As cinco portas escrita por Rodrigo Oliveira


Capítulo 3
Capítulo 3




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Mais uma noite de sono escasso. Irwin pensava se tomaria o cianureto e morreria quase que instantaneamente, como fizeram os comandantes nazistas após serem julgados e condenados na pós-segunda guerra. Mas de forma alguma o faria antes de ver sua família. Seu filho já deveria ser um homem. Talvez algum de seus pais não estivesse mais vivo, ou quem sabe os dois. Ainda guardava na memória a imagem de sua linda esposa. Ela era descendente de índios e suas feições deveriam ter se conservado harmoniosas até o dia de hoje, pensava. Chorou imaginando esse encontro e novamente adormeceu com a imagem fantasiosa da família na sua mente.

A semana transcorrera na mesma rotina de anos a fio. Acordavam às 06h, dirigiam-se ao refeitório para o café e em seguida entravam em forma para serem conduzidos às oficinas. Só paravam na hora do almoço.

Enquanto estava sentado, sempre ao lado de Jason, durante o almoço, cada preso que passava lhe dava um tapinha nas costas e uma palavra de incentivo, que era retribuída gentilmente com um sorriso tímido.

– Cara, pare para pensar. Já imaginou, você na Tv nos representando? O nome da nossa ‘sagrada instituição’ será dito ao vivo pela primeira vez – disse Jason, ironicamente imitando a postura de um soldado – e você estará lá, em tempo real! Nossa, mal posso me contar de excitação – olhava fixamente para Irwin, com seu sorriso banguela sempre a mostra.

– Deve estar doido para que eu morra e você possa dormir na cama de cima, não é? – Irwin começava a ficar mais a vontade.

– Irwin, saiba que vou sentir falta das nossas conversas, amigo. Mas entenda que eu já me preparei pra deixar esse lugar morto. E sei que será assim com todos, então não faz sentido estender muito esse tempo, entende? Nós não temos chance de sair daqui enquanto vivos! A morte é nossa liberdade.

Se você conseguir sair vivo, digamos que acerte a porta da liberdade, será uma vitória para você, mas será uma vitória maior ainda para o sistema que diz quem pode viver e quem deve morrer, compreende? – Irwin, o olhou seriamente, em silêncio, e digeria o sentido das palavras – Se morrer é liberdade, que seja livre. Mesmo morto.

Sábado pela manhã. Irwin estava um caco, pois não conseguira dormir. Hoje é o fatídico dia. Nem o diretor e nem ninguém da família o procurara. Estava totalmente alheio aos acontecimentos. Trabalhou normalmente, mas foi chamado à sala do diretor logo após o almoço.

– Como passou a semana, Irwin? – perguntou o chefe.

– Como um condenado que vai à forca em praça pública. Mas esperançoso de ver minha família mais uma vez.

– Eu me esforcei sobremaneira durante essa semana para realizar seu desejo, acredite – olhava-o com pesar – mas as notícias não são as melhores. Já faz muito tempo que você está preso aqui, meu jovem. Talvez você não se dê conta, mas o tempo passou. Quando o tempo passa, pessoas se vão, e os que ficam tem de seguir em frente, compreende? Sua família viveu todos esses anos sem saber ao menos se você estava vivo. O sistema é assim, você sabe. Você foi desligado da sociedade como um todo. Não possui mais registro, nome, datas, nada. Você não existe, Irwin.

– Eles estão vivos? – interrompeu.

– Sua mãe morreu a seis anos em decorrência de um problema cardíaco. Seu pai mora na mesma casa desde então. Ele é um homem forte.

– Eu sei disso, diretor. É um homem de caráter, sobretudo. Sinto uma dor horrível por magoá-lo. E minha esposa e filho?

– Hoje ela é esposa de outra pessoa. Eu a encontrei em seu trabalho, em uma loja de penhores no lado sul da cidade. Ela me disse que o menino, agora já um belo jovem, não sabe que o pai é um condenado e ela quer que fique assim, do jeito que está.

– Você está dizendo que eles não verão me ver?

– O seu pai estará no estúdio. Foi o máximo que consegui. – disse o diretor, levantando-se e indo até a janela com o olhar distante – Sabe, Irwin, acredito que nós não faríamos diferente – falava olhando para fora – É muito difícil perder alguém que se ama, seja da forma que for, e eu compreendo a dor que sua esposa deve ter sentido quando você foi preso.

O diretor continuava falando de pé, em frente à janela, porém os olhos de Irwin voltaram-se para uma caneta hidrocor preta que descansava à borda da mesa. A voz do homem entrava pelo seu ouvido, porém seus olhos não se desgrudavam da caneta e numa fração de segundos ele a pegou e colocou dentro da calça, na parte da frente, deixando-a presa no elástico da altura da cintura.

– Deixe-a seguir, meu jovem – continuou o diretor, virando-se em direção ao presidiário – seu filho está bem, criado por uma boa família. Cumpra seu papel. Eu fiz o que pude. Aqui está a pílula de cianureto – disse colocando-a na mão de Irwin. Se decidir acabar com isso antes da hora, coloque-a na boca e morda com força. Só te peço que faça isso depois de sair da prisão para não me trazer problemas.

– Eu entendo diretor – disse com profunda tristeza na alma por não poder abraçar seu filho mais uma vez – sei que é um bom homem e fez além do que deveria. Muito obrigado. Vou guardar a pílula comigo e resolver o que farei – disse levantando-se e seguindo em direção à porta. Deu uma leve batida e o guarda o conduziu novamente à sua cela.

O diretor sentiu uma extrema tristeza por aquele pobre homem. Nunca se acostumaria a assistir ao maldito reality show que o governo proporcionava aos sábados. Era um homem das antigas, mas não conseguiria recolher-se à cama antes de saber o destino de Irwin.

De volta à cela, Irwin, tomou seu banho e chorou como uma criança. Decidiu, porém, que após sair do chuveiro, as lágrimas não tomariam seu rosto novamente. E assim foi. Vestiu as roupas limpas, mas não diferentes das que usava habitualmente: Camiseta branca por baixo, camisa e calça de cor laranja e botinas pretas.

Os presos cantavam canções de empolgação, sabendo que a hora se aproximava.

– Estou pronto, Jason. Como estou?

– Você está maravilhoso, meu amigo. Vai a alguma festa de gala? – disse abraçando-o e gargalhando alto – imagino o tipo de vestimenta que constava no convite: roupas de presidiário, cor laranja com eventual camiseta branca com o logotipo governamental no peito e botas pretas – ria mais ainda – Irwin, preste atenção – disse cessando o espírito da brincadeira imediatamente – Eles podem ter tirado tudo de nós, mas não o poder da escolha. Pro inferno com o sistema! – bradou.

A caneta hidrocor foi recolocada na cintura e a cápsula de cianureto entre a gengiva e a bochecha. Em poucos minutos dois guardas vieram até a sua cela e se postaram em frente à entrada. Um terceiro guarda que estava na cabine de controle das celas, apertou um botão referente ao número da cela do condenado e somente ela se abriu. Os presos explodiram em euforia. Enquanto Irwin era algemado, os presos cantavam. Em seguida foi conduzido pelo meio do corredor, passando por todas as celas. A cena era emocionante para o condenado. Há anos que não sentia aquele calor. Aqueles caras loucos, animais, párias, jovens, velhos, desdentados, assassinos, ladrões, sem esperança, sem chance, agora eram a sua família. Irwin sentiu-se um guerreiro saindo para conquistar mais e mais povos, diante do seu exército que agora cantava seu nome com uma vibração inédita até para um presídio. E sorriu.

Já do lado de fora do prédio, no pátio, podia-se ouvir os presos cantando ao longe.

– Os presos tem um herói por sábado. E hoje é você – disse um dos guardas, enquanto abria a parte traseira do furgão que o levaria ao estúdio.

Irwin sentou-se ainda algemado e estava muito ansioso para encontrar seu pai e acabar logo com isso.

A viagem durou cerca de trinta minutos e logo adentraram por um portão lateral. Três viaturas da polícia e seis motos com suas luzes piscando fizeram a escolta. Irwin desembarcou do carro e adentrou ao recinto. Foi levado direto para uma sala, uma espécie de camarim, onde poderia comer algumas frutas antes de entrar no palco se quisesse, mas deixou-as de lado. Quis ir ao banheiro para aliviar a bexiga, que o apertava desde que saíra do presídio. Agora, a prisão era sua casa e lá moravam os seus familiares, os guerreiros do Aquiles aprisionado.

Depois de aliviar o corpo, e lavar o rosto com água fria, colocou a mão na maçaneta para abrir a porta do banheiro. Porém, antes, jogou a caneta hidrocor no cesto do lixo, tendo o cuidado de enrolá-la em papel higiênico para que não fosse vista.

Abriu a porta e viu o seu velho pai de pé, ao lado de um guarda. Ele havia envelhecido muito nesses anos, mas ainda guardava certa vitalidade no olhar. O velho homem abraçou seu filho como se ele tivesse renascido de entre os mortos. Irwin mal pôde abraçá-lo por causa das algemas, mas ali ficaram, durante muito tempo, sentindo o cheiro um do outro. Irwin achou curioso, pois após tantos anos o cheiro do seu pai era o mesmo de que se lembrava. Isso lhe trouxe lembranças da sua infância e ele não conseguiu cumprir a promessa das lágrimas, porém isso não o incomodou nem um pouco.

– Pai, preciso lhe pedir perdão – disse entre lágrimas.

– Meu filho, perdão de quê? Quem nunca errou nesta vida? Você já está pagando o que a sociedade e o governo o cobraram pelo crime que cometeu. Você já estava perdoado no meu coração. Esse maldito sistema condenou você sem ao menos lhe dar a chance de reabilitação. Nós quase passamos fome sem você por perto. Graças a Deus sua mulher e filho estão bem agora.

– Sinto muito pela mamãe...

– Ela sabia que você estava vivo, filho. Ela sentia no interior da alma. Morreu falando isso. Ela o amava muito.

O velho reparou que o filho colocava a mão dentro da boca. Irwin teve o cuidado de deixar seu pai entre ele e o distraído guarda, de modo que o vigia não notasse o que ele fazia. Colocou, em seguida, a cápsula venenosa na mão do pai, fazendo com que a segurasse.

– Eu não preciso disso pai. Sei o que devo fazer – falou baixo - Jogue fora, por favor. Sei que não o verei mais, então saiba que eu sempre os amei de verdade. Amo até hoje, dia após dia – e abraçaram-se de novo.

O guarda chamou a atenção para o horário. O programa iria começar. O velho já não chorava mais. Viu que o filho agora era um homem e acenou com a cabeça dizendo: “faça o que tiver que fazer filho. Nos vemos lá em cima” – disse apontando com o dedo em direção ao céu.

– Ou lá embaixo – disse Irwin sorrindo.


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