Um Passo Mais Perto escrita por Bowie


Capítulo 5
Um passo pra frente


Notas iniciais do capítulo

O narrador do capítulo é Paul.



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#FLASHBACK ON#

Naquele dia mais cedo.

Me espreguicei como todas as manhãs. Virei para olhar o horário: 6h45mim. Sento na cama e esfrego os olhos para despertar. Olho para os lados.

— Se estou em Lince significa que eu não trabalho hoje. Então porque eu estou acordado às 7?

Deito e me cubro novamente, mas o sono não vem. O costume, o metabolismo já drenou de mim toda a vontade de dormir. Levanto contra minha própria vontade e parto para o banheiro em passos lentos, quase me arrastando.

Me apoio na pia e cuspo. Escovo os dentes e lavo o rosto e em seguida desço para a sala. Sem fome, estico-me no sofá e ligo a televisão. Acompanho os minutos finais do filme Vingadores. Ouço da sala o celular tocar no quarto. Subo em passos rápidos, o pique me despertou de vez.

— Bom dia

— Bom dia é meu ovo, está em Lince, não é?

— Charlotte, e aí? Você falou em ovo, me deu fome. Só um segundo.

— Não! Cale a boca e escute! Me encontre naquela lanchonete que costumávamos ir. Me avise quando chegar. Vamos tomar café juntos.

— Não parece um convite. — Vou até a janela e abro as cortinas. Vejo a vizinha da frente regando as orquídeas que cultiva com carinho.

— E não é. É uma ordem.

Como sempre, Charlotte sendo Charlotte. Desde o colegial era tudo do jeito que ela queria e eu que me atrevesse a questioná-la!

Tomei banho, coloquei uma calça preta, a que usava pra correr de manhã, uma camisa azul e chinelos. Fui ao encontro da garota que um dia chutou a minha bunda porque eu recusei dançar com ela no baile de primavera.

Chego em menos de meia hora.

— Oi. — falo ao vê-la na entrada.

— Você demorou. — Fala, emburrada.

— Mas estou aqui, não é? O que me faz questionar, o que você faz acordada às 9 e meia?

— Eu estava correndo, você não está vendo minha roupa de corrida?

Só então eu noto. Uma blusa rosa Adidas, cabelo preso para trás e uma calça leg preta.

— Agora vem aqui, me dê um abraço. — Ela sorri como uma pessoa doce. O que ela não é.

Nos abraçamos.

Abro a porta do lugar como um cavalheiro. Ela entra, mas então fala:

— Não é porque você abriu a porta que eu vou pagar tudo.

— Cale a boca. — ri.

Sugiro pegarmos uma mesa, mas Charlotte vai para o balcão. Sigo-a até lá e sento

— Bom dia. — Um atendente se aproxima do outro lado.

Charlotte faz o pedido. Ovos, bacon, waffle. Acho que ela veio da guerra.

— Eu vou querer…

— Ele vai querer o mesmo, ok? Pode ir.

— Mas eu queria o… Deixa pra lá. — resmungo.

— Eu estou com pressa.

Charlotte, imprevisível, muda de semblante.

— Mas eu quero saber de você, amigo. Da última vez que nos vemos você terminou seu relacionamento com a nojenta da Ingrid, mas e agora? Como está? —
Charlotte era minha melhor amiga por isso. Mesmo odiando Ingrid e sendo tão mandona assim, no fim tudo o que ela sempre quis de mim era mostrar que era mesmo uma amiga.

— Está tudo bem. Eu fico a maior parte do dia no trabalho e quando saio é só para ir dormir. Você sabe que eu ainda estou morando com a Ingrid, não estamos mais juntos, e também não tenho tempo para me relacionar.

— Você não tem tempo ou tem medo? Não tem mais nada que te impeça de se envolver com alguém, Paul.

— Mas eu não quero ninguém. — Inflo o peito. Preciso fazer parecer verdade. — não sinto falta.

— Você não precisa mentir pra mim. Eu sou sua amiga, droga.

— Eu não estou mentindo, juro! Trabalho das 9 às 5, às vezes das 8 às 10 da noite, eu não quero ninguém me cobrando amor. Não quero ter que dar satisfações.

— Mas você quer alguém pra beijar e abraçar. Não digo amar, mas gostar de alguém faz bem.

— Você fala como se eu tivesse 35 e sozinho a 15. Eu só tenho 24. Estou sozinho faz um ano e um pouco mais.

— O tempo que ficamos junto conta mesmo? Se conta, são um ano e oito meses. Escuta, eu não estou dizendo que você deve correr atrás de alguém, mas você passou por muita coisa e eu sei que você carrega isso sozinho. Eu acho que é a hora de compartilhar com alguém.

A comida finalmente chega. De boca cheia ela não poderia dizer o que eu não queria mais ouvir.

Charlotte era que nem uma modelo, mas comia feito um trabalhador de obras. Paro para vê-la comer com ferocidade.

— O que? — Ela pergunta.

— Nada — respondo na hora.

Então começo a comer também, mas não tão rápido quanto a monstra em corpo de deusa ali na minha frente.

Pouco antes de terminar o telefone toca. Ouve mais do que fala. Fiquei surpreso com isso. Ela desliga.

— Amigo, eu queria muito insistir até ouvir você assumir que tá vivendo um período de merda na sua vida, mas eu estou com muita pressa. Acharam o meu cachorro.

— Você deveria colocar uma coleira nele.

— Já tenho o identificador. Se eu colocar uma coleira é capaz de acharem e pedirem resgate.

— Então coloque cercas.

— Não subestime a inteligência de meu cachorro. Ele sempre dá um jeito.
Charlotte deposita um beijo na minha bochecha. Sinto a região esquentar, fiquei envergonhado.

— Eu te amo, fica bem.

Charlotte sai.

Termino meu café da manhã e só então percebo que eu fiquei com a conta toda.

A atendente para no balcão, do outro lado.

— Filha da mãe. — sussurro para que ela não ouvisse. Ela ouviu e ficou me olhando furiosa — Não você, minha amiga que saiu e deixou tudo pra eu pagar. —

Sorriu amarelo, mas ela não engole.

Pega o dinheiro e sai sem parar de me encarar.

— Eu hein.

Vou para a porta e ela ainda está me olhando. A encararia de volta para vencer a batalha, mas resolvi me dar por vencido e adiantar-me para fora dali antes que ela atirasse uma panela quente em mim. Atravesso a porta de fumê para a rua e sem querer derrubo um mendigo que ali passava. Caímos ambos de ombros, de frente um para o outro. Eu pude ver a face de dor se formar no rosto dele.

Me levanto, mas vejo que ele não faz o mesmo ao mesmo tempo que urra de dor. O ajudo a se levantar em seguida.

— Você está bem? — pergunto, preocupado com o desafortunado. Penso que a pergunta não poderia ser pior, afinal, ele é um mendigo.

— Estou tudo, menos bem. — Ele fala, cabisbaixo.

— Se machucou? — Pergunto, temendo pelo pior. Me dispus a ajudá-lo, afinal, a culpa foi minha.

— Ahn? Não. — Ele me olha, mas então volta a fitar o chão. — Quer dizer, sim, um monte, mas não hoje. — E então volta a me olhar — Não foi culpa sua.

— Você não parece um mendigo. — digo — Não sei, acho que já teria roubado minha carteira e saído correndo. — Não era o que eu queria dizer. Confundi mendigos com malandros. O caso era que o Horns ficava ali perto.
Levei uma lição de ética, fiquei surpreso.

— E fala bem. — o elogio tentando fazê-lo esquecer do meu ato preconceituoso.

O mendigo adolescente a falar sobre algo utópico, e de forma cômica. Não presto atenção porque há estou fitando seu rosto. Eu já o vi em algum lugar. Sim. A roupa suja e os machucados não conseguiram escondê-lo.

— Eu conheço você.

#FLASHBACK OFF#

E lá estava ele. Ele não me via, mas eu o estava olhando. Estive o olhando desde o momento que o salvei. O jeito que ele falou, o jeito de encarar a situação. Eu invejava aquela coragem.

A chuva que caia me fez pensar. O tempo que perdi me enganando com Ingrid, o tempo que eu perdi me trancando depois de terminar com ela. O tempo que perdi sendo o cara do trabalho quando Ethan morreu. Perdi tempo sendo muitos caras, menos eu mesmo.

E não foi a chuva, não foi a carona, não foi o dia louco que me fez perceber isso. Foi ele. Aquele garoto ali na minha frente que estava me fazendo acreditar que as coisas poderiam ser diferentes.

O que ele tinha dito alguns minutos atrás, sobre eu ser um coitado, não me magoou. Foi o choque pra realidade. Ele me disse o que todos sempre pensaram.

“Coitado do Paul, esqueceu o que é se divertir e agora vive trancado nesse escritório”

“Coitado do Paul, terminou com a noiva e agora não sabe o que fazer da vida. Mulher é um bicho ruim mesmo”

“Coitado do Paul, agora mora sozinho e amargurado”

Eu nunca quis ser esse coitado. Eu só tinha escolhido seguir minha vida de um jeito diferente, mas eu percebi que era de um jeito ruim.

Ainda estou de olhos fechados quando o sinto me tocar o ombro em meio à chuva.

— Eu acho que estou tão leve que se o vento passar eu vou junto. — Ele grita em meio ao barulho da chuva. — Acho também que vamos ficar gripados.
Eu sorrio e ele me manda mais um de seus sorrisos sinceros.

Entendo a sugestão e retiro a chave do carro do bolso. Destravo o carro com o comando da chave e William entra fugindo da chuva como se estivesse seco. Dou a volta rapidamente e entro também.

— Definitivamente vamos pegar uma gripe. — constato — Com esse tempo não dá nem para te deixar em casa antes das 17, mesmo que a nuvem só se estenda até a entrada da cidade.

Ponho a chave na ignição e giro. O carro liga. Olho atentamente pelo retrovisor esquerdo para ter certeza de que não vem nenhum veículo e que eu poderia devolver o carro à estrada com segurança. Sigo em frente. Estamos de volta na rodovia.

— Não tem nem uma toalha? — William fala após os primeiros cem metros. Ele está encolhido. Provavelmente com frio.

— Tira essa camisa. — sugiro — só vai piorar — e respondo: — Na mochila aí atrás tem uma toalha limpa que eu estava levando pra casa da Ingrid.

Mal termino de falar e William já estava tirando o cinto para em seguida se inclinar para alcançar a mochila. Ouço o zíper abrir. Ele sequer traz a mochila para frente. Ele apenas retira a toalha e zipa a mochila novamente.

William se contorce para tirar a camisa.

— Onde coloco? — pergunta.

— Pode colocar aí — aponto para debaixo do banco.

O moreno passa a toalha por todo o corpo em aleatório. Seu jeito desengonçado de fazer as coisas.

— Do que está rindo? — Ele me surpreende ao perguntar.

— Como? — pergunto, mas esperei que ele desistisse. O que ele não faz.

— Você estava rindo antes de fazer essa cara de William quando é pego em sites para maiores.

— Eu só estava pensando. — tento ganhar tempo para responder.

— Pensando em que? — Ele insiste — responda rápido antes que eu comece a pensar que está me enrolando.

— No que você disse lá atrás, na chuva. Sobre preferir ter que passar por tudo isso de novo só para ter que me conhecer de novo.

— Mas não é só por isso — ele gagueja, o tom de voz fica mais alto — É também pela experiência… E… Geografia. Aprender sobre uma nova cidade é ótimo.

Principalmente sobre onde não andar. Engloba muita coisa, mas definitivamente, não é só por sua causa.

— Não precisa entrar na defensiva. — solto uma risada. Ele compartilha a toalha. — Eu sei que não é só por mim. Acredito que sou o menor dos fatores.

— Com você é tudo sempre assim? Preto ou branco? Azul ou amarelo? Existem meios termos.

— No meu ramo não existem meios termos — justifico.

A chuva diminuíra um pouco, mas ainda chovia bastante. Retiro a camisa molhada e começo a me secar.

— Mas não estamos numa corte — Ele rebate — estamos na vida.

— Um bom argumento — confesso

Caço na mochila uma camisa seca. Por sorte haviam três. Dou uma para William e ele a veste.

Volto para a estrada.

Ele deixa a cabeça cair para o lado e me olha. Vejo pela minha visão periférica o que pareceu um sorriso vitorioso. Rio debochado.

Depois de poucos segundos William providencia um novo assunto.

— Esse é seu sonho, ser advogado?

— Sim. Eu já era apaixonado pela causa. Sabe? Ajudar as pessoas. — Inflo o peito. William acertou no assunto que eu mais gostava — Lutar pela causa de alguém… Me apaixonei ainda mais quando vi a forma que seu pai lida com os casos que aparecem. É uma honra trabalhar com ele.

— Uau. — Ele responde — Você falou mais do meu pai do que minha mãe fala pra ele no dia dos pais ou no aniversário de casamento. Devo me preocupar com você querer roubá-lo de minha mãe?

— Eu poderia processar você. — respondo. — Se for para fazer um comentário fútil assim, melhor ficar calado, não acha?

— Mas não vai. Meu pai é um ótimo advogado, ele ganharia a causa.

— Touché — decretei minha derrota.

— A verdade é que meu pai sabe o que foi que ele passou pra conseguir chegar aonde chegou. Foi difícil não se deixar abater por todos os comentários racistas que ouviu.

— Mais um motivo para admirá-lo.
William sorriu e virou-se para a janela. Não havia nada para ver além das gotas correndo pelo vidro.

— Escuta — pigarreio, então repito — Escuta… Falando em preconceito, me diz, como foi pro seu pai, sua família, a aceitação da sua sexualidade? A nível de curiosidade.

William se inclina novamente para mim. Coloca seu melhor sorriso no rosto e fala:

— Cara, foi melhor que eu imaginava, na verdade. Foi no ano passado quando eu disse que ia sair com a Emily, minha amiga, e eles me perguntaram se eu gostava dela. Eu disse que não e meu pai perguntou se eu era gay.

William contou que após diversas evasivas e tentativas de negar, ao ouvir do sr. Fisher que estaria tudo bem se ele fosse, ele resolveu se abrir pros pais.

— Meus pais disseram que seriam meus melhores amigos dali pra frente, porque ser negro já é difícil, ser gay e negro é uma luta muito maior e que sozinho eu não vou conseguir.

— Que palavras lindas. — comentei

— Ele sabia o que dizer. Eu quase chorei. — William ri. — Mas agora é tudo mais fácil. Mas e você? O que já aconteceu que te faz parar o coração? Claro, além da morte de seus pais e de seu irmão e eu acho que isso já é o suficiente então eu vou calar a boca agora mesmo. — falou rápido, como se as palavras viessem junto com os pensamentos.

Ri.

— Deixe-me pensar. — falo — Um estagiário da empresa do seu pai já me contou uma história parecida com a sua. Só que o final dele foi ruim. Ele acabou tendo que ir morar com o irmão mais velho. O único que o aceitou e o jurou amar incondicionalmente.

— É triste saber que existem casos assim.

— A gente tenta sobreviver. — meu coração aperta. Um nó se forma na garganta.

— Mas e você? — Ele insiste — O caso que me contou foi de um estagiário lá do escritório, não conta.

— Não que me lembre — aperto o volante. — Só lembro do dia que fui pego bebendo com 16. Meu pai me bateu um bocado.

— Ah, qual é?! Isso não é nada demais.

— Não sei… Teve uma vez que o Ethan e eu…


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