O mundo sombrio de Thomas Elliot escrita por Black Psychopath


Capítulo 3
A terrível Elizabeth Bathory




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Raios cruzaram o céu, iluminando as gotas de chuva como pedras preciosas em um veludo negro. Seward sabia que devia buscar proteção, mas não conseguia fazer nada além de olhar, hipnotizado, para a beleza exótica e perigosa diante de si. A pele clara de Bathory contrastava fortemente com seus cabelos de meia- noite, e ela se movia com a elegância silenciosa de um predador. Seus olhos azuis, gelados, buscaram algum movimento na rua, enquanto outro relâmpago iluminava o terreno diante dela. Quando virou- se para o vinhedo, Seward se jogou na lama para não ser localizado.

Ele prendeu a respiração, tentando não se mover e ignorando as câimbras das pernas. Estava desesperado para olhar para cima, mas o relâmpago refletindo em seu rosto claro o revelaria de imediato. Assim, continuou grudado no chão, o nariz a dois centímetros da lama. Depois do que apareceu uma eternidade, enfim permitiu-se erguer os olhos, meio que esperando ver Bathory junto a ele como uma cobra pronta para atacar. Mas ela não estava à vista.

Lutando contra o medo crescente, Seward se limpou da lama grudenta com um ruído repulsivo. Alto demais. Seus olhos correram ao redor. Ele precisava se mover, mas tinha de esperar que o sangue voltasse a circular por suas pernas. Sentia-se como estopa molhada, as roupas grandes demais pesando sobre seu corpo.

O vento soprou, e ele se virou de repente. Ainda ninguém à vista. Recuperando a determinação, deu um passo decidido na direção da construção de pedra e sentiu a lama molhada encharcando seu pé nu. Seward olhou para trás e viu um de seus sapatos preso no lodo. Resmungou pragas e quase caiu tentando se equilibrar para calçá-lo. Tropeçando, cruzou a trilha pantanosa e foi até uma palmeira. Seward sabia que estava fazendo um barulho terrível, mas esperava que a chuva o abafasse. Finalmente, chegou à árvore próxima da vila. Quando criança ele era bom em subir em árvores, mas cinco décadas depois esse não mais o caso. Mas não tinha escolha. Ele respirou fundo e se ergueu até o galho mais baixo.

Da árvore, Seward passar para a marquise da calçada dianteira. As telhas de barro estavam escorregadias com a chuva. Seward se aprumou agarrando a grade decorativa de ferro batido e olhou ao redor, aterrorizado com a ideia de a condessa Bathory poder estar rindo nas sombras enquanto ele fazia papel de tolo. Viu uma abertura acima de uma das janelas do segundo andar e buscou proteção a sua sombra, parando para recuperar o fôlego. Apurou a audição, mas não escultou nada além da chuva caindo, no ritmo de seu coração.

Espiou pela janela e descobriu que ela dava para o que um dia deveria ter sido um grande salão de baile. Naquele momento, vazio e mergulhado em sombras, aquele ambiente o enervava. Era como olhar para um museu à noite. Ou pior... para uma tumba.

Seus pensamentos foram interrompidos por duas figuras brancas reluzentes se movendo pelo piso do salão. Elas deslizavam sem esforço e pareciam estar carregando algo que lembrava uma canastra ou arca. Temendo ficar tempo demais em um lugar e ser visto, Seward agarrou a grade, se ergueu de um balcão para o seguinte e passou para outra janela.

Nesse andar só havia a luz de algumas poucas velas espalhadas e das brasas na lareira. O suficiente para Seward ver que o que lhe parecera dois espíritos eram na verdade belas jovens vestindo túnicas brancas ondulantes. Onde estava Bathory? Seward não conseguia se livrar do medo terrível de que ela estivesse atrás dele.

Seu coração quase saltou do peito com o barulho das portas francesas se abrindo. A condessa Bathory entrou no salão do baile. Seward, aliviado, se escondeu nas sombras.

Bathory soltou a capa do pescoço e a jogou descuidadamente sobre o ombro, revelando sua forma escultural. Ela vestia traje a rigor, com camisa branca engomada com colarinho de ponta virada e gravata preta. Em suas linhas severas, o alfaiate descobrira um meio de acentuar sua voluptuosa figura feminina, ao mesmo tempo que projetava uma força masculina.

A condessa caminhou na direção das duas mulheres.

—Meus amores... - cumprimentou ela.

E pelo tom de voz lânguido Seward identificou algo infinitamente mais sinistro. Ele sentiu um arrepio quando Bathory beijou nos lábios apaixonadamente cada uma daquelas Mulheres de Branco.

— Que brinquedinho vocês me trouxeram?

A loura quebrou o grande cadeado da arca com as mãos nuas, um gesto perturbadoramente natural para alguém de aparência tão delicada. Ela abriu a tampa com um floreio, como um garçom orgulhosamente apresentando o prato principal. Dentro da caixa havia uma mulher jovem, amarrada, amordaçada e, sem dúvida alguma, aterrorizada.

Bathory levou a mão à bota e sacou uma lâmina metálica e curva. Seward reconheceu a faca no mesmo instante: um bisturi de amputação.

Os olhos da jovem se arregalaram à visão da lâmina. Em um movimento rápido demais para Seward pudesse ver, Bathory levou o bisturi na direção da jovem. A mordaça e as cordas que prendiam suas mãos caíram no fundo da arca. Bathory colocou a ponta da lâmina sob o queixo da garota. Seward agarrou o punho de sua faca de prata de arremesso.

Em vez de fazer um talho sangrento, Bathory usou a lâmina para guiar gentilmente a garota para fora da caixa. Seward relaxou o punho. A garota tocou o rosto e os punhos para ver se a lâmina a ferira. Não parecia haver sequer um arranhão. Seward viu a condessa contornar a jovem, avaliando seus trajes. Ela usava um vestido de lã verde-azulado que a cobria com recato do pescoço aos tornozelos. Seward se enfureceu ao pensar no que os olhos de Bathory deviam estar vendo - um belo pacote esperando para ser desembrulhado.

A garota permanecia totalmente imóvel. O bisturi cortou novamente. O vestido e as roupas de baixo caíram como peças de um quebra-cabeça, deixando a pele delicada ilesa. Apesar dos esforços desesperados da jovem para recuperar o tecido, mais ele caía, deixando-a completamente exposta.

Bathory não piscou uma só vez; sem dúvida embriagava-se com a visão. Tremendo de medo, a garota se escondeu nas sombras, escondendo o corpo. As Mulheres de Branco riram.

Seward seguiu até a janela seguinte para poder ver melhor. Dali, notou que Bathory apertava os olhos. A luz tremeluzente das velas se refletia no pequeno crucifixo de ouro no pescoço da jovem. O bisturi de Bathory avançou e recuou tão rápido que Seward quase duvidou que houvesse se movido. Mas era inconfundível o som do metal batendo no piso de mármore, a corrente partida se acumulando em uma pequena pilha. A jovem engasgou de surpresa - uma pequena gota de sangue brilhou como uma pedra preciosa na base de sua garganta. As Mulheres de Branco saltaram sobre ela como cães selvagens.

— Maria, mãe de Deus, me protegei-a! - rezou Seward, as palavras saindo em um gemido triste.

Ele viu, horrorizado, as Mulheres de Branco erguerem a moça nua e a pendurarem de cabeça para baixo pelos tornozelos em uma polia, deixando-a suspensa no teto. O demônio de cabelos escuros deu a Bathory um chicote de couro preto de nove tiras com ganchos de mental curvos em cada ponta. Os Lábios vermelhos da condessa se curvaram em um sorriso sem humor, seus olhos sobrenaturais ainda concentrados na única gota de sangue, que então escorria pelo pescoço da vítima. Com um golpe preciso, Bathory feriu-lhe a carne com o chicote, vendo, ansiosa, o sangue começar a escorrer mais livremente.

Seward desviou os olhos, mas não pôde deixar de ouvir os gritos. Agarrou a cruz pendurada em seu pescoço, sem que isso o confortasse. Seu instinto era entrar para salvar a pobre garota, mas essa certamente teria sido uma decisão tola. Um velho não era páreo para aquelas três. Elas o fariam em pedaços. “Independentemente  do que você veja ou sinta, nada pode distraí-lo de sua obrigação.” Essa fora a última mensagem do Benfeitor.

Seward, enfim, tomou coragem para olhar de novo pela janela e testemunhar a insanidade depravada da vila.

Bathory mantinha um ritmo firme, com as pontas metálicas zunindo no ar. A força de cada golpe fazia sua jovem vítima balançar como um pêndulo. O sangue que brotava dela formara rios. Enquanto isso, as Mulheres de Branco, no piso abaixo dela, abriam a boca para apanhar as preciosas gotas que caíam como uma espécie de chuva infernal.

Seward sabia que estava assistindo a uma verdadeira loucura. Quando o sol se erguesse, aquelas Três criaturas já estariam deitadas em seus caixões, adormecidas e vulneráveis, e essa seria sua única oportunidade de livrar o mundo daquele mal. Ele iria cravar a lâmina folheada a prata em seus corações, cortar suas cabeças e queimar todo os restos.

Mas Seward era atormentado pela culpa de se manter parado enquanto aquela garota inocente era torturada. Ele apertou a mão sobre a lâmina até gotas de sangue escorrerem entre seus dedos. Se ele não podia poupar aquela jovem da dor, pelo menos podia senti-la junto com ela.

Os gritos da garota por fim cessaram, mas continuaram ecoando fantasmagoricamente na cabeça de Seward, evocando lembranças dolorosas da segunda morte de Lucy. Uma morte que ele próprio ajudara a provocar. Mais uma vez, as recordações precipitavam sobre ele: a raiva que sentira pela profanação do túmulo de sua amada; o choque de descobrir seu corpo ainda quente e rosado, parecendo cheio de vida; a visão de Samuel Arthur cravando a estaca em seu coração enquanto a criatura que se parecia com Lucy dava gritos de gelar o sangue; e as lágrimas que em silêncio derramara enquanto enchia a boca do monstro de alho e soldava sua tumba para sempre. No entanto, nenhuma dessas emoções era tão vergonhosa quanto a que Seward escondera por todos aqueles anos, até de si mesmo: a secreta satisfação de ver Samuel perder Lucy. Se não podia tê-la, pelo menos ninguém mais poderia. Era uma emoção horrenda, e toda a escuridão que se abatera sobre sua vida depois disso fora merecida. Aceitar aquela missão final era seu ato de contrição.

 

Seward foi arrastado de volta ao presente pelo repentino silêncio. No salão de baile embaixo, a jovem desmaiara de dor. Ele podia ver seu peito se movendo, portando ela ainda não morrera. Bathory jogou longe seu chicote, irritada como um gato quando o rato deixa de brincar após seu pescoço ter sido quebrado. Seward, sentindo uma umidade quente no rosto, tocou a face: estava chorando.

— Preparem meu banho!  - ordenou Bathory

As mulheres de Branco empurraram a jovem pelo trilho metálico do sistema de transporte, levando-a para outra sala. Bathory se virou para acompanhar, pisando intencionalmente na cruz de ouro, girando o pé e esmagando-a com o calcanhar. Satisfeita, seguiu para a sala adjacente, tirando as roupas, uma a uma, pelo caminho.

Seward se inclinou no balcão procurando por outra janela que desse para a sala adjacente. A chuva havia parado. Seu barulho não iria mais abafar os passos dele nas telhas de barro. Lenta e cautelosamente, ele seguiu para a janela seguinte e olhou para ela. O sistema de trilhos terminava bem acima de um banho ao estilo romano. Dúzias de velas iluminavam Bathory, que, delicadamente, tirava as calças. Pela primeira vez Seward tinha uma boa visão dela, nua em pelo. A condessa não se parecia em nada com as prostituas que encontrara nos quartos dos bordéis de Camden. As curvas luxuriantes de seu corpo, branco e suave como porcelana, teriam impedido a maioria dos observadores de sequer vislumbrar a crueldade calculista de seus olhos – mas não Seward. Ele vira uma olhar como aquele de antes.

Mas nada no passado negro do médico poderia tê-lo preparado para a cena macabra que veio em seguida. A jovem, emitindo gargarejos patéticos, estava suspensa acima da beirada da banheira de mosaicos vazia. Bathory, dentro da banheira, de braços esticados, com a cabeça curvada para trás, magnificamente nua, voltou as palmas das mãos para cima. Era um sinal. Naquele instante, a Mulher de Branco de cabelos escuros usou a unha para cortar a garganta da jovem e a empurrou até o final do trilho, no ponto acima de onde Bathory esperava. Seward viu Bathory se transformando na criatura que ele já tinha enfrentado em seu passado.

Que vão todas para o inferno! Tomado de exaltação, Seward enfiou a mão no fundo falso da maleta médica para pegar uma pequena besta, carregando a arma com uma flecha de ponta de prata. Se essa decisão imprudente significaria a sua morte, que fosse. Melhor estar morto que permitir que aquele terrível mal se prolongasse por qualquer segundo.

Seward apontou a besta entre as barras de ferro e se preparou para disparar na criatura. Foi quando percebeu algo. Seus olhos se arregalaram. Havia um grande cartaz na mesa junto a janela, que parecia brilhar de um modo sobrenatural, como se pintando pela lua. As enormes letras em relevo se destacavam:

 

A VIDA E MORTE DO REI RICARDO III,

DE WILLIAM SHAKESPEARE

7 DE MARÇO DE 1912

TEATRO ODÉON

RUA DE VAUGIRARD, 18

TELEFONE PARA RESERVAS: 811-42

VINTE HORAS

PARIS, FRANÇA

 

ESTRELANDO O ATOR ROMENO

BASARAB

 

 

Ele involuntariamente deu um passo atrás, esquecendo-se da inclinação do telhado. A telha sob seu pé quebrou e deslizou, estilhaçando-se na calçadas de pedras. Ele congelou.

No grandioso salão de baile, a Mulher de Branco de cabelos escuros virou ao som que vinha do lado de fora. Ela disparou para a porta, seus olhos sem alma examinando o horizonte em busca de algum sinal de vida. Não viu nenhum. Permanecendo nas sombras, seguiu até a lateral da casa, de onde tinha ouvido o som. Mais uma vez, nada. Estava prestes a voltar para casa quando notou uma telha quebrada no chão manchada com uma gota de sangue fresco. Sangue humano. Seu aroma pungente era inconfundível. Ela o provou, ansiosa, e imediatamente cuspiu. O sangue estava poluído com substâncias químicas.

Com agilidade reptiliana, a Mulher de Branco escalou a parede para inspecionar melhor a vila. No teto, avistou uma faca de prata suja de sangue abaixo de uma das janelas. Apenas um caçador inexperiente seria ingênuo o bastante para carregar uma lâmina de prata.

Mas a Mulher de Branco compreendeu que sua senhora já não estava mais segura. Teriam de fugir de Marselha naquela noite. Assim, voltou apressadamente para dentro de casa.

 

Seward sabia que Bathory e suas Mulheres de Branco deixariam Marselha naquela noite. Elas decerto fugiriam para Paris, e de avião a morte viaja rápido. Mas graças ao anúncio que tinha visto, Seward se deu conta de que estava mais uma vez em vantagem. Conhecia os planos delas. A condessa Bathory e sua companheiras estariam no teatro na noite seguinte.

Ele se permitiu um sorriso soturno. É onde terá lugar a batalha.


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