Diga Adeus à Inocência escrita por Mahfics


Capítulo 62
Capuz Vermelho


Notas iniciais do capítulo

Voltei ♥ Desculpa a demora, estava muito corrido.



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“Bianca Pavillion.

Nossa Chapeuzinho. Nossa ovelha. A sobrevivente. Há muitos jeitos de se dirigir a ela, uma personagem que vem ganhando cada vez mais ênfase nos noticiários e no mundo.”

Paro em frente ao pequeno barzinho de madeira e busco o whisky esquecido do meu pai, atrás das garrafas de vinho. Meu único consolo no momento. Pego um copo no armário de vidro acoplado ao bar e dispenso o gelo. Quero puro e forte. Quero cair e esquecer.

Encho-o até a metade e debruço no barzinho.

“É como uma causa e consequência; quem conhece o Lobo de Villa Lobos, consequentemente conhece Bianca. Talvez não por seu nome verdadeiro, mas como um de seus apelidos dados pelo povo.”

Como as coisas saíram do controle? Como tudo virou esse caos em um piscar de olhos? Por que não consegui reagir?

Talvez porque eu não saiba a verdade assim como as pessoas que me julgam por não saber. Porque tudo isso foi um efeito borboleta iniciado por Helena.  

“A heroína dos casos de assassinatos das jovens estudantes da universidade de Villa Lobos. Uma moça corajosa, indo contra todos que tentaram abafar seu grito por ajuda no meio daquela cidade que derrete em sangue; para as famílias da vítima, a voz de Bianca será lembrada por gerações.

Mas e para o Brasil?”

Dou um gole na bebida âmbar e respiro fundo. A sublime ardência da bebida desce rasgando minha garganta e eu gosto disso, não esboço nenhum desagrado. Ela queima tudo o que engoli por muito tempo, dissolve minhas palavras reprimidas e liberta minha raiva enjaulada.  

“No começo todos estavam certos para que lado puxavam a corda; Bianca, lógico. Quem pode duvidar? A moça que batalhou e conseguiu ser reconhecida. A garota que perdeu a amiga de universidade. A jovem aspirante a modelo que deu vida a chapeuzinho dos contos de fada. A estudante que foi muito mais profissional que muito investigador. A vítima agoniada, teimando em não morrer. A mulher violentada.”

Está amanhecendo. A aurora dá seu primeiro sinal de vida no horizonte e abre as portas para o sol ainda tímido. Minha mãe não passou a noite em casa porque está resolvendo as minhas defesas com o seu amigo, meu pai não me liga mais porque está com vergonha de tudo isso. Meus amigos fingem que nunca me conheceram.

Aos poucos estou virando apenas pó. Sou o gladiador sendo devorado pelo leão.

“Investigou. Descobriu. Acusou. Prendeu e até matou. Abortou. Enlouqueceu.”

É como se minha plateia tivesse esquecido as glórias que eu trouxe e as batalhas que venci. Me jogaram aos leões como se eu fosse mais um pedaço de carne qualquer e eu sei disso, tanto que permiti que o leão me devorasse – mesmo sabendo que tenho condição e habilidade o suficiente para matá-lo.

“Todos nós fomos a sua plateia, aplaudindo de pé todos os seu feitos, tragando sua coragem e nos inspirando em sua história de vida. “Que menina!”

Cansei. Me afoguei naquilo que não consegui dizer e engoli de atravessado, denegri nas ações que não realizei.

“Mesmo enlouquecida por seus demônios, Bianca nunca deixou de mostrar, de deixar bem claro, que sempre esteve convicta em suas ações e que nunca iria se arrepender delas.”

Dou o último gole no whisky e deixo o copo por cima do sofá, busco meu cigarro na mesa de centro e meu isqueiro. Caminho para a sacada.

É tão maçante pensar em tudo o que aconteceu comigo e admirar o fato de ainda persistir em continuar viva. Sempre achei que tudo podia ser melhorado, que as coisas iriam se acertar com o tempo e que tudo voltaria a ser como antes. Em meus delírios mais insanos eu ainda podia acreditar que eu veria minha vó de novo.

A ardência na garganta do choro é mais forte que a do whisky, nada sublime. Estou entorpecida diante de tudo isso.

Todos estão vendo pelo o que eu passei e continuam exigindo de mim, continuam explorando até arrancar a minha última gota de sangue.

“Nunca provaram que eles são os lobos! Os suspeitos sempre morrem! Onde está a prova que os incrimina? Helen Souza, a prova que incrimina o lado errado.”

Para todos, eu continuam em pé, aguentando tudo firme e fria, no entanto a verdade é que estou agonizando no chão, tardando minha morte para sofrer mais um pouco. Onde está minha misericórdia?  

“Como um passe de mágica, quase metade dos súditos da Chapeuzinho se revoltam contra a sua majestade – mostrando seu puro esquecimento diante da justiça que esta trouxe e realizou com as próprias mãos. Parecem que não consideram mais os sacrifícios feitos por ela  pela vida de outras mulheres – hoje as jovens de Villa Lobos conseguem voltar para casa sem medo de encontrar alguém pelo caminho.”

Minhas perna amolecem e meus joelhos vão de encontro com o chão. Soluço e me permito chorar como nunca chorei antes. Meu corpo convulsiona e minhas mãos agarram a grade da sacada. Não tenho mais lágrimas para derramar, estou completamente seca de tudo. Meu choro é silencioso e pesaroso, me fazendo curvar o corpo e aceitar esse peso que enverga minhas costas. Mudo e doloroso. Não tenho mais nada para colocar para fora, a não ser minha alma.  

“Sua capa não foi suficiente para a proteger do mundo revoltado de acusações que cai por cima de seu ser fraco após tantas batalhas.”

Qual o sentido disso tudo? Se ele existir de verdade e não for apenas uma invenção estúpida das crenças populares em tentar dar um sentido para a vida.

Está aqui: ela não tem sentido, seus merdas, ela é assim; dura e crua.

“Os julgamentos acolhem o público, sendo que telões são espalhados pela rua do prédio da Justiça em que é executado o júri. Talvez essa esteja sendo uma punição do governo contra a pobre moça, pois a medida ajuda a jogar o público contra a acusada, inflamando o sentimento de revolta.”

Onde eu errei nisso tudo? Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Juro por Deus que nunca fiz nada de mal para ninguém, que nunca quis o fracasso de ninguém. Eu era apenas uma menina inocente e tola. Nunca quis me transformar em uma assassina.

Bianca não encontra mais condições de sair de sua casa já que um grupo de protestantes aguardam a primeira oportunidade para atacá-la.”

Tentei fazer o bem e conseguiram distorcer isso para a pior ação de todas.

Afinal, o que eu sou nesse história toda? A ovelha ou o lobo vestido de ovelha?

“Há a divisão mundial sobre qual lado apoiar da história.”

Levanto e caminho de volta para dentro. Pego a garrafa de whisky pela metade e vou em direção as escadas. Dou um gole e engasgo.

Você é uma merda, Bianca, uma grande merda.

“Bianca é um mau exemplo para a sociedade e, principalmente, para as moças devido ao seu histórico: assassinato, violência, aborto, desrespeito com as forças armadas e com o próprio governo. Ela deve ser punida pelos seus atos ilícitos. O que importa salvar vidas se ela usou atos errados para isso?”

Paro em frente ao espelho na sala íntima de minha mãe. Estico a mão e toco em meu reflexo frio.

No que você se transformou? Quem é você?

Não lembro quando mudamos tanto assim, quando perdi a antiga Bianca e me transformei nisso. Somos uma vergonha. As pessoas nos odeiam e elas tem razão... Olhe pra você, está um trapo. Como podem acreditar em sua inocência se você não a possui mais?

Você foi poluída pela mordida do Lobo e se transformou em um. Olhe para as suas mãos... Estão sujas de sangue, sangue das vítimas... Sangue do Malic.

Ah, Malic.

“ Após o último julgamento, Bianca foi atingida por um balde de tinta vermelha aos gritos dos protestantes: “Assassina!”

Dou mais um gole e cambaleio para trás. Dizem que o tempo cura tudo... Estou aguardando o meu tempo.

“Lobo ou ovelha? Quem é Bianca Pavillion?”

Olho para o espelho mais uma vez e meu reflexo está desfigurado. Estou suja de sangue e não sei dizer se estou ferida ou se feri alguém. Meus olhos estão arregalados e pareço estar paralisada, há um machado ao meu lado.

O reflexo de Malic aparece atrás do meu.

— Está feliz agora? – sua voz ecoa em minha cabeça – Matou a pessoa errada.

— Não! – grito e jogo a garrafa contra o espelho. Cacos voam contra o meu corpo – Você era o Lobo! Claro que era... Claro que era... Você matou e mereceu ser morto.

Eu fiz justiça... ?

— Eu estou feliz! – grito para a parede – Eu fiz a coisa certa! Acabei com você! Está escutando?! Eu acabei com você!

Rio para não chorar.

— Acabei com você...

“Helen agarrou o processo com unhas e dentes, determinada a incriminar a assassina de seu marido e “vê-la na cadeia o mais rápido possível.”

Passo a mão no cabelo e olho em volta. O que está acontecendo? Que merda que estou fazendo agora? Gritando com paredes?!

Nada vai resolver agora, já está tudo feito e premeditado.

“ Bianca é uma ameaça!”

Preciso tomar alguma coisa para dormir. Caminho para o quarto de minha mãe e vou direto para seu closet. Vasculho sua gaveta de remédio e não encontro nenhum calmante – acho que ela já usou todos.

Encosto na parede e escorrego até o chão.

O que vou fazer da minha vida?

“ Está cada vez mais difícil defendê-la, principalmente com os suspeitos mortos.”

Há uma caixa negra no alto do guarda- roupa de minha mãe. Estreito os olhos. Conheço essa caixa...

Levanto e pulo para alcançá-la. Assim que tenho ela em mãos, reconheço: é a caixa que minha vó guardava a arma de meu vô. Minha mãe não enterrou isso junto com a vovó?

Abro-a e encontro o velho revolver. Quebrei a promessa que fiz para a minha vó...

Pego a arma e aliso seu cano. É incrível isso ainda funcionar com precisão, seria mesmo uma pena jogá-la embaixo da terra.

“Contos de fada não podem ser aplicados na vida real.”

Olhar para a arma é como contemplar todos os meus problemas. Será tão rápido terminar com tudo que chega a ser irônico. Só um tiro e resolverei o problema de todos aqui.

Tenho a solução em minhas mãos, por que não aproveitar?

É como um aviso do próprio destino, acabar com isso agora antes que as coisas piorem de uma vez. Posso fazer isso. Por que eu não faria?

Todos que um dia me apoiaram, agora querem minha cabeça espetada em uma lança, meu pai tem vergonha de ter parentesco comigo e minha mãe anda sob o efeito de tanto remédio que mal consegue pensar nas coisas, virou um robô. Meus amigos continuaram suas vidas como se eu já estivesse morta e o Matthew brinca de ser meu namorado como meninas brincam de casinha.

Sou um peso morto nessa história. Já morri a muito tempo, só não fui capaz de enxergar isso.

Meus olhos se enchem de lágrimas.

Por quê? Sofrer tanto para ter esse fim? Por que a merda do Lobo já não me matou antes? Por que não fui poupada de tanto sofrimento?

Aperto o cabo da arma.

Morrer é tão fácil que dói o peito em praticar a própria a morte, em chegar a esse ponto lastimável.

Fecho os olhos.

Deixa, às vezes nós perdemos.

Podia jurar que passaria por isso sem nenhum arranhão e que tudo iria se curar e deixar apenas cicatrizes translucidas em minha pele, que eu seria a heroína.

Ah, doce ilusão como eu amo te saborear.

Minha tentativa de ajudar acabou me transformando em um monstro, me importei demais com os outros. Olhe para mim agora, grande santa.

Tudo bem, talvez seja melhor assim.

Abro os olhos e encaro meu reflexo no espelho que cobre a parede toda.

— Sinto muito por tudo isso. – murmuro – Não era para ter sido assim. Sabe, não entendo essa minha fé em acreditar nas pessoas... Nós tentamos ajudar e olha onde estamos agora, olha para onde quem ajudamos nos trouxe. – suspiro – Mas talvez fosse necessário passar por isso para conseguir enxergar o mundo de verdade, deixar de ser aquela menina tola.

Carrego a arma.

— Não se preocupe, não irá doer, será só uma picadinha. – murmuro, minhas mãos tremem – É assim que a vida age, entende? Glorifica uns e esmaga outros. As pessoas nunca irão nos entender. Não tenha medo, deixe ir...

Minha mão treme e as lágrimas escorrem.

— Teremos paz. – sorrio para o espelho – Iremos para um lugar melhor e lá seremos heroína e não vilã, lá vão estar prontos para entender nossa história e ações.

Sou incapaz de apertar o gatilho.

— Por favor, essa é a nossa única saída. – seguro o soluço – Precisamos fazer isso.

Meu cabelo já está com a raiz castanha, mas nunca esteve tão platinado.

— É uma pena sujá-lo. – sussurro.

Solto o ar e encho os pulmões novamente.

Respire devagar... Feche os olhos... Puxe o gatilho.

Escuto a porta da sala ser aberta. Minha mãe em casa? Posso escutar seus passos pela sala. Um aperto em meu peito sufoca minhas ações.

Ela sobe as escadas.

— Bianca, está acordada?

— Sinto muito, mamãe. – sussurro.

Atiro.

 

“No final de tudo, quem matou a chapeuzinho não foi o lobo e sim, o povo. Então, agora vemos quem é o verdadeiro assassino desde o início.”


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Notas finais do capítulo

Coloquei essa imagem de novo porque ela é a que melhor define esse final♥
Bem, esse foi o último capítulo da história, espero que vocês tenham gostado do enredo e do desenvolvimento. Queria agradecer a todas vocês por ter acompanhado até o fim e comentar, além, é claro, das maravilhosas que recomendaram. Foi um prazer gigante trabalhar para vocês e espero vê-las em outras histórias♥
Estou com o coração apertado agora. Nunca pensei em realizar o final dessa história e quero até chorar♥
Não sei como agradecer vocês, de todo o coração.
obs: haverá mais um capítulo mostrando um mini passagem de tempo.