Deixe-me ir escrita por GabiLavigne


Capítulo 9
1985


Notas iniciais do capítulo

Gente, sentimentos aflorando à mil. Entendo que esteja um pouco confuso, porém tentem ver de uma perspectiva diferente. Agradeço às organizadoras do concurso, por me fornecerem uma oportunidade tão maravilhosa e é claro a quem teve a coragem de ler. Muito obrigada mesmo.

Boa Leitura e até alguma próxima vez!



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A dor alojada em meu peito, parece amortecer as sensações que se acumulam ao meu redor. Tudo aparenta surreal aos meus olhos. Quando os abro, recebo apenas uma paisagem branca e estagnada. Onde estou? Onde está Makayla?

Meus olhos se perdem em meio ao local desnorteante. Sinto-me perdida, um caos. Eu deveria estar em casa. Onde estou?

Começo a dar alguns passos através do ambiente silencioso. Tudo que vejo é uma infinidade branca. Não há nada. É como se eu estivesse em meio ao vazio imutável, que nos aguarda em algum momento da vida. Estou morta?

Será isso, desaparecer?

Balanço a cabeça, sentindo uma brisa repentina e gélida. Medo começa a manifestar-se de forma intensa e meus passos se aceleram, desorientados em desespero. Eu não deveria estar aqui. O que tudo isso significa?

Em meio à corrida, tropeço e despenco de forma desajeitada. Para a minha surpresa não sinto o impacto. Fecho os olhos por alguns instantes e quando os abro, me surpreendo. Agora há um piso polido sob mim. Ergo o olhar e reconheço móveis. De imediato, reconheço o lugar e meu coração se encolhe amargamente. Eu voltei? Essa é a minha casa de 2020. Como eu posso estar aqui?

Ergo-me assustada e olho em volta. Onde está o nada que antes me envolvia? Como eu fui parar neste lugar, que desperta lembranças horrendas? Reconheço que estou na entrada e me viro para a saída. Irei enlouquecer se ficar nesse lugar. Será esse o preço por mexer com o tempo?

O som do impacto de algo com o chão, desperta-me do pânico que surgia. Meu coração bate firme em eu peito e minhas mãos tremem de forma incontrolável. Respiro fundo e me viro para analisar a fonte do som.

Arregalo os olhos e cubro a minha boca com as mãos, preenchida pelo horror que aquela visão me estende de maneira inesperada. A mesma Ava que eu deixei cair do terraço, jaz à minha frente. Caída no chão como uma marionete desatada de suas cordas. Aproximo-me vagarosamente e com determinada cautela. Então vejo o sangue afetado que se esvai de seu corpo frágil. Está por toda parte. Não. Balanço a cabeça e corro em direção à saída.

Preciso sair daqui!

Assim que a abro bruscamente, luz invade os meus olhos e me obriga a fecha-los. Assim que os reabro, posso reconhecer que estou em um lugar diferente. Pessoas. Muitas pessoas caminham pela rua, conversam entre si e trocam sorrisos. Olho para trás, atordoada, e surpreendo-me ao perceber que a porta para a casa da Ava ensanguentada não está mais lá.

Amedrontada, volto a olhar para a frente. Ao invés do mar de pessoas alegres, encontro seus corpos caídos pela avenida. Sangue se estende sob eles como um extenso tapete. Horror se infiltra em minhas veias. O que significa tudo isso? Onde estou?

Começo a correr por entre os corpos ensanguentados, até avistar uma garotinha parada em meio ao massacre mútuo. Apresso o passo até ela e vejo que seu rosto se encontra inundado por lágrimas. Um urso de pelúcia pende de sua mão, enquanto ela enxuga seu olho com a outra. Seus olhos verdes me fitam.

– É tudo culpa sua. – Murmura com a voz trêmula e sufocada pelo choro.

Arregalo os olhos diante da acusação, mas o que está acontecendo? Não consigo reagir diante de suas palavras árduas e dou um passo incerto para trás. O chão sob meus pés parece sumir.

Um choque brutal corrompe meus sentidos, quando a pupila da garotinha começa a se revirar em colapso. Uma fina rajada de sangue lhe escorre pelos lábios e então ela desaba no chão, em meio aos outros cadáveres que nos cercam. Sangue começa a se expelir de seu corpo sem vida. Horrorizada me afasto. Vejo como ela se despedaça aos poucos e não consigo entender o que está ocorrendo. Tento correr, procuro livrar-me da presença de todos esses mortos, do sangue que mancha meus pés. Mas ele não sai. A imagem da menina desabando ainda lateja em meu peito, como uma lembrança amarga. O que significa tudo isso?

O ar se comprime em meus pulmões e forço-me a parar e recuperar o fôlego. Ao meu redor ainda vejo centenas de corpos. Por que isso nunca acaba? Eu não quero mais ver isso! Faço menção de voltar a correr em direção ao nada intrigante, quando uma dor se manifesta em meu peito e se espalha ao longo do meu corpo. Meu corpo inteiro começa a latejar em ritmo uniforme e uma sensação desagradável se manifesta em meu estômago. Cubro-o com as mãos, quando uma dor forte me perfura como uma faca. Quero gritar, porém minha garganta parece incapaz de produzir som algum. Arregalo os olhos e sinto minhas órbitas arderem. Perco o controle.

O gosto enferrujado de sangue se expande em minha boca e então, sem conseguir movimentar-me, desabo. Despenco contra o chão, contra a terra, e a visão daquela realidade quebrantada se esvai de meus pensamentos. A escuridão me toma para si e algo ainda mais doloroso vem buscar-me em meio a ela.

“É realmente isso que você quer para o mundo, Ava?”

~

Desperto em meio à um grito sufocado. De olhos arregalados, tento distinguir o local em que me encontro agora. Meus olhos atravessam o teto nada gracioso, até a parede preenchida por pôsteres de artistas que admiro. Uma sensação amena retoma o meu peito e lágrimas descem dos meus olhos. Estou em casa. Estou finalmente em casa.

O alívio não me deixa capaz de evitar o colapso emocional e choro de forma terrível e alarmante. Sinto um calor invadir o meu coração e além desse calor, sinto outro em volta da minha mão. Levanto a cabeça e vejo uma Makayla adormecida, agarrar a minha mão. Abro um sorriso. Makayla. Em seguida lembranças de 1993 me perseguem. Observo a sua expressão pacífica e inocente, enquanto ela se perde no sono. Ela irá mesmo morrer?

Lágrimas ultrapassam meus olhos e um aperto se faz presente onde antes havia o calor do retorno. Em seguida minha sanidade volta e analiso a situação.

Estou em casa. O que isso significa?

Memórias do sonho estranho, porém real, me atormentam. Me afogo no medo iminente. O que fora aquela visão horrível? Relembro da voz que me acometeu no fim.

É realmente isso que você quer para o mundo, Ava?

Compreendo o que isso quer dizer. Eu havia desejado desistir de me sacrificar pelo mundo, quando descobri que tudo que eu queria tanto proteger para a minha família, seria em vão já que eles morrerão de qualquer forma. Senti desespero e solidão em reconhecimento a este fato. Agora tenho uma noção maior da responsabilidade que me aflige.

Apesar disso, confesso que a minha determinação de desempenhar tal papel se esvaiu completamente. Meu objetivo para essas ações se foi. Não importa o que eu tente, eles não estarão aqui de qualquer forma.

Fecho os olhos e suspiro. Ainda assim não posso deixar o mundo acabar daquela forma. Não posso me sentir em paz, sabendo que crianças sofrerão daquela forma, que a destruição em massa deixará para trás o vazio da desilusão. O vazio da morte.

Será que aquilo fora apenas um sonho?

Quem sabe.

Tudo que posso fazer agora é aguardar pelo meu fim.

Makayla desperta de seu sono e ao perceber que estou acordada abre um sorriso aliviado.

– Ava! – Desajeitadamente, seus braços me envolvem num aperto desamparado.

– Mak... – Murmuro em seu ouvido – O que houve?

– Nós chegamos num lugar onde tinha um velho esquisito. Você estava inconsciente e o velho avisou o nosso paradeiro a mamãe e ao papai. Depois disso você ficou dormindo. – Seus olhos azuis se enchem de lágrimas – Eu achei que você não ia acordar! Eu fiquei com tanto medo de aquele sonho, no fim, ser verdade! Sua idiota!

Ergo-me e coloco uma mão sobre sua cabeça. Abro um pequeno sorriso, sentindo a luz do sol em minha pele.

– Obrigada Mak. Está tudo bem. – Levanto-me da cama – Onde estão mamãe e papai?

Emburrada ela aponta para a escada no corredor. Agradeço com um aceno de cabeça e sigo o caminho.

Preciso ser rápida, não sei quanto tempo me resta.

Quando avisto os meus pais, da forma como sempre foram, sentados à mesa, sinto lágrimas de alegria se manifestarem. Eu senti tanto a falta de vocês, penso. Minha mãe arregala os olhos e se aproxima.

– Onde você estava? – Seu abraço desesperado e acolhedor esmaga o meu coração. Envolvo-a com meus braços.

– Desculpe, mãe. Eu sinto muito. – Sussurro com a voz trêmula.

Em seguida corro até o meu pai que me recepciona de braços abertos. Pelos seus olhos avermelhados posso constatar que ele também se incomodou com a minha ausência.

– Eu fiquei tão preocupado, Ava. Não pense que sairá ilesa disso. Terá castigo por mais de um mês.

Abro um sorriso. Como eu queria poder viver tempo o suficiente para cumprir o castigo, penso triste comigo mesma.

~

De uma forma ou de outra, consegui permissão para ir avisar à Catryn sobre as minhas condições. De acordo com minha mãe ela também estava louca de preocupação. Sinto-me segura enquanto caminho pelas ruas, que conheci durante a minha vida inteira. Sentirei falta de caminhar dessa forma, sob o sol, como uma adolescente comum que não se preocupa com nada além de notas e relacionamentos amorosos. Sorrio diante deste pensamento. Seria muito bom.

– Ava! – O grito exagerado que ecoa por toda a rua só pode pertencer à Catryn, que se aproxima numa velocidade incrível, agarrando-me com força – Ava, sua louca! Eu estava morrendo de preocupação!

Abraço-a da mesma forma e abro um sorriso caloroso quando nos afastamos.

– Sinto muito. Será que pode me perdoar? – Faço a melhor expressão de auto piedade que sou capaz de revidar.

A face pálida de Catryn se ilumina num exuberante sorriso e seus cachos ruivos balançam pelo ar, enquanto ela se prende ao meu braço.

– É claro, mas primeiro você terá de fazer muitas coisas para compensar! – Responde, retomando a sua postura entusiasmada de sempre.

Dessa forma passo algumas horas conversando como uma garota normal. Acolhendo as palavras reconfortantes da minha melhor amiga e despedindo-me dela em silêncio.

~

A tarde lentamente se encaminha para o seu fim e posso sentir como um vazio se apossa cada vez mais do meu interior, enquanto caminho pelas ruas mal iluminadas.

Ainda há uma coisa que eu preciso fazer, antes de retornar para casa pela última vez.

Interrompo meus passos, diante de uma casa branca e bato na porta. O coração se agitando em meu peito. Respiro fundo e procuro acalmar minhas mãos trêmulas. A porta se abre e o vejo.

O cabelo escuro lhe recai sobre a testa, enquanto seus olhos vívidos me fitam envergonhados e lindos. Sua boca se abre em surpresa e abro um sorriso.

Sem pensar mais alguma vez a respeito, lanço-me contra Cody e agarro-o num beijo pretensioso. Sinto o anseio e desejo que me invade. Em seguida, me afasto, o rosto ardendo. Meu coração bate à mil, quando vejo como ele enrubesce em choque. Seu rosto avermelhado me deixa feliz e abro um último sorriso para ele antes de me virar e correr para casa.

Adeus, Cody. Eu te amo.

~

Não acredito que fiz isso, este é o único pensamento que ecoa em minha cabeça, enquanto caminho para casa. Um sorriso bobo estampado em meu rosto e meus dedos repousados sobre meus lábios. Meu corpo ainda treme em reação à minha atitude.

Assim que atravesso a porta de casa sou repreendida pelos meus pais. Ao invés de me inocentar abro um sorriso para eles e sinto-me feliz.

Um pensamento absurdo se infiltra em meus pensamentos. Pode ser que tudo talvez não tenha sido verdade? Pode ser que eu ainda tenha a chance de viver?

Quando alguém bate na porta e eu a abro, a doce ilusão que eu estava tentando criar, desaparece. Emmett se encontra diante da porta. A expressão amena e tranquila. Ele apenas coloca uma mão sobre o meu ombro e acena com a cabeça.

Suspiro ruidosamente e revido um sorriso forçado. Em seguida fecho a porta.

Isso foi um aviso. Está na hora. Que o homem que destruiu minha vida me deixe em paz neste momento, acuso.

Abraço outra vez os meus pais e eles me recepcionam um tanto surpresos com a minha reação.

– Mãe, Pai, amo vocês, tá? – Não posso deixar os meus olhos marejados ou vou preocupa-los. Tento acumular o máximo de autocontrole possível – Por favor, vivam enquanto der.

Os dois trocam um olhar significativo, porém antes que possam responder algo, subo as escadas com certa euforia. Quase esbarro com Makayla no corredor. Abro um sorriso enorme quando vejo que ela carrega produtos variados em seus braços.

– Outro experimento? – provoco.

– Dessa vez eu tenho certeza que vai funcionar! – garante Makayla com animação.

Repouso uma mão sobre sua cabeça e a acaricio.

– Tenho certeza que vai. – Dou-lhe um beijo na testa e sussurro – Adeus, Mak.

Ela parece não notar, porém meu coração parece pesar uma tonelada quando a vejo desaparecer no banheiro. Que você possa ser feliz enquanto der, irmãzinha. Respiro fundo e cerro os punhos. Determinada caminho em direção ao meu quarto. Observo aquele papel de parede cafona e os artistas que eu costumava apreciar. Encaro o meu reflexo exausto no espelho.

Respiro outra vez e o peso que antes estava depositado sobre mim, se intensifica. Lágrimas escorrem em razão dele e me sento em minha cama. Recosto-me na parede e encaro o céu que se estende além da janela. Que lindo não é?

Pare de chorar, Ava. Você está fazendo isso pelo bem de todos.

Sinto como um vazio toma conta de mim. Sinto-me cada vez mais leve, menos preocupada, menos carregada pelo peso iminente da culpa. Inspiro e expiro. Deixo a mente aberta.

Penso nos sorrisos de todas as crianças que já vi, penso nas famílias almoçando juntos e irmão brigando pela sobremesa. Penso em cada pequeno sentimento que nos torna humanos. Que nos caracterizam como um ser pensante, um ser capaz de viver de suas escolhas e de se submeter a elas. Materializo toda a bondade que deve existir no mundo e espero com todas as minhas forças, que ela um dia seja capaz de superar o mal.

Ainda que existam pessoas que não mereçam, sei que estou fazendo a coisa certa. Estou preservando um futuro. Preciso ir, para preserva-lo. Para resgatar os sorrisos que serão perdidos e a destruição que será ocasionada. Preciso fortalecer as esperanças num futuro melhor e dar tempo o suficiente para que muitos tenham a sua segunda chance. Que aquela doença maldita nunca os alcance.

Preciso ir, para que todos possam viver e desfrutar do caminho ao qual a vida nos direciona. Seja ele doloroso ou alegre. Penso em minha família, em meus amigos e em tudo que vivi até agora. Em tudo que fui capaz de presenciar neste mundo. Ah, como eu queria ter tido mais tempo. Será que se eu soubesse disso antes, poderia ter feito alguma diferença? Eu não sei.

Preciso ir para que a vida se restaure e os sorrisos não desfaleçam. Fecho os olhos e deixo tudo aflorar para fora de mim, entrego-me à inexistência que já me aguardava. Deposito-me em seus braços. Preciso ir, digo a mim mesma uma última vez.

Então, deixe-me ir.


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