Até a Morte tem coração escrita por Maga Clari


Capítulo 1
Que tal um beijo, Saumensch?




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/623026/chapter/1

Primeiro, as cores.

Depois, os humanos.

Sou uma observadora do que há de mais bonito na existência.

É bem possível que você me conheça. Podemos ter-nos cruzado aqui ou ali, e talvez até tenhamos acenado um para o outro. Ou talvez, você me conheça por causa da minha menina roubadora de livros. Bem, de qualquer maneira, irei me apresentar:

Sou aquela que lhe levará para um sono profundo e reparador.

Não gosto de ser vista como sombria e assustadora, isso me deixa ofendida. E aliás, vivo me martirizando por não ter acesso aos sentimentos bons dos humanos. É uma tortura sem fim.

Gosto de observar meus meninos desfrutarem do que eu nunca pude viver. Risos, cócegas, abraços, beijos. Nada disso é relacionado a mim. Mas do contrário do que todos pensam, sou fascinada por isso.

A primeira vez que vi o brilho nos olhos do pequeno Rudy, tive a impressão de que eu poderia ter todas essas sensações.

Meu garoto é realmente um amor.

* Apresentando Rudy Steiner *

– Cabelos cor de limão

– Olhos da cor do rio Amper

– Canelas tão finas quanto gravetos

– Nome de guerra: Jesse Owens

Bem, imagino que conheça meu menino por seu apelido. Rudy é o melhor corredor da Alemanha, mesmo com sua aparência desnutrida. Lembro-me de vê-lo pintar-se de preto e senti junto com ele a sensação de liberdade ao cruzar a linha de chegada imaginária.

Depois disso, todos passaram a conhecê-lo como Jesse Owens, o vencedor de atletismo jamaicano.

Mas não é este o momento que quero contar. Reservei um pequeno causo para narrar; e este acontecera logo depois de uma potencial roubadora de livros atravessar a rua Himmel, com uma cara amarrada.

— Anda, Steiner, você ainda está jogando a porcaria do futebol?

A bola foi chutada e bateu na testa de meu menino. Ele praguejou baixinho, completamente irritado por ser interrompido de sua paquera.

— *Arschloch! Não podia esperar um segundo?

— Você é um péssimo jogador, Steiner!

— Ah, é? Veja isso!

Rudy perseguira a bola como se a sua vida dependesse disso. Permiti-me rir um pouquinho da pureza dessas crianças. Sentei-me no batente de sua porta para observá-lo. Ele sempre dava espiadas na nova menina dos Hubberman, que não queria de jeito nenhum ficar naquela casa, ou melhor, com aquela vida.

Após chamá-la para jogar — e receber um "não" bem alto como resposta —, Rudy desistira de vez do futebol, optando por segui-la pela rua.

— Ei, ei! — Tommy Müller, o menino irritante que implicou com Rudy, gritou quando este levou a bola arbitrariamente para fora do jogo — Que pensa que está fazendo?

— A bola é minha! Arrumem outra!

E então saiu correndo atrás da roubadora de livros.

Eu, espertamente, resolvi segui-los também.

— *Hallo! — Rudy sorrira, amigavelmente.

— Hallo.

Balancei a cabeça, incrédula, quando Liesel Memimger tentou ignorar a doce companhia ao seu lado. Algo dentro de mim torcia muito para que ela aceitasse a amizade dele. Meu coração pulsava ruidosamente para vê-los conversar.

— Me chamo Rudy Steiner — ele estendeu a mão, um tanto desajeitado, enquanto tentava equilibrar a bola de futebol debaixo de sua axila — E você? Veio morar com os Hubberman, né? Eles são muito legais.

Liesel ignorou seu aperto de mão e continuou andando.

— Okay... — Rudy hesitou, frustrado. Mas continuou no pé dela — Hum... De onde você veio?

Nada que ele tentasse funcionava. Eu quis abraçá-lo e dizê-lo para ter um pouco mais de paciência com aquela garota. Mas ele nunca iria me ouvir.

Eu sabia que, lá no fundo, os dois foram feitos um para o outro. E em alguma outra dimensão, Rudy e Liesel casariam e teriam filhos lindos e doces, assim como eles.

— Você é muda? — Rudy encurralou-a numa esquina. Ele riu quando Liesel deu de ombros — Okay. Um cuspe para "sim", dois para "não".

Liesel cuspiu duas vezes.

— Olha... Eu não entendo muito de garotas, mas... Você é muito bonita, sabia?

Aquilo pareceu desconsertá-la um pouco. Gaguejou algumas palavras, antes de respondê-lo:

— Eu... Sério?

— Sim — Rudy baixou os olhos, e eu pude ver o rubor em suas orelhas. Como disse anteriormente, ele era uma gracinha!

Um silêncio constrangedor surgiu de repente, e então meu menino quebrou-o mais uma vez, com sua tagarelice.

— Eu podia te beijar, se quisesse!

— Sai pra lá, *Saukerl!

— Ah, qual é — falou, enquanto recomeçavam a caminhada — Aposto que ia gostar. Aliás, qual é mesmo seu nome?

— Liesel Memimger. E eu não vou gostar!

— Tudo bem. E se eu fizer por merecer?

— Como assim?

Rudy sorriu um sorriso sapeca, estendendo-lhe a mão outra vez:

— Corrida até o rio Amper. Se eu vencer, ganho um beijo. Se eu perder...

— ... Não precisarei te beijar! — ela completou, com uma expressão confiante.

— Fechado. Posições... Preparar... JÁ!

Minhas duas crianças favoritas correram com o vento batendo em suas bochechas, com um riso infantil ecoando pelos ares, e chegando a meus ouvidos.

Liesel fora desarmada pelo Jesse Owens e voltara a agir como uma menina da sua idade. Chegou a pensar que sua nova vida não seria tão ruim, afinal. Pobre Liesel... Eu realmente não queria lhe dar tamanha e trágica notícia. Mas, por hora, deixei-a curtir o seu momento romântico com Rudy.

Sim, pode parecer estranho, mas até a Morte tem coração.

— Ai!

Rudy gargalhou quando empurrou sua adversária no gramado, para que vencesse a corrida e ganhasse o esperado beijo.

— Trapaceiro!

— Nada disso! — ele sorriu vitorioso — Vencedor! Anda... Cadê o meu beijo, Saumensch?

— Trapaceiros não ganham.

— Teoricamente, cheguei primeiro. Empate?

Liesel pareceu analisar suas possibilidades. Sentei no pier, sentindo a água fria entre meus dedos do pé. Eu realmente não queria levá-lo. Crápula, crápula, crápula. Odiava a mim mesma por iludi-los assim.

— Pode ficar com um cartão bônus.

De imediato, Rudy não entendeu. Liesel levantou-se, resoluta, e voltou para casa sozinha, deixando o menino confuso. A verdade é que Liesel não daria o braço a torcer tão cedo. Mas ela sentira-se atraída pelos cabelos cor de limão.

Algum tempo depois, quando um diário fora derrubado no rio Amper — tudo entre eles sempre acabava voltando para esse lugar —, Rudy, agora mais velho, cobrara o seu bônus. E tudo que pude fazer fora gritar para Liesel beijá-lo. Infelizmente, ela não me ouviria. Talvez tivesse medo de mim. E eu ficaria imensamente envergonhada de incentivá-la e depois tirar isso dela.

— AI MEU DEUS, RUDY!

Liesel berrara quando seu melhor amigo mergulhara no rio em busca de seu diário. À essa altura, Tommy Müller já tinha ido embora, e se Rudy não aparecesse logo, morreria de hipotermia.

Após alguns minutos de angústia e medo, Rudy Steiner voltara à superfície, levantando o diário no ar. Seu sorriso cintilava em seu rosto, e eu pude sentir a alegria dele em sua vitória como herói. Ele definitivamente merecia o seu prêmio.

— E agora, Saumensch? Que tal um beijo como recompensa?

Rudy estava ensopado. Seus cabelos grudados, como se tivesse passado gel, e não parava de tossir. Apesar disso, eu continuava gritando: "Beije-o, Liesel, beije-o!". E quando ela se aproximou dele, comecei a morder as unhas, impaciente. Eu tinha outros afazeres, mas não queria perder aquilo. Liesel tinha que se apressar.

— Cala a boca, Saukerl!

E então, ela puxou suas bochechas molhadas, tomando-o para si, num beijo infantil e doce. Rudy não pode acreditar no que havia acabado de acontecer. Sua roubadora havia roubado-lhe um beijo.

Ambos estavam rubros, porém felizes.

Somente eu não compartilhava desse sentimento. Eu nunca saberia o que era. Além disso, senti uma imensa vontade de chorar. Principalmente quando Rudy envolveu-a em seus braços, eternizando aquele momento.

Eu apenas me levantei para seguir com meu ofício. Enquanto caminhava recolhendo as almas que o Fürer me dera, chorava ainda mais ao pensar no meu casalzinho. Hipócrita, hipócrita! Eu não podia chorar. A culpada era eu que tinha que leva-lo antes do tempo. Não tinha o direito de reclamar.

*Uma pequena observação*

Assim como o famoso beijo tirado na Times Square durante o mesmo período, o beijo de Liesel e Rudy foi icônico para mim. Eu poderia emoldurar aquilo e pendurar no meu peito. Talvez assim os humanos enxergassem quem eu realmente sou. Apenas um ser com um ofício horrível. E completamente romântica.

Bem, em todo o caso, sinto-me num eterno débito com Liesel Memimger. Mas, pelo menos, alivio a culpa sempre que recordo aquele beijo no rio Amper.

E na realidade, não estava muito segura se ela faria mesmo aquilo. Liesel me surpreendeu. Mas que descaso, o meu. Como eu não iria imaginar que a roubadora número um da rua Himmel não roubaria, também, beijos?

Enquanto seu trágico momento se aproxima, continuo observando meus meninos caminhando de mãos dadas, com sorrisos cativantes, e gargalhadas que acalentam meu estresse emocional.

Ora, mas que tolice dos humanos. Como não percebem que até a Morte tem coração?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Glossário em Alemão:
— Arschloch = babaca
— Saumensch = porquinha
— Saukerl = porquinho
— Hallo = olá