Coração de Porcelana escrita por Monique Góes


Capítulo 20
Capítulo 19 - Dia e Noite




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Capítulo 19 – Dia e Noite

Ficar preso numa casa dita construída para aprisionar invasores não estava nos planos de Jim.

Ainda mais quase ser esganado novamente.

Estava estatelado no corredor, ainda tentando se recuperar da queda que levara quando Victoria o agarrara numa tentativa de não ser levada por sabe-se lá o que fosse. Respirou fundo, sentindo a fraqueza por todos os membros que o faziam desejar nunca mais levantar. Oh droga, havia perdido totalmente a noção do tempo naquele lugar. Tanto pelo fato de ter perdido a consciência quanto pelo fato de pelo que havia lhe dito que aquela casa ficava no Reino Unido.

Tentou lembrar qual era a diferença de fuso horário, mas sua mente se recusou a funcionar direito. Assim, lhe restou tentar arranjar forças para levantar.

Fechou os olhos no que pareceu ser um segundo numa vaga tentativa de se concentrar, quando os abriu, viu letras douradas gravadas no arco à sua frente.

Arco...? Não estava num corredor?

Franziu o cenho, discernindo as palavras.

Nós fomos. Nós somos. Nós seremos.

Era um lema? Conseguiu forças para se sentar, percebendo que estava numa... Capela?

Era uma catedral gótica, constatou, ou pelo menos, era o que o tamanho dava a entender. Gostava daquele tipo de arquitetura, então era óbvio que a reconheceria. O local era todo feito de pedra pura, o ápice sendo a nave, com tetos abobadados extremamente altos.  Vendo melhor, as paredes dos clerestórios haviam sido substituídas por imensos vitrais que permitiam melhor entrada de iluminação que se dirigiam ao altar, o qual não deu muita atenção.

— Não foi isso que fizeram com Beauvais...? – murmurou, então balançou a cabeça. Encontrava-se naquela situação, e estava prestando atenção no estilo arquitetônico do local. – Muito lógico de sua parte, James Novak. – murmurou para o nada.

— Sim, mas o mestre construtor decidiu que os pilares não deveriam ser muito espaçados, nem almejar algo demasiadamente alto. Ninguém queria nada caindo, afinal.

Jim deu um pulo, pego totalmente de surpresa. Suas pernas não aguentaram o impacto de se erguer tão abruptamente que tão logo firmou os pés no chão, acabou caindo novamente. Procurou desesperadamente ao redor, passando os olhos pelo coro até o átrio de entrada, até localiza a figura apoiada em um dos pilares das arcadas laterais mais próximos de si.

Por um segundo pensou ser Vincent.

Era... Bizarro. Ele olhou para o homem, que o encarou altivamente de volta. Foi como se, imediatamente, visse características deles três: Vincent, Jim e Michael. Claro, eram os três um a cara do outro – então basicamente o cara era uma cópia/junção deles com algumas diferenças -, mas características individuais estavam ali. Ele era alto, e tinha os cabelos negros que lhe batiam no pescoço, lisos, mas suas pontas se curvavam para cima, cacheando. Os olhos eram dourados – o mesmíssimo dourado de Mike -, porém eles eram incrustáveis, exatamente o contrário dos expressivos de Vincent, sendo Jim que se utilizava daquele recurso. Era estranho dizer aquilo, mas a maneira que ele se mantinha apoiado e olhando para o adolescente... Ele conseguia ver apenas a figura do irmão mais velho. Ele adorava aparecer do nada, aparentando ter estado no lugar o tempo todo.

Mas a palidez dele era bem diferente da dos irmãos. Era cadavérica. Jurava que os lábios e a área ao redor de seus olhos eram arroxeados, assim como suas faces, mas não havia como ter certeza. Mas a visão do homem era como... Como se fosse ao mesmo tempo certa e errada.

Jim estava com sua cota de bizarrices estouradas há muito tempo.

— Hm... Isso estava na bancada, não? – os olhos voaram quando o homem ergueu uma sacola da Subway. Bem, ele e Michael haviam ido lá no dia em que... Ambos haviam sido puxados para tudo aquilo. Tinham comprado dois sanduíches a mais para comerem no outro dia.

Seu estômago gritou, clamando o quanto estava faminto, mesmo que Jim não estivesse muito a fim de chegar perto do Sir Morto.

— Você... Pegou isso da bancada. – repetiu as palavras do estranho, como se só então absorvesse a informação. – Você esteve no nosso apartamento.

— Você me faz com que eu me sinta um criminoso falando assim, Jim. – respondeu, desencostando-se do pilar e se aproximando. Diria que o homem estava no meio dos seus vinte ou começo dos trinta anos, mas por algum motivo não conseguia especificar. Ele usava um suéter fino cor de creme, jeans e botas. Havia algo também estranho no seu modo de andar... O modo de se portar, a sua postura. Era... Régio, elegante.  

— Você sabe o meu nome. – disse com descrença, enquanto ele se abaixava à sua frente.

Ele lhe estendeu a sacola. Olhou-a com desconfiança, mas seu estômago decidiu demonstrar como eram os sons de acasalamento de uma morsa em protesto à sua lentidão. Em desistência, a pegou, percebendo logo de cara que era a sua devido à falta de refrigerante. Odiava refrigerante e coisas com gás – ao contrário de Michael. Vincent era um meio a meio que seguia a direção que a banda tocava -, então havia uma lata de suco de uva ali dentro. E o biscoito com gotas de chocolate que vinha no combo.

Suas mãos estavam trêmulas quando pegou o sanduíche de frango e cream cheese. Ignorando o fato de estar numa igreja, comeu como um desesperado sentado no chão do coro, com o Sir Morto o fitando. E bem, estava desesperado mesmo.

— Melhor? – ele questionou quando terminou o último pedaço do biscoito e secou o suco.

— Uhum. – resmungou, limpando os dedos.

— Hm... – ele inclinou a cabeça para o lado, analisando-o. Sentiu uma pontada desconfortável quando reparou que essa era mais uma semelhança com Michael.

— Quem é você? – questionou por fim.

— Angus. – respondeu.

A mente de Jim foi imediatamente para o bilhete rasgado que encontrara no quarto do bebê. “A família Dalca parabeniza o rei Angus e a rainha Natasha pelo nascimento saudável do príncipe Christian”, vagando então para que aquele loiro esquisito havia lhe dito pouco antes de Victoria ser levada pela coisa invisível, que a família real havia sido assassinada e que se encontravam em sua propriedade.

O cara parecia morto, “Sir Morto”. Pareceu que sua mente começou a apitar, gritando vários tons de “merda”. Abriu a boca para dizer algo, mas ele continuou.

— Richard, – Jim franziu o cenho, começando a se questionar “Qual o nome dele então?”, e como antes, o homem continuou. – Angus Richard, Angus Richard Rockstone, Angus Rockstone, rei dos bruxos. Você perguntou quem eu era afinal, não?

— Sim, mas... Rei dos bruxos, você não deveria estar... – olhou mais uma vez para a complexão do homem. Pele cadavérica, marcas azuladas e arroxeadas. Ele lhe ergueu uma sobrancelha. – Er... Esquece. Você me parece bem morto, afinal.

— Tem mais uma...

— Sério? Você já não tem títulos o suficiente, Sua... – começou.

— Pai.

— Hã?

— Eu sou o seu pai.

Jim sentiu como se houvesse levado um tapa na cara, piscando idiotamente algumas vezes. Claro, a semelhança dos irmãos não poderia ter saído de qualquer lugar, e a mãe deles dizia que era do pai deles. Richard possuía características demais para ser qualquer um, mas... Hã... Rei dos bruxos. Pai dos três. Até um pouco mais cedo o rapaz nem sabia da existência de bruxos, então...

— Er... Hã?

Richard revirou os olhos, mas pareceu achar graça.

— Eu esperava que com o tempo, Vincent contasse. Mas estamos em uma situação um pouco mais urgente, então não podemos esperar muito tempo.

— Espera, o Vincent sabe?

— Sempre soube. Ele tinha cinco anos quando invadiram nossa casa de campo, afinal. O suficiente para ele lembrar o antes e o depois. – Jim o olhava chocado. – Descendemos da senhora da memória, afinal. Não esquecemos e acho que é seguro dizer que temos memória eidética. Isso você sabe.

É, Jim sabia. Nunca estudara para as provas na vida, só prestando atenção nas aulas e resolvendo atividades e prestando atenção em algumas conversas para que pudesse usar ao seu favor depois – o seu irmão mais velho era adepto desta prática também. Michael decorava musicas numa velocidade assustadora e os códigos e puzzles dos jogos antigos que jogava, nunca anotando nada. E eles se lembravam de cada detalhe dos filmes e séries que assistiam. Mas esse era o tipo de coisa que nunca realmente prestara atenção até o momento em que lhe fora dito aquilo.

— Quando memórias são muito vívidas, elas podem se tornar ruins. Principalmente as más memórias. Seu irmão vive com medo, afinal. – Richard suspirou.

— Mas... A nossa mãe...

— Melissa Novak, não? Ela sabia também, já que era uma das babás de vocês. E era a única que estava conosco no dia do assassinato. – respondeu. – Você e Michael eram pequenos demais para lembrar, claro. Aquele dia deixou os dois aterrorizados. Melissa poderia ter entregado vocês ao que restou de nossa família, mas ao invés, decidiu protege-los da maneira dela. Vincent aceitou, e continuou aceitando quando ficou mais velho e entendeu a situação ainda melhor.

— Nós vivíamos nos mudando, e sempre eram cidades pequenas...

— Ela mudou o próprio nome, os nomes de vocês, e os registrou como filhos dela. Vocês nunca passavam muito tempo em um lugar, pois ela temia que alguém capaz de reconhecê-los aparecesse, já que, convenhamos, os três são a minha cara.

— Você é o rei, como alguém... Tipo, como alguém não nos reconheceu antes então, mesmo com tudo que a nossa mãe fazia? Aqueles três bruxos que estavam na casa comigo não pareceram...

— Nossa imagem não é muito divulgada. – Richard deu de ombros. – Eu também tinha o costume de evitar retratos o máximo possível, essas coisas não eram para mim. – esse era um ponto que Jim entendia. – Mas há pessoas capazes de reconhecê-los. Isso aconteceu. E você sabe quando.

— Sei...? – foi como se alguma coisa estalasse dentro de sua cabeça, como peças se encaixando, e ao mesmo tempo fazendo-o recordar uma de suas memórias ruins. – No dia em que a nossa mãe morreu, os caras que invadiram a casa... Eles estavam atrás do Vincent...

— Ele não fez nada direto, apenas estava no lugar errado, na hora errada. Foi fácil para eles descobrirem o resto, então.

— Você sabe de tudo isso... Mas, espera! Primeiro, você fala como se estivesse conosco o tempo todo, sendo que, é, você está morto! E está aqui! Como assim?

— Ora vamos, eu sei que você adora pesquisar sobre o sobrenatural. Você deve ter ao menos um palpite formado sobre como eu estou aqui.

É, era verdade. Era um passatempo, juntamente a bandas de rock sinfônico, arquitetura, livros, escrever e tudo mais. O pensamento mais óbvio que lhe veio à cabeça foram zumbis, mas logo os descartou – seu pai não parecia muito a fim de comê-lo. -, depois vampirismo, já que afinal era um estado de morte. Também não lhe pareceu que ele fosse alguém que bebesse sangue – e se fosse, seria muito clichê. Na realidade, mortos-vivos não eram exatamente as coisas que Jim mais pesquisava, gostava de dragões, demônios, assombrações, deuses pagãos e mitologia no geral.

Outro estalo. Mitologia. Deuses pagãos. Hades, deus dos mortos. O seu gato, Hades. Gato, um animal.

— Você se tornou um familiar. – constatou. – Você é o meu gato.

— Viu? Você sabe. – o tom de Richard era satisfeito. Remotamente orgulhoso, até.

— O gato nem sempre esteve conosco, então você deve ser capaz de se transformar em outros animais. E esteve nos seguindo por todos esses anos.

— Acertou mais uma vez. – aprovou.

Jim não sabia o que pensar.

— Você sabe como viemos parar aqui? Nessa mansão?

Nossa mansão, você quis dizer. – a expressão de seu pai se tornou séria. – Uma ideia. Pelo que consegui entender, estavam tentando arrastá-lo para algum lugar, mas consegui mudar a sua rota para a capela, por assim dizer. Não podem alcança-lo aqui.

— Me alcançar? Você diz as coisas invisíveis que tentaram me enforcar?

Richard franziu o cenho.

— Eles tentaram te enforcar? – os olhos foram até as marcas no pescoço de Jim. - Eles nunca foram tão hostis... Mas eles também. Essa se torna a questão. A mansão é uma casa feita para bruxos, para a nossa família. Você ainda não sabe magia, então ela não o reconhece...

— E me confunde por um intruso.

— Exatamente.

— O senhor está implicando então que se eu aprender magia, eu meio que vou conseguir controlar a casa?

— Você não vai “meio” que conseguir controla-la. Você vai controla-la, tudo irá obedecer. Mas há outra coisa... O que trouxe vocês e aqueles membros da realeza para cá. Não tem nada a ver com a casa, e isso me preocupa.

O adolescente já sentia que possuía força o suficiente para se erguer, então deu uma olhada no local. Havia os ditos vitrais nos clerestórios, e obviamente, eles demonstravam algo. Claro que não eram vitrais cristãos, então demonstravam danças, dragões, fadas, gnomos e algumas outras criaturas que não identificou. Havia também figuras humanas, um homem de túnica púrpura e cabelos compridos, meio castanhos, meio ruivos. Era muito bem demonstrado que o homem era cego de um olho, o direito, mais precisamente. No primeiro vitral em que ele aparecia, ele estava sobre um dragão prateado, de armadura, e sob ele aparecia um exército pronto para o combate.

— Este lugar... Inicialmente, ele era a sala do trono do seu bisavô. – Richard informou. Jim o olhou. – Rei Alphonsus, o primeiro rei bruxo. Depois que o seu avô, o rei Augustus, decidiu reformar o castelo, ele manteve este local, mas transformou-o numa capela.

— Parece mais uma catedral.

— Se o lugar fosse mais baixo talvez... Mas ele não quis demolir mais nada. Já bastou o resto do castelo.

— Então... – se pôs de pé. – Tipo, dá para ver que aqui não é um templo cristão. No que os bruxos acreditam?

— Anjos. – foi a resposta. – Mas não as criaturas que aparecem na Bíblia. Eles vêm de um plano diferente do nosso, e suas lealdades e motivações variam muito. Há dezoito anjos mais poderosos que os bruxos veem como fonte de adoração. Mas a nossa família não adorava aos dezoito.

Ele apontou para o coro, o qual Jim não havia prestado atenção até então. Ele se projetava como um semicírculo com uma série de seis altares. Cada um havia sido esculpido de uma forma singular, e no topo havia uma escultura que o recordou das esculturas de Giovanni Strazza, que era capaz de reproduzir transparência em suas obras, como a célebre “Veiled Virgin”.

— As duas do centro são Enguerrand e Ailith. Elas foram esposas do rei Alphonsus, e se tornaram anjos depois de suas mortes.

— Ele se casou com as duas, tipo... Poligamia?

— Não. – Richard riu. – Primeiro foi Enguerrand, com quem ele teve Augustus.

— O meu avô.

— E meu pai. – afirmou. - Ela morreu catorze anos depois, pouco depois de ter um segundo filho, e ele casou-se com Ailith.

— Enguerrand não é um nome masculino?

— Talvez, mas era o nome dela. Preste atenção nos altares das duas.

O que mais chamava sua atenção obviamente eram as estátuas. Uma era o dia, a outra era a noite, isso ficava claro. As estátuas de ambas chamavam a atenção de maneiras opostas.

Enguerrand aparentava ser uma mulher alta, vestida de modo deslumbrante. Ela usava um bliaut – um vestido medieval – que escorria pela silhueta esguia sob uma túnica cujos bordados foram reproduzidos no mármore branco. Havia um longo manto sobre seus ombros, que se esparramava aos seus pés com detalhes florais. O seu rosto comprido parecia ser régio, com um véu sobre sua cabeça e um diadema que parecia ser feito de lírios em sua testa. Os cabelos saiam de dentro do véu, separados em dois segmentos e torcidos, adornados por acessórios tubulares que Jim reconhecia, mas não recordava o nome também, e chegavam aos seus tornozelos. Havia um cinto que dava uma volta em sua cintura e outra em seu quadril.

O que mais impressionava era que os detalhes, adornos, coroa e olhos da estátua de Enguerrand eram dourados. O cinto parecia ouro maciço, assim como os bordados de seu manto. Até seu bliaut era dourado.

O seu altar era um chão revestido de lírios que pareciam ser revestidas em madrepérolas, e... Nuvens? Via que o escultor se preocupara em fazer até mesmo os sapatos de tecido.

— De certa forma... A forma que Enguerrand foi feita me lembra uma versão bem mais... Hã, suntuosa? É, acho que é suntuosa da Virgem Maria.

— Ela atrai os olhos de primeira, não é? Mas por algum motivo, ela parece... Distante, até mesmo de nós. – seu pai admitiu. – Quanto a sua comparação com a Virgem... Eu acho que essa comparação seja mais condizente com Ailith. Dê uma olhada.

Fitou a outra estátua e quase se repreendeu por ter olhado a outra de primeira. A estátua de Ailith era toda em mármore negro, porém seu rosto, pescoço e mãos – os únicos locais onde a pele aparecia – eram revestidos de outro material esbranquiçado. Parecia... Marfim? Era como se houvessem feito a estátua em partes separadas e então unindo-as em perfeição.

Ela fora feita como se fosse mais baixa que Enguerrand, de formas menos esguias e mais arredondadas. Não exatamente gorda, apenas... Alguém que parecia ter sido mãe várias vezes e seu corpo demonstrava o fato. Seus cabelos estavam soltos, tendo sido esculpidos em cachos suntuosos e cheios. Enquanto Enguerrand estava cheia de joias, Ailith era visivelmente mais simples. Ela estava com uma túnica sobre seu bliaut e um manto sobre os seus ombros, com os seus fechos em forma de rosa. Na realidade, as rosas eram uma constante em seu altar. O diadema em sua testa; e seus pés descalços encontravam-se num chão repleto de raízes retorcidas e pétalas espalhadas.

Os pontos que mais chamavam a atenção em sua estátua eram o rosto branco e o diadema prateado com pedras azuis. Pareciam safiras... E por falar em seu rosto, ele era em formato de coração, com o nariz ligeiramente redondo e lábios bem desenhados, com uma expressão gentil e maternal, porém os olhos fechados e as sobrancelhas aparentemente tensas faziam-na carregar uma forte aura de tristeza e humildade.

Teve de admitir que a comparação com a Virgem Maria condizia mais com Ailith.

— Realmente... – Então os olhos azuis desceram para uma caixa de vidro entre ambos os altares. Nela, havia uma coroa, um diadema de ferro...?

Aproximou-se para ver melhor e Richard não reclamou.

De certa forma, lhe lembrou da coroa do filme A lenda de Beowulf. Era o que tomaria por uma coroa viking – embora não tivesse certeza se os vikings usavam coroas. -, um diadema simples, como um anel grande, chato e largo. De certa forma era simples: era prateado, com um círculo em seu centro, quase como se fosse um medalhão, onde estava sem dúvidas a parte mais chamativa: Dois dragões em pé sobre suas patas traseiras, suas escamas pareciam ser incrustadas de diamantes e os olhos eram safiras azuis acesas. O resto de sua extensão era repleto de entalhes tão intricados que não soube dizer o que significavam, afinal.

E mesmo não sendo um bruxo propriamente dito, ainda conseguia sentir algo como calor, vapor quente e ardido que pinicava a sua pele dela. Aquilo era magia?

— Essa coroa...

— É. A coroa do rei. Ou rainha. Extremamente mágica.

— Acho que deu para perceber... – esfregou os próprios braços. – Parece... Uma coroa viking?

— Nós descendemos de vikings. – Olhou para o seu pai surpreso. – Seu tataravô era um viking que veio da primeira incursão de 793, que atacou o monastério de Lindisfarne. – Richard deu de ombros. – Ele se manteve no país e dominou quase toda a região norte da Inglaterra, e quando os séculos foram passando, ele foi assumindo a forma de um senhor feudal cristão para não levantar muitas suspeitas, e distribuiu alguns feudos para alguns aliados, mas no fim era ele que comandava tudo. Segundo o meu pai, ele não deixava que os filhos esquecessem suas origens nórdicas, então isso explica em parte a coroa.

— Meu tataravô invadiu a Inglaterra em 793. – repetiu. – Magia faz com que as pessoas sejam mais longevas.

— Basicamente.

— O primeiro rei foi coroado...?

— No século 12.

— E só houve três reis até hoje?

— Sim.

—... Quando você nasceu?

— 1515. – respondeu e os olhos de Jim se arregalaram. – O suficiente para ainda presenciar o Renascimento.

— Você tinha mais de quatrocentos anos quando eu nasci. – constatou.

— Sim. Eu casei com a sua mãe em 1865.

— Oh, ok. Acho que isso é ainda um pouco demais para mim. – respirou fundo. – Então... O que você... É, bem, essa coroa então, se o Vincent decidir comunicar que está vivo, ele vai ser o rei.

— Talvez.

— Talvez?

— Sim. Há um artefato... O manto da Glória. – Richard ergueu as sobrancelhas. – Quando um rei morre ou quando ele decide se retirar, como o meu pai fez, todos os descendentes Rockstones devem prova-lo. Filhos, sobrinhos, primos, netos... Ele quem dá o veredicto de quem será o próximo rei.

— Hã... Como assim? Ele fala, como um Chapéu Seletor?

— Não. – Richard riu. – Ele só aceita abraçar, ou seja, caber, em quem ele considerar digno de assumir o trono. Ocorre de ele assumir que duas pessoas são dignas: ele me aceitou, e aceitou minha irmã gêmea mais velha, Lyra. Eu decidi entregar o direito ao trono a ela.

— Mas... Ela não assumiu.

Seu pai balançou a cabeça.    

— Ela... Fugiu. Um pouco antes do dia da coroação, ela apenas deixou uma carta dizendo que não aguentava mais aquilo e desapareceu no mundo. Fizemos buscas, mas no fim eu assumi o trono.

— Uau... – murmurou. – Mas... Você disse que me trouxe à capela para me tirar da área de influência e que eu devo aprender magia para não ser atacado. Há mais coisas do que isso.

— Sim. – admitiu. – Aprender magia nestas condições seria demorado e perigoso demais. É um processo doloroso, e é o que Michael está passando agora. Isso faz com que ele fique cego, e se deixe ser guiado para onde querem levado.

— Mike, ele está em...

— Eu não diria em perigo. Não agora. Mas a questão para você é: Nós descendemos dessas duas anjas. Enguerrand foi a mãe do rei Augustus, que foi seu avô. Ailith teve uma filha antes de se casar com o rei, que mais tarde se tornou a rainha Tempesta, sua avó e minha mãe. Mesmo que sejam apenas representações delas, este foi o local em que ambas iniciaram seu poder, e onde a vida delas também terminou. Ou seja, é um local de poder.

Como se apenas esperando que Richard dissesse aquilo, Jim percebeu que ambas as estátuas começaram a brilhar. A de Enguerrand emitia um brilho dourado poderoso, enquanto a de Ailith emitia um mais tenro, de um tom que Jim percebeu oscilar entre o negro e o azul noite. Quase tropeçou nos próprios pés tentando se afastar.

— Você pode pedir uma benção a uma delas, que irá lhe ensinar uma das magias que elas regem.

— Mas, hã, eu nunca fui exatamente religioso...

— Não veja isso como uma oração. Veja como se estivesse pedindo um conselho a um parente idoso. Elas são suas bisavós, afinal.

— Há algo que eu precise saber...? Eu quero aprender magia para encontrar Michael e nos tirar daqui, só que tenho certeza que não posso escolher uma levianamente. Tem de ter uma consequência.

— Muito bem. A maioria das pessoas não pensaria nisso, e seguiriam com base em suas superstições. – Richard aprovou-o, atrás de si. – Enguerrand é a senhora da renovação. Se você escolhê-la, não sei o que acontecerá. Talvez a Coroa de Pedra seja destruída, e não haja mais reis. Ou você poderá pegá-la e clamá-la para si, já que é o primeiro Rockstone a se aproximar dela desde o assassinato. Talvez você possa ignorar o passado e ser “Jim”, ou ainda se tornar uma coisa nova. Não sei, as probabilidades são infinitas.

— E Ailith...? – arriscou.

— Ela é a senhora da memória. É mais fácil imaginar o que vai acontecer se você escolhê-la. O legado Rockstone e as tradições continuarão existindo, pelo menos por enquanto. E quanto a você... Há o seu passado.

— Memórias... Ela manterá as coisas.

Jim examinou as duas estátuas e as auras que emanavam delas. Era óbvio que a de Enguerrand aparentava ser mais poderosa. Ela era ofuscante e quente, aparentemente mais receptiva. Claro, afinal, o mundo precisava de mudanças. Ela era a senhora da renovação, ela iria mudar a tudo.

Agora o que restava saber era o que ela mudaria.

Olhou para a de Ailith, com seu brilho quase tímido e frio. Como sua memória era boa demais, Jim às vezes se amaldiçoava por ser capaz de lembrar com clareza de vergonhas que passara anos antes. Lembrou-se do que seu pai dissera; que as memórias faziam Vincent viver com medo. E o próprio adolescente recordava dos motivos que o faziam sentir raiva do irmão.

Mas então sentiu algo como um estalo no fundo de sua cabeça. “Você não gosta de ser enganado”.

Piscou, percebendo como se houvesse uma névoa sobre seus pensamentos, e ela havia acabado de se dissipar. Notou que já se encontrava próximo da estátua de Enguerrand, quase para erguer a mão.

Quando se mexera?

Franziu o cenho, e olhou para o rosto comprido da mulher dourada. Ela era... Ela exalava magnetismo. Recuou quando percebeu aquilo. Fora como se houvesse levantado de um banho de água fria. Ela... A aura daquela mulher parecia berrar apenas uma coisa “Poder, poder, poder, poder, poder”. Percebia aquilo agora.

Era errado.

Era preciso poder para se mudar as coisas, mas aquela luz parecia possuir uma fome por aquilo e tudo mais.

Olhou para a de Ailith. Ela tinha cores escuras, mas não era mais tão... Amedrontadora? Aquela fome presente na aura dourada não existia ali. Era quase maternal, como se ela lhe oferecesse abrigo, um lugar sob suas asas.

Os olhos azuis foram de uma a outra, parando momentaneamente na coroa no centro delas.

Eu posso lhe dar poder.

Eu posso lhe dar uma escolha.

Foi quase automático. Estendeu a mão, tocando o altar, a mão pálida sobre os pés descalços e brancos. “O que eu poderia oferecer?”.

Nada é preciso.

A escuridão se fechou em seus olhos.


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