Nas Sombras do Seu Coração escrita por Vessimus


Capítulo 4
Capitulo 3 — A Mulher Em Chamas




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A dor era uma sensação familiar para Cole. Ele a presenciara em muitas memórias e em cada uma a dor se manifestava de maneira diferente. Um sorriso, um adeus, um beijo, uma perda, um toque. A dor estava nos detalhes, vinha das situações mais ordinárias e dos acontecimentos mais drásticos. E curar essas dores era o que Cole fazia. Com pequenas atitudes ou com as palavras certas, ele podia pôr um fim ao sofrimento de uma mente perturbada ou pelo menos amenizá-la. A dor física, por outro lado não podia ser curada com palavras.

Os moribundos não se libertariam das correntes da agonia sem a misericórdia da morte e ao que tudo indicava essa seria a única maneira de Cole escapar do casulo de dor que o confinava dentro de si mesmo. Cole nunca pensou que um dia sentiria algo assim. Não estava e talvez nunca estivesse preparado para a agonia que antecedia a morte – uma dor pungente que o tirava de si e parecia que nunca teria fim.

A ferida o queimava de dentro para fora. A dor se alastrava por todo seu ser, o paralisando como se cem mil agulhas atravessassem a sua pele e o pregassem ao chão. Respirar era quase insuportável. A fraca oscilação das suas costelas doía tanto que parecia que a ferida em seu peito estava se abrindo. Suor e sangue encharcavam a sua pele. Ele estava mais pálido do que naturalmente era. A pouca cor que coloria suas bochechas agora regava a grama, tingindo-a de vermelho-sangue. Cole estava no limiar da consciência, incapaz de gritar embora estivesse sofrendo terrivelmente com a dor alucinante.

Temos de parar o sangramento. Preciso de um pano, qualquer coisa, agora!

Disse uma voz que flutuava ao seu redor, ecoando dentro de si como um chamado distante. A voz de uma mulher, ele identificou de olhos fechados. Ela virou o seu corpo. A dor era sufocante. Cole tossiu sangue ao tentar respirar. O gosto amargo impregnado no céu da boca era horrível e o odor de sangue pesava no ar, mas outro aroma se sobressaiu no momento em que fios macios caíram sobre o seu rosto como uma cascata de flores. Ele respirou fundo o agradável perfume, ignorando a dor lancinante em seu peito. Lírios do vale, gardênia e a doçura do jasmim. A fragrância era tão intensa e envolvente quanto o toque dos dedos que contornavam o centro da sua dor. As mãos dela rasgaram o couro e o tecido que lhe cobria o peito; elas eram quentes de um jeito bom, ásperas e fortes.

Cole”, a voz dela o chamou e outras ecoaram ao fundo, aflitas e apavoradas. “Você pode me ouvir? Você pode abrir os olhos? ”. Ele tentou atender o pedido, mas suas pálpebras não estavam de acordo com a sua vontade e não queriam se abrir.

Abra seus olhos, garoto, vamos lá! ”.

Mais uma tentativa e dessa vez suas pálpebras se desgrudaram, mas tudo que conseguiu ver foi o fogo. O fulgor ardia em seus olhos, fazendo-os lagrimejar. Ele não podia acreditar no que via. Era ela, a mulher em chamas e estava bem a sua frente. Tão real quanto a sua dor e tão palpável quanto às garras que dilaceraram sua carne.

De uma brancura clara e ofuscante, a pele dela irradiava faíscas laranjas, amarelas e vermelhas. Os cabelos pendiam do seu crânio flamejante como línguas de fogo. Era como estar a uma polegada do sol – muita luz, muito brilho e calor, mas ele não conseguia desviar o olhar do dourado abrasador dos olhos dela. O laranja febril iluminava as suas feições delicadas. A mulher em chamas estava tão próxima que por de trás do seu brilho intenso ele via o sangue escorrendo pelos contornos do seu rosto. Os traços eram arredondados e harmoniosos; os lábios avermelhados e cheios falavam com ele, mas Cole não conseguia respondê-la por mais que quisesse.

Seu nome é Cole, não é? ” o garoto a via sorrir para ele. “Vai ficar tudo bem, Cole, eu te prometo”, ela garantiu, afagando seus cabelos loiros, despregando-os da sua testa suada. Era reconfortante ouvir que tudo ficaria bem, mesmo que não fosse verdade. Cole tinha ajudado muitos na mesma situação em que ele se encontrava para saber que estava entre a vida e morte, apesar disso, ele acreditou nela. Cole não queria morrer, não agora, não tão cedo, e não aceitaria a morte sem resistir; ele ainda nem tinha aprendido completamente a ser humano ...

Fique comigo, ok? Respire fundo”.

Cole rangia os dentes, travando os gritos em sua garganta, mas foi preciso somente que ela o segurasse pelo queixo e puxasse suavemente para que ele abrisse a boca. “Beba, vai fazer a dor passar”. A mulher derramou todo o liquido leitoso e adocicado de um frasco em sua boca aberta. Depois que ele o engoliu, demorou pouco mais de um minuto para que a poção analgésica fizesse efeito.

O alivio derramou-se sobre ele como uma jarra de água gelada, abrandando a dor, entorpecendo-o com uma sensação de leveza. A água respingou sobre a mulher em chamas, apagando o seu fogo conforme as alucinações ocasionadas pela dor desapareciam. Agora ela parecia ser uma mulher comum, sem olhos em brasa ou pele flamejante. Mas algo dentro de Cole o dizia que mesmo sem as chamas não havia nada de comum naquela mulher.

O que você está fazendo com o garoto?!”.

Cole não sentia mais dor, e diria a Dorian se pudesse. Estava tudo bem, como a mulher dos olhos dourados disse que ficaria. Sentia-se sonolento, leve e sereno.

Eu estou tentado salvar a vida dele, não consegue ver? Temos que ir para o meu acampamento, lá tenho o material que preciso para cuidar do ferimento. Podem passar a noite lá se quiserem. Agora, você ai...” a ruiva apontou para Remendo “Você tem ataduras ou algo do tipo? Preciso pelo menos atar o ferimento antes de carregá-lo até lá.

A ruiva levantou os braços de Cole para cima, um de cada vez e retirou os trapos da parte de cima da sua armadura. Seu torso agora estava despido e ela tinha uma boa visualização do ferimento. Delicadamente, passou um pano sobre a ferida, secando o excesso de sangue. Após entregar o pano para Krem, recebeu dele um rolo de ataduras. Ela maneou as sobrancelhas para ele em um comando que o jovem soldado pareceu entender. Krem agachou-se e segurou Cole pelos ombros, colocando-o sentado para que a mulher enrolasse a atadura no peito do garoto.

Nem sequer sabemos o nome dessa mulher. Como poderemos saber que ela não estaria nos levando para uma emboscada? E se ela for do bando do saqueador? ”.

Cole percebeu as rugas na testa da mulher que o socorria e uma inquietação contida em seus olhos. A insistente suspeita sobre as suas intenções a embravecia, e com razão. O garoto não entendia os motivos para a resistência de alguns dos seus companheiros. Ela acabara com a dor que o torturava e agora estava cuidando dele, por que não confiar nela?

“Se minha intenção fosse matá-los, eu teria deixado os demônios fazerem o serviço por mim, não acha, magricela? ”

“A ruiva tem um ponto. Dois na verdade. Não temos onde acampar e nem temos os suprimentos que precisamos para fechar esse buraco sangrento no peito do garoto. Não temos outra opção a não ser aceitarmos o convite e irmos para o acampamento dela. Mas, bonitona...” o qunari dirigiu-se à ruiva “se iremos confiar um no outro acho que deveríamos nos apresentar. Eu sou O Touro de Ferro e esses são os meus Bravos. Como devo chamar uma mulher tão graciosa, hm? ”.

Graciosa? ”. O Touro falava palavras tão esquisitas quando conversava com mulheres. Mas do que mais ele a chamou? Ruiva. A mulher em chamas era uma ruiva. O Touro o dissera a verdade, então. Mas ele dissera que ruivas tinha fogo entre as suas coxas, e não em seu corpo inteiro. Ele também não havia lhe dito que esse fogo não queimava e era bonito de se ver.

Isso é realmente importante agora? Saber o meu nome é mais importante do que salvar a vida do seu amigo? Ele está morrendo. Morrendo!

Cole também queria saber o nome daquela mulher. Deveria ser luminoso como a sua presença. Queria também agradecê-la pelo que estava fazendo por ele, mas para isso teria de estar vivo, assim sendo, não se importava se ela dissesse depois de cumprir o que havia lhe prometido.

Ela diz a verdade. Ele vai morrer se não fecharmos a ferida o quanto antes. Estamos perdendo um tempo precioso aqui. ”

Remendo permanecera ao lado da ruiva desde que ela começou a estancar o ferimento de Cole. Não podendo ajudar diretamente por causa do seu braço ferido, ele a observava com atenção e estava impressionado com como ela sabia exatamente o que precisava ser feito. Ele apenas indicava a Krem o que tinha de ser pego no que restara da sua bolsa de primeiros socorros.

Até que fim alguém de bom senso. Agora se querem me acompanhar, senhoras, senhores, bigodudo e grandalhão, meu acampamento não é muito longe daqui. ”

Ela arrematou a atadura, firmando-a bem para que não se soltasse. Krem soltou Cole com cautela e ela o segurou. Um braço abaixo das suas axilas e o outro atrás dos joelhos. Preocupado com o que aquela mulher pretendia fazer, o Touro deu um passo à frente para ajudá-la, mas antes que pudesse, a ruiva erguera o garoto em seus braços sem dificuldade alguma.

Leve, suave, entorpecido, Cole sentia-se como se flutuasse sobre pétalas. O rosto acomodado na curva do pescoço dela, repousando sobre os cabelos que cheiravam a flores silvestres. Quentes e confortáveis, os braços dela o acolhiam com firmeza e cuidado. Era como ser carregado por um jardim florido, onde o aroma das flores se fundia ao cheiro das folhas e do orvalho.

S-s-seu cabelo... — disse Cole, a voz fraca e inconstante como um suspiro — tem um cheiro bom.

A ruiva abaixou o olhar indo ao encontro dos sonolentos olhos azuis-celestes que a fitavam. O comentário a pegou de surpresa. Achava que o garoto estava a meio caminho da terra dos sonhos; era isso que acontecia com qualquer um que tomasse um frasco inteiro da poção analgésica. Mas não, esse garoto era mais resistente do que ela pensava e ainda estava desperto e disposto a conversar.

— Obrigada, Cole. — ela agradeceu com um sorriso simpático, caminhando para dentro da floresta. A lua ou a luz que muito parecia com a lua a seguia e clareava o caminho para ela e para aqueles que a seguiam. — Eu sei ...

Lírios do vale, gardênia e jasmim ...

— É, isso mesmo. Você gosta? Quero dizer, você gosta de flores?

— Sim. Elas são gentis, assim como você.

Gentil, eu? Não, eu não sou gentil, estou muito longe de ser gentil. Mas para todo caso existe uma exceção, não é o que dizem? Sabe, eu adoraria continuar a nossa conversa, mas eu te fiz uma promessa, não fiz? Eu prometi que tudo ficaria bem, só que você precisa fazer a sua parte. E a sua parte agora é descasar, você precisa de toda energia que tiver para se recuperar.

A cadência dos passos dela era um convite irrecusável ao sono, mas Cole não queria dormir, e por isso resistia. E se ao acordar a mulher dos olhos dourados tivesse voado para longe de novo? Dessa vez longe demais para que a encontrasse. Ele tinha tantas perguntas sem respostas: por que ela estava chorando na cratera? Por que suas mãos estavam em carne viva? Por que seu corpo ardia em chamas? Mas a urgência de dormir era incontrolável. O perfume que o inebriava e o calor aconchegante do colo dela o conduziram à rendição, e ele adormeceu tranquilamente em seus braços.


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