A Semente da Crônica: O João escrita por Avelã


Capítulo 1
A Semente da Crônica: O João




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Sentou a xícara no porta-copos improvisado, muito prestativo. Chamamo-lo João. É claro que, a bem da verdade, João não é seu real nome. Qual seria este? Não se quer dizer. Ou, ainda, não se sabe. Não se quer saber? Não se é revelado. Não se mostra. Não, demo-lo o nome João: nome puro, que carrega a carga que lhe é destinada e talvez mais um tanto. Fazemo-lo João de olhos de bichano, rápidos, brilhantes, multicolores e ágeis. Uma esperteza de olhos que não convém ao resto, pois fazemos de João um homem pueril, ingênuo como uma lata cujo líquido se esvaiu e que, quase imediatamente, é atirada ao asfalto quente de uma segunda-feira movimentada. João é desconhecedor das coisas, porque desconhece como ninguém e com voraz vontade. João desconhece balanços como navios de ar, e desconhece aviões como pássaros de sangue metálico e órgãos maquinais. Há uma breve interrupção, igual a uma porta que se fecha com força, rompendo o silêncio anterior, ao narrarmos João. Porque ele, se é que se pode deixar o pronome próprio de lado, que João é ciumento com tal nome – fizemo-lo ser –, ele é calado. Ele é quieto. João sabe as quatro operações – subtrai certezas, todo duvidoso de si mesmo; adiciona pecados, sempre pecando sem saber – e, quando o sabe, aí é que peca com gosto; multiplica prazeres: não é besta, nosso João; e, por fim, divide anomalias. Santo pai-do-céu, como é anormal o João!

Neste momento para o qual nos voltamos agora, João deixou que a xícara deslizasse do indicador, outrora tensionado, e caísse na mesinha de mármore que enfeita a cozinha de dona Cláudia. Dona Cláudia, em descrição não demorada, é uma mulher de dignidade. Dignifica tudo que vier às suas mãos. Está em um processo interno, a Claudinha (gosta de quem a faz carinho verbalmente): busca algum pingo de dignidade que possa ser cabível ao colega João. Um pingo, mais orvalhoso que seja, que possa servir de auxílio para o iniciando João e sua longa jornada em busca do título “homem digno”. Que é que pode ser mais lindo, nessa pobre vida nossa, do que respeito? Não se há lindeza maior! Dona Cláudia não sabe as quatro operações. Até que subtrai alguns pessimismos; afinal, toda criatura digna sabe pensar positivo. E tem lá os seus momentos de adicionar humor, mesmo sendo ele frágil e fraco para exacerbações. Sabe dividir um lanchinho da tarde como ninguém (é aí que nosso João está agora mesmo). E, no entanto, onde é que multiplica? Teria ela algum prazer em deixar que dois vezes dois virasse quatro? Faria caso se pusessem em sua frente um quatro vezes dois, que vira oito? Será, meu Deus, que o coração de Claudinha suportaria que trouxessem-na trezentos e sessenta e sete vezes duzentos e quarenta e dois? O coração, se pudesse multiplicar, pararia.

Podemos dar um pouco de atenção ao João, nesse momento ímpar. Agora, João tem olhos fitos em Claudinha, cujas mãos repousam numa dobrinha mal passada do vestido de flores primaveris. Há um breve silêncio pairando ao redor deles, ambos precários na troca de olhares. Uma das maiores virtudes de um ser humano, diria eu, é o olhar recíproco. Saber olhar é vital. Oh, perdoe-me o equívoco; dissemos, ainda nas primícias da vida narrada de João, que seus olhos são espertos, ao contrário de todo o resto. Pois bem. Ele a olha com calma, o João. Ele a olha baixinho, quase inaudível, sem fazer ruído com o soslaio. Abafa os sons do olhar porque sabe bem que ele é perigoso: certa vez, apaixonaram-se por um olhar desleixado que nosso João lançou. Sim, digo-lhes mais: criamo-lo para ser ingênuo no amor. Há a necessidade, por parte de nós, de fazer de João o nosso mártir, de desbancarmos uma vida literária para sofrer o que sofremos, compensando nossas próprias e intrínsecas decepções. A vida é cheia delas. João que nos perdoe.

Claudinha não faz ideia do que se passa nos nossos escritos, muito menos na cabeça de nosso protagonista. Ela, a Cláudia, protagoniza apenas a mágoa de estar para sempre fadada a não saber olhar. Desvia. Deixa os olhos caídos num chão frio de agosto. Empalidece as feições. Não gosta de ser observada – pois é característica geral que um mal olhador não goste também de ser olhado. É uma grande pena. Deixemo-la.

João aperta as mãos quentes e meio úmidas de Cláudia ao se despedir. Tem os passos frouxos, mas as mãos são firmes. Ah! Há isso: mãos firmes que tem o nosso João. Ele as aprecia bastante; acha que conseguiria dar prazer a uma mulher se as usasse bem. Revelações vêm aos montes, agora. Acabamos de constatar um dos desejos que João, por mal, deixou escapar a nós. Cuidemos para que não fique muito enrubescido, que João não combina com o avermelhado na face. Quando cora, parece mais um palhaço do que um homem envergonhado, e não é ao que queremos que nosso João se assemelhe. Gostaria, sim, de ter uma mulher. Faremos com que nunca tenha tido nenhuma? A decisão pode ser votada daqui a alguns instantes. Continuemos, por enquanto, a analisar mais aspectos físicos do bendito João. Tem o semblante frágil, revela fácil suas emoções. A ruga que a testa guarda é quase sombria, o que não o faz, a olhos estrangeiros, parecer ingênuo como é. Mas ele é: que isso fique sabido. E tem os braços longos demais, de modo que as pernas tomam certo aspecto de carência. Se fosse africano e lá na África residisse, especialistas levariam o fato a uma possível desnutrição. Aqui, no entanto, no lugar onde vive – e onde é que vive, afinal? –, João consegue obter a renda de alguém que pode comprar churros duas vezes por semana sem pesar o orçamento. Vive só? Vamos condená-lo à solidão de uma quitinete vazia? Faremos com que o dinheiro seja suficiente para um pensionato? Não há mais tempo para pensar: João vive com a tia. A tia é meio velha, meio senil, meio tudo. Sempre meio. Meio ranzinza, meio careca, meio frágil. É meio. Ele é inteiro: inteiro bobo, inteiro pecaminoso, inteiro ilusório. São a desavença personificada em dois personagens de destino incerto (pois somos incertos tanto quanto pudermos ser, e nós é que redigimos João e a tia).

Uma notável qualidade de João, falemos sério, é o fato de ser pobre. Sendo pobre, João não sabe o que é. É esquerdista? Direitista? Gosta da democracia? Adora ler sobre os Dons Pedros? Tem satisfação em estudar o MERCOSUL? É nacionalista? Vota na oposição? Acha algo sobre a deposição de Jango? Não sabe. E digo literalmente: não sabe. A escola foi um bom passatempo, se lhe perguntarem. Foi sim. E a educação é importante? É, é claro, se o indagarem de uma outra vez. Ele viu na televisão, isso. Deve de ser verdade. E é.

Outra qualidade imperdível, que não se pode deixar de falar, é que João é quase surdo de um dos ouvidos. Ah, isso é bom. É bom demais. Dessa forma, pode-se falar o que quiser sobre João (mas só, e somente só, se ele estiver virado para a direita). É bom lembrar. Gostamos de prejudicar a vida simples e indolente de João porque, quanto às nossas, estamos acabados. Olhem para nós e digam-nos a nós mesmos: respiramos? João morre. Amamos? João detesta, odeia, não aguenta sequer ver o nome de qualquer que seja a moça. Sorrimos? João chora. João já gosta de chorar; se sorrirmos, faz a festa das lágrimas. Somos uns imbecis, divertimo-nos pelas custas de um homem pobre e ingênuo chamado João. Gostamos de lê-lo e de fazê-lo sofrer. Faremos com que acorde vazio de pensamentos e pense se morreu, tal burro que é? Faremos com que seja chupado até o sumo pelas adversidades de uma vida cachorra e febril? Fuçaremos seu lixo até descobrirmos o que diabos causou a disenteria? Fomos nós. Fomos nós que a causamos, por sermos os mesquinhos que somos.

João tem que cor de cabelos? Importa-me muito saber. Pois amamos o cabelo de João; amamos João inteiro – ele sofre por nossas mãos, mas é nossa obra. E o que ele comeu no café? Importamo-nos em saber, também. Que ele não passe fome. Que passe necessidade de afeto, que chore calado, que sofra desventuras, como todos sofremos; mas que ele, também como nós, não tenha o estômago vazio. As mesquinharias de João não são tantas como as nossas. João é um ser humano melhor do que nós jamais seremos.

Viva ao João. Aos Joãos.


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Notas finais do capítulo

Viva.



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