no seu mesmo tom de voz amável de sempre.

Nós três paramos alguns segundos para analisar o que ela tinha acabado de dizer.

Yue-san não deu tempo para mais perguntas; da pequena bolsa tiracolo, ela puxou um pergaminho um tanto grande demais para aquela bolsa. Ah, se a J. K. Rowling pudesse ver isso...

— Pode, por favor, me explicar por que eu recebi essa carta exigindo que eu comparecesse no tribunal do Clã Inuyoukai para o seu julgamento por infração ao juramento de sigilo?! — Dessa vez, nem mesmo a Yue-san conseguiu manter a compostura; ela realmente estava chocada.

Mas certamente não mais que o Iwako e o próprio Hiyato, que estavam pálidos e boquiabertos, como se a vida não fizesse mais sentido. E, claro, eu era a única que não entendia o suposto absurdo que era aquilo tudo.

— Isso é... tão ruim assim? — tentei perguntar, da forma mais delicada possível.

— Aohono-san — disse a Yue-san, num tom bem tenso —, o Clã Inuyoukai é um dos clãs que mais levam lealdade a sério. Sabe qual é a punição para a quebra de um juramento?

Eu podia ver desespero transpirando pelos poros de cada um deles, mas ainda não conseguia entender.

— Não... — murmurei.

— Pena... — sussurrou o Hiyato —... de morte.

O mundo parou mais uma vez naquele dia.


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Notas finais do capítulo

Antes tarde do que nunca kkkk
Bem, espero que tenham gostado (sim, o shoujo está finalmente nascendo xD)
Somente para complementar o meu belo texto lá em cima: Feliz Natal, seus lindos!
Um bjo especial a todos vcs que acompanharam a história até agr ;*



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