Celest escrita por Alpha, Borges


Capítulo 1
Samuel / I - O Coelho


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem. Boa leitura ;)



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Naquele dia, foi o pé direito de um par de All Star sujo dentro da geladeira, escondido atrás da caixa de leite light, que fez Sam despertar de seu sono grudento. No anterior a este foi sua irmã transando no quarto ao lado com um cara duas vezes seu tamanho, o que de fato não é grande coisa. De qualquer forma, os gritos dela ainda o atormentava no presente. E no dia anterior a este, ele tinha passado a noite inteira acordado devido a insônia. Com isso concluímos que Sam não era um cara feliz. Não mesmo. 

Esbravejou uma dúvida: 

— Quem diabos botou meu tênis aqui? 

Agora, com seus sentidos um pouco mais aguçados, escutou a água do chuveiro embalada com alguém cantarolando alguma música absurdamente teen, que por sua vez significa chiclete. Presumiu ser sua irmã no banho, com quem dividia o apartamento. Ambos estavam numa cidade universitária, custeados por seus pais. 

Ele não obteve nenhuma resposta, mas chegou ao ponto de admitir para si mesmo que era retórica, pois sabia exatamente quem tinha feito aquilo. Nessa linha de raciocínio, pegou o gélido tênis da geladeira e o jogou no seu quarto sem qualquer tipo de resistência. 

Encaminhou-se para a sala do computador, ligou seu pc gamer e usou-o para o que foi projetado para fazer. 

Tinha se tornado uma espécie de rotina. 

Dentro do jogo, elevaria a classe de sua mascote, um dragão, hoje era seu poder de ataque, para com o novo status ganhar uma habilidade. Depois faria um dos eventos diários que o premiaria com uma alta quantidade de ouro, possibilitando a ele fortalecer seus equipamentos no ferreiro para facilitar sua vida nas dungeons com seus parceiros da guilda. Passaria suas horas assim, até então finalizar batalhando no PVP (sigla para Player versus Player) do jogo. O problema se encontrava no choque de horários. 

— Você não vai para a faculdade hoje? – perguntou sua irmã, Sara, enquanto usava o secador em seus longos cabelos castanhos. O barulho normalmente o chatearia, se não estivesse com fones de ouvidos. 

Ela teve que cutucá-lo pelos ombros para chamar sua atenção. Não adiantou, estava bastante absorto, o que a fez persistir ao ponto de retirar os fones de seu irmão, mas o mesmo continuou vidrado. Conseguiu alguma reação, ao menos. 

— O que foi, Sara? – disse o praticamente zumbi 

— Hoje você tem faculdade, deixa isso daí pra depois. 

Ignorou. Isto porque o garoto rank 17, conhecido no seu jogo como “O Dragonslayer de Prata”, tinha uma boa razão para fazê-lo. Iniciava com uma pergunta: Por que diabos estava indo a faculdade? 

Tinha analisado o sonho americano centenas de vezes. Partia da premissa de que uma pessoa tem que estudar bastante, o suficiente para entrar numa boa faculdade, num excelente curso que irá trazer uma profissão da qual goste, em especial aquelas que deem dinheiro. Depois, a mesma pessoa acabará por casar e ter filhos, não exatamente nessa ordem, e, com graciosidade, sentir orgulho da grande dádiva da vida. No restante que sobrasse de sua juventude, gastaria com viagens, produtos caros e dedicação para a família e o trabalho, esse último em maior quantidade. No fim, morreria e, se tivesse sido uma boa pessoa em vida e acreditasse em um Deus, iria ter a vida eterna ou reencarnaria, de acordo com a propaganda da religião que tal pessoa frequente. Então, novamente, pra que diabos estava indo a faculdade? 

Tudo era mais fácil em um jogo. Era simples, mas grandioso. O primeiro passo era encontrar um sensei, de preferência asiático de bigodes longos e brancos, para ensinar sobre as artes e segredos do ninjutsu, manusear uma katana e destruir um vilão com tendências insanas. Bem, ao menos isso se assemelhava com Ninja Gaiden. A vida, para Sam, era somente um jogo ruim. Muito ruim. 

— Você sabe que hoje você também tem que ir... 

— Eu sei – cortou o garoto – não tem muito sentido nisso, pra variar. Se eu for, automaticamente estarei admitindo uma derrota. 

Sua irmã suspirou profundamente. 

— E o que custa você simplesmente fazer... – apontou para o computador com desdém – esta coisa aí depois dos seus compromissos de hoje? 

Sam sabia que estava perdendo seu precioso tempo, mas se aventurou na longínqua esperança de que sua irmã compreendesse. 

— Você sabia que no jogo meu apelido é “O Dragonslayer de Prata”? 

Sua irmã girou os olhos. 

— Nossa, como você é pica das galáxias éin, impressionante, moço – fez isso enquanto contraía o queixo e deixava seu lábio inferior proeminente – Quer um balão? Um grande balão vermelho... o que acha? Ou prefere rosa? Por que um grande feito como esse não pode passar batido... – caçoou 

É... a longínqua esperança morreu. Ambos deram uma risada. 

— Copiona – Protestou. Essa forma de gozação era sua marca registrada. 

Com os risos a esfriar, sua irmã voltou ao assunto principal. 

― Olha aqui, eu odeio dar lição de moral, mas sério... tu tá mal, maninho... 

Sam chegou numa cidade, um lugar em que seu avatar não poderia ser assassinado, o equivalente a “pausar” o jogo. Com isso, poderia tranquilamente despachar sua irmã. 

― Defina “mal” – rebateu.  

Era uma estratégia que tinha lá sua beleza. Sabia que Sara também precisava ir a sua faculdade de Medicina, e quem iria busca-la era o gigante que estava... o qual ela chama de namorado. Dada as circunstâncias, ela não poderia enrolar-se o suficiente num cansativo bate e rebate com Sam. Sua irmã se apercebera disto. 

― Cara, você é impossível... Tem miojo na geladeira. Vê se ao menos coma isso, já que não vai sair daqui o resto do dia – Antes de seguir, notou o relógio no pulso de seu irmão – E então, o relojoeiro conseguiu consertá-lo? 

— Nop. É uma longa história... 

— Ok, depois você me conta – ela pegou a sua bolsa e deu um tapa amigável nas costas de seu irmão – Vê se não cai no estado vegetativo. 

— Vê se não diga “virose” pra mais um dos seus pobres pacientes, daí eu começo a fazer minha parte – disse, num tom jocoso. 

Sara mostrou a língua de uma maneira divertida e se dirigiu para a avenida. 

Mencionar o relógio fez lembrar do seu avô materno Robert. 

Ele era uma criança na época, por isso não guardava muitas lembranças dele, a maioria das informações que tinha vinham de sua mãe. No geral, era um cara que se autodenominava espírita, e fazia parte de uma associação chamada Rosacruz. O seu trabalho resumia-se a, segundo sua mãe, enganar os trouxas. Muitos iam até ele para resolver diversos problemas, como curar doenças, descobrir onde se encontrava importantes objetos perdidos, falar com mortos, prever o futuro, entre outros. Ele, diferente dos outros “pai de santo”, não cobrava nada por seus serviços, porém, quando os ajudados livremente ofereciam dinheiro por estarem gratos, ele aceitava sem pensar duas vezes. 

E isso era o que sabia por sua mãe. Mas havia duas lembranças que ainda guardava de quando estava junto de seu avô, sendo a primeira delas um dos vários momentos em que disputavam xadrez. Nunca ganhou, até mesmo porque ele era tão bom que chegava a participar de apostas arriscadas com outros viciados no jogo. Sam se divertia, apesar de perder em todas. A segunda vinha do dito relógio. Certa vez, perguntou o porquê do ponteiro rodar no sentido anti-horário... na verdade foi algo mais no rumo “por que seu relógio é esquisito, vô?”. Ele explicou: “porque ele não foi feito para contar as horas”, e acrescentou: “Um dia você herdará ele, e toda vez, quando o ponteiro das horas, dos minutos e dos segundos estiverem no doze, algo importante acontecerá na sua vida”. A lembrança terminava com um marcante sorriso amarelo. 

Esse relógio ficou no pulso do velho até mesmo no velório. No final, uma pessoa desconhecida o retirou com luvas de plástico e o guardou num luxuoso porta-relógios. Lembra de ter sorrido no tal velório quando percebeu que o relógio tinha parado de girar com todos os ponteiros no doze. Nunca mais ficara sabendo dele, até perto do início do primeiro semestre da faculdade, um pouco depois de seu aniversário de dezessete anos. 

Veio numa caixa dos correios, endereçada diretamente para Sam. 

Sua primeira reação após colocar o relógio foi mexer nos ponteiros para forçá-los a chegar ao doze e matar sua curiosidade, porém o ajustador estava quebrado. E os ponteiros continuavam a rodar no sentido anti-horário de forma aleatória. Enviou para o tal relojoeiro, mas ele disse que não havia maneiras viáveis de consertá-lo, devido a impossibilidade de abri-lo, visto o material que o lacrava ter sido fundido, sem qualquer parafuso para eventuais consertos. Ainda assim era possível abri-lo, mas o risco de o quebrar no processo era alto. O relojoeiro acabou por sugerir a compra de outro relógio, levantando uma dúvida interessante, após uma risadinha: “Terá que comprar mesmo que sem querer. Eu não sei o que você vai fazer quando as pilhas acabarem”. 

Não sabia o que iria fazer, mas sabia que aquelas pilhas não eram normais, se considerar que durou todo este tempo e continua a trabalhar. 

Sam olhou de relance para a errada hora antes de voltar para as preocupações mais imediatas. A questão era como passar de segundo mais forte de seu clã para o primeiro lugar. E a frustração começava aí. Por mais que tentasse, não conseguia ultrapassá-lo. 

Enquanto fazia algumas missões secundárias, o telefone da sala tocou. Deixou tocar o suficiente para cair na caixa de mensagem. O telefone tocou uma segunda vez. Novamente deixou passar. Terceira vez. Surgiu o pensamento de que poderia ser algo urgente, mas continuou a ignorar. Depois de fingir que o telefone praticamente não existia na quarta vez, o sinal da internet parou de ser transmitido. 

Puta que pariu, foi o primeiro pensamento que veio em sua cabeça. Como numa conta de um mais um, imaginou que o telefonema não poderia ser somente uma coincidência mas não voltou a tocar uma quinta vez. De uma maneira ou de outra, ligou para o provedor de internet depois de reiniciar o modem, e perceber que a luz da DSL não estava se fixando. Demorou uns quinze minutos para conseguir falar com um dos atendentes. 

O susto o acometeu quando ouviu a verdadeira causa, que mais parecia uma maldição: “Senhor, não se trata de um defeito em si ou qualquer manutenção na rede. Aqui consta que a Sra. Lancaster, proprietária desta rede, cancelou esta internet algumas horas atrás, e somente agora que cortamos. Compreende, senhor?” 

Mãe... Matou a charada em poucos instantes. Depois de meia hora sem seu jogo online, enquanto passava por uma crise existencial, daquelas “o que vou fazer da minha vida, oh god?” O telefone voltou a tocar. Dessa vez o atendeu com voracidade. 

— Alô, com quem falo? 

— Até que enfim cortaram a internet – a voz doce de sua mãe falava do outro lado da linha – estava contando os minutos aqui para ver se conseguia falar com você. 

— Por que fez isso? Sério, por que? 

Mais perguntas retóricas. Sabia exatamente a resposta, mas sua mãe sentiu a necessidade de se justificar. 

— Eu não pago sua faculdade pra você não ir por causa de jogo. Ainda quer outra razão? 

Consciente de que aquele terreno era perigoso, anuiu. 

— Tudo bem – poderia dizer que era bolsista, mas sabia que o resultado seria somente deixa-la ainda mais brava. 

Sua mãe, especulava Sam, deveria ter estranhado a falta de discursão ou qualquer tentativa de convencimento de sua parte. Mas se o fez, não externou. 

— Não se esqueça de ir na “tia” logo depois das aulas. 

— Tia... um eufemismo divertido. 

Despediu-se de sua mãe, arrumou seu Notebook, mouse e fones de ouvidos e foi para a universidade. Na biblioteca tem wifi. Não deve ser uma internet tão boa, mas deve ser o suficiente para não dar um delay alto... tenho que ir para as aulas restantes antes. Talvez depois de um tempo sendo o filho exemplar, posso convencê-la a colocar a internet novamente. Esse plano havia sido feito após tranquilizar-se da crise existencial. 

Conseguiu chegar na faculdade no final do intervalo. Seu amigo Michael o saudou. Ele era um cara, no mínimo, peculiar. Penteava seu cabelo negro afetado com exageradas doses de gel para o lado, mas para atenuar um pouco a formalidade, puxava uns fios de cabelos para perto das sobrancelhas. Para alguns, aquilo poderia ser um resquício de estilo. Para Sam, aquilo era um resquício dos anos 80. Embora tivesse um preparo físico análogo ao esqueleto do laboratório de ciências, era suficientemente forte devido ao preparo que teve para seu emprego. Para completar com o pacote Nerd & cia, utilizava óculos para enxergar as letras no quadro, levemente borradas para ele, causadas por sua miopia. 

— E aí, Redtube! 

Esse apelido surgiu basicamente por ele dormir em todas as aulas. Michael, com certa imaginação fértil, teorizou que este excesso de sono era resultado das noites em que Sam passava no dito site de entretenimento adulto. Era meio irônico, pois no ensino médio, quando todos os garotos da idade exibiam vídeos pornográficos em seus celulares e brincavam com a situação habitual dos “cinco contra um”, Sam parecia casto demais para fazê-lo, e dizia a todos que não gostava de entrar nesses tipos de sites. Nesta época era chamado de “O Assexuado”. 

Como contra-ataque, teve que inventar outro para Michael. 

— Como é que anda o meu carrasco predileto? 

Este surgiu devido a profissão de Michael, que era fiscal de trânsito noturno, provavelmente concorrendo a um dos piores do mundo inteiro. Após voltar de um compromisso no meio do horário de aula, Sam perguntou sobre o que se tratava. Explicou que era um dos processos judiciais movidos contra ele, onde respondia, “sem cabimento algum” em suas palavras, por torturas em interrogatórios. Daí surgiu o apelido maldoso. 

Sentou-se no fundo, ao lado de Michael. 

Seu professor da matéria opcional de filosofia, que se inscreveu devido a pressões externas, perguntava sobre uma tarefa que havia deixado para a turma na aula anterior, que consistia em ler as três primeiras páginas de um dos livros de Kant. Explanava sobre o assunto. 

— Mano, consegui subir pro rank 34 – iniciou uma conversa em voz baixa, para distraírem-se da monótona aula de filosofia - cada vez estou mais perto de você. 

No jogo, o Michael ganhou o apelido “Globin do Pântano”, pois sua especialidade era veneno, a sua armadura principal era verde, e a arma que utilizava era um grande porrete de madeira. 

— Legal. Então está seguindo os conselhos que lhe dei. Só não sei como você arranja tempo pra isso. 

— É claro que é no horário daquela coisa entediante que é ficar sentado a noite inteira sem fazer porra nenhuma... – uma careta de desgosto surgiu e desapareceu em seu rosto como se tivesse ligado e desligado um interruptor - Enfim... na verdade nem tô ligando muito pra isso de rank. Tô animado mesmo porque consegui beijar “A Princesa de Castlemare” ... mano, ela é muito gata. E você sabe o que vem depois disso, né? 

Sam pousou a sua mão entre seus olhos e testa, movendo a cabeça de lado a lado. 

— Mike, você sabe que quem deve jogar com este avatar feminino provavelmente é um caminhoneiro gordo com tendências... não resolvidas, certo? 

A imagem construída na cabeça do garoto era perturbadora. Barriga pra fora, esbarrando no apoio do teclado, e... pelos... eles estão em todos os lugares... O repudio começara a tomar conta do cenário criado por ele. 

― Pode até ser, mas esse cara teve uma imaginação bem fértil pra criar aquilo, porque mano... – Michael fez um movimento com as mãos, desenhando curvas análogas a de um violão, enquanto comprimia seus lábios, denotando perceptível excitação. 

― Se quer saber, revistas Playboy são um bom lugar para conseguir inspiração – Estava fingindo levar o assunto a sério, mas por dentro estava contendo gargalhadas. 

― Beleza... Eu sei o que parece, tá... – simulou estar ofendido, mas a pose logo se desfez para dar lugar a uma de derrota - É, eu tô mal, man. – Admitiu Michael 

Defina mal, lembrou Sam. Agora a piada estava começando a mostrar-lhe seus tristes efeitos colaterais. 

― Hey, por falar em gatas, está vendo aquela garota ali? – Michael apontou para a menina com o movimento de sua cabeça 

― Qual? 

― Aquela de blusa vermelha. 

― Eu não consigo encon... 

O professor percebeu a presença de Sam devido a conversa, e acabou por chamar sua atenção. 

— Então o turista hoje deu o ar de sua graça. 

A turma riu, inclusive o traíra do Michael. 

— Bem – continuou o professor – já que esta oportunidade deve resultar de algum evento cósmico, diga-me, o que você achou da teoria da “Boa Vontade” de Kant? 

No centro das atenções, formulou a resposta que tinha chegado após algum tempo de reflexão. Leu porque o professor tinha propagado as tais três páginas como algo de extrema dificuldade de interpretação, de modo que, de acordo com sua própria leitura, o correto seria reler três vezes cada parágrafo, para só assim prosseguir em frente. Sam, no entanto, leu uma única vez, e com isso conseguiu criar certas ligações. Na sua cabeça, tinha até confiança de que estava certo, porém, o nervosismo estava atrapalhando-o um pouco, porque a sentença que sairia de seus lábios não era muito fácil de ser dita. 

— Eu acho que Kant está errado. 

Se antes a maioria dos alunos estavam poucos interessados no que Sam iria falar, seja porque estavam no whatsapp, ou porque estavam conversando com outra pessoa, ou até mesmo por desinteresse, depois dessa única frase, sentiu a sala toda virar-se de abrupto para ouvir o porquê daquela afirmação, como se alguém tivesse gritado num megafone pizza grátis em plena ala de esfomeados. 

— Como? – O professor precisava escutar novamente para ver se tinha compreendido de forma correta ou se a sua audição o pregava peças. 

Entre tropeços, certos esquecimentos e gaguejos, Sam explicou. 

— Kant diz que a vontade é a única característica da... personalidade, pode-se dizer assim, que em exagero não se torna um defeito. O primeiro erro se encontra quando ele diz “boa”. Quando define a tal vontade como boa, ele já limita seu exagero, e o encaixa como algo moderado. O segundo está que, a vontade, mesmo se considerada boa, a pessoa que a adere perde uma grande parte de sua vida tentando resolver um problema do qual, provavelmente, não tem solução ou saída, ou o custo-benefício torna sua consecução inviável – nesse momento, lembrou-se do primeiro de sua guilda, do qual, por mais que perseverasse, por mais que tivesse vontade de ultrapassá-lo, não conseguia. Esse, na verdade, era o problema mais superficial. O que realmente contribuiu para ele chegar a esta conclusão... Prosseguiu com o raciocínio – Então é por isso que Kant está errado. A vontade em demasia pode se tornar um ciclo vicioso sem saída, quando o correto seria a pessoa desistir após uma certa quantidade de tentativas frustradas e encontrar novas estratégias e aspirações para perseguir. 

A sala ficou calada, esperando o professor contra argumentar. Provavelmente irá andar em círculos numa reanalise do que ele tinha falado anteriormente, e bancar uma de fodão sem realmente fazer jus... Tanto faz, teorizou sobre o que achava que o professor iria fazer. Mas o que aconteceu não era possível prever - um riso, que viria do outro lado da sala, de uma garota com blusa vermelha. 

— Kant está certo. A vontade da qual você fala não é verdadeiramente uma vontade. É um desejo. A vontade por si só, perseverar e tentar até conseguir, tem um brilho individual e autossuficiente que geralmente resulta em vitória, ainda mais se cultivada exageradamente. Não confunda desejo com vontade. Em um você fica parado, esperando que algo caia do céu. No outro você vai à luta e conquista tudo que, no fundo, já lhe pertence, sobrando somente a consumação. Confundi-los é um erro grotesco. 

Sam deu um meio sorriso. Ele nunca tinha visto aquela garota. 

— É ela – sussurrou Michael em seu ouvido – ela é a gostosa que se transferiu hoje pro nosso curso. 

O professor remendou o que a garota de blusa vermelha disse, e apaziguou um pouco a chama do “erro grotesco”, enquanto Sam a encarava, captando cada detalhe de sua fisionomia. A característica mais chamativa eram seus olhos. A sua grossa sobrancelha cuidadosamente delineada, e olhos azuis de pouca largura, requintado com grandes cílios, unido ao nariz afável, boca carnuda sem permitir qualquer tipo de assimetria, e traços finos, lembrava uma espécie de felino: belo, mas perigoso; agressivo, mas contido; tentador, mas sinistro. Seus cabelos dourados dispunham-se em um coque elegante, destacado por sua blusa de cor semelhante a de um vinho tinto. Sua postura graciosa era uma mistura perfeita da etiqueta aprendida em uma rígida escola de freiras, admitida somente para a alta classe, com um toque desleixado vindo da impureza de uma meretriz. 

Quando apercebeu-se de estar sendo observada, Sam desviou seu olhar para o professor. Agora ele que sentia os olhares de toda a sala para si. Imaginou que todos deveriam estar, em pensamentos ou em pequenos tumultos de burburinhos, depreciando-o com algo de temática “quis se exibir e quebrou a cara”. 

Após um certo tempo, saiu da sala por conta própria e se dirigiu ao bebedouro, refletindo sobre o que a garota tinha dito a pouco. 

Vontade não se confunde com desejo... 

Sentia vergonha. 

Enquanto engolia o jato de água garganta abaixo para acalmar os nervos, observou os ponteiros do relógio do seu avô em seu pulso, até mesmo devido a posição de sua cabeça, que mirava para sua mão direita acionando o botão. Os ponteiros das horas e minutos estavam no número doze, e em sentido anti-horário o dos segundos se aproximava do mesmo destino. Isto não pode estar acontecendo... uma coisa estranha havia aparecido em sua visão desfocada, que mirava a encruzilhada no fim do corredor. 

Foi nesse momento que viu o coelho preto de olhos escarlates. 


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Notas finais do capítulo

Vejo vocês nos reviews ;)

Nota sobre o relógio: existe um tipo de relógio antigo, no qual precisa "dar corda". O relojoeiro, devido a ausência de pino onde se "dá corda", presumiu que o relógio era a pilha. Neste último, as peças são de encaixe por pressão, mas o material pareceu ser fundido, já que não conseguiu encontrar a falha em que abre o relógio. Portanto, isso explica a indignação dele. Enfim, é isso aí.

See Ya ;)