Diga Adeus à Inocência escrita por Mahfics


Capítulo 52
20.




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Esse é o único momento da minha vida que preciso de ação e estou totalmente vazia dela. Meus pés grudam no chão e meu cérebro morre. Sou apenas um corpo. Sou apenas a próxima vítima. Posso sentir que estou gelada, que o sangue fugiu do meu corpo assim como meu esqueleto, deixando para trás um saco de pele mole.

O que sou perante ele? O que posso fazer para evitar tudo isso?

Seu passo no assoalho me desperta. Está a alguns dez passos de distância. Meu coração volta a bater e uma corrente elétrica acorda meu cérebro como um choque, levando a reação direta para os meus pés, que correm. Não tenho uma direção exata até visualizar a porta da cozinha. Estou correndo tão rápido que mal tenho tempo de parar e me choco contra a madeira. Onde está a maçaneta? Como vou abrir? Ele tirou a maçaneta!

Grito em meio as lágrimas e soco a porta. Sinto sua presença em minhas costas, encaro-o por cima dos meus ombros e estremeço. Por que ele não ataca de uma vez? Pelo canto de meu quase ponto seco consigo ver a pia cheia de louça e uma faca. Com um impulso involuntário – semelhante ao tirar a mão de uma panela quente -, debruço por cima do gabinete e corro, pegando a faca no meio da ação. Vejo seu vulto correr também.

Passo pelo balcão que leva a sala de jantar e com um rápido movimento com as mãos, agarro o telefone sem feio. Continuo correndo e contorno a cozinha, ligo o telefone e começo a discar quanto reparo que ele está sem linha. Meus olhos se enchem de lágrimas mais uma vez e o pânico começa a travar o meu corpo. Não há como fugir. Jogo o telefone longe.

Algo duro bate contra minha cintura e me leva ao chão. A faca escorrega pelo piso até a porta da entrada e a mesa – que foi jogada em cima de mim -, cai por cima de minhas pernas e me prende no lugar. Ofego e tento me arrastar.

Sinto a luva gelado envolver meu tornozelo e me puxar, retirando-me debaixo da mesa. Viro e sento, encarando a máscara mais uma vez.

– Não! – grito o mais alto que consigo e tento acertá-lo com um chute – Eu não aceito isso!

Ele segura o meu outro pé e me puxa mais rápido, me chocando contra a parede inúmeras vezes. Grito e protejo meu rosto com a mão e enfim, ele para. Tento fugir e agarro o pé da mesa. Por favor, por favor, seja forte. O peso de seu corpo esmaga o meu, seus joelhos prendem meus braços e suas mãos envolvem meu rosto. Arregalo os olhos e minha garganta seca.

Percebo que não adianta lutar. Desde pequena sempre achei que poderia vencer um homem na luta, que as mulheres que apanhavam de maridos eram fracas e submissas demais, qual a dificuldade de lhe acertar um tapa na cara? Agora, vejo a dificuldade. É uma luta desleal.

– Você voltou para me assombrar? – ele diz entre dentes, com a voz abafada demais para meu reconhecimento.

Tento gritar e então o golpe me paralisa. Ele ergue minha cabeça pelos cabelos e choca contra o chão com toda a sua força. Minha visão fica turva e meu corpo mole. Cada choque contra o chão faz meu corpo balançar e meu couro cabeludo rasgar. Tento lutar, resistir, me soltar.

O quarto golpe me derruba. Minha visão fica branca e não tenho mais ligação com meu corpo. Estou morta? Talvez quase. Posso escutar meu coração bater e meus pulmões se encherem de ar com minha respiração fraca. Continue lutando. Não sinto mais seu peso e, aos poucos, minha visão ganha um foque.

Ergo o corpo e engatinho até a faca. Onde ele está? Quero chorar. Meu corpo reclama com dores em todas as partes e o sangue de minha nuca escorre pelo pescoço, deixando um rastro de pequenos pingos escarlate. A faca está perto, cada vez mais perto. Estico o braço e consigo alcançar seu cabo. Olho para a porta da entrada e noto que ela também não tem a maçaneta.

Seus passos se fazem escutar novamente e meu coração para.

– Por favor, me deixe em paz! – imploro em meio as lágrimas.

Antes que eu tenha tempo de virar e encará-lo, sinto a sola de sua bota em minhas costas e então o chão contra o meu peito.

– Será um prazer fazer isso. – ele diz e pressiona mais meu corpo contra o chão.

Consigo entender o seu sentido de me deixar em paz e tudo em meu corpo gela. Aperto a faca e golpeio a panturrilha da perna que me pressiona contra o chão, aproveito o ato e ergo o corpo. Quando irei iniciar minha corrida, ele acerta um chute em minhas pernas – quase como uma rasteira-, e eu caio escada abaixo. Tudo a minha volta gira e nunca consigo estabilidade para parar de cair. Volto para a lavanderia.

O cheiro de morte aqui está insuportável agora.

Vejo-o se aproximar, descendo um degrau de cada vez. Volto a chorar.

– Por favor, por favor. – suplico.

Ele para na minha frente. Recuo para trás me arrastando.

Meu choro é silencioso e nem lágrimas tenho. Minhas bochechas estão ressecadas e meus lábios rachados. Por que isso está acontecendo comigo?

O Lobo abaixa e estica a mão, tocando a ponta dos dedos em minha bochecha e tenho a sensação de poder sentir seu sorriso atrás da máscara.

– Não sabe como amo vê-la assim. – sussurra – Submissa as minhas vontades.

Uma lágrima escorre.

– Não, minha menininha, não chore. – ele aperta minha lágrima com o polegar e marca a pele de minha bochecha – Você é tão linda pra chorar.

Engulo seco.

– Se fosse possível, empalhava você. – ele se aproxima – Para tê-la pra mim eternamente.

Suprimo um grito e arregalo os olhos. Ele é doente.

– Se afaste de mim. – dou um tapa em sua mão – Se afaste de mim!

Ele respira fundo e levanta novamente.

– O que vamos fazer com você? – posso imaginá-lo erguer a sobrancelha.

Com toda a certeza ele deve estar usando alguma coisa para abafar o som de sua voz além da máscara.

Meu rosto enruga de novo e choro ocultamente, com a alma. Não estou pronta para morrer.

Com um reflexo involuntário, viro para correr e acabo não tendo estabilidade para ficar de pé, engatinhando para perto do cadáver de minha vó. Sua bota encontra minhas costas mais uma vez e me força contra o chão. Bato o queixo no concreto e sinto gosto de sangue.

– Sabe, você tem um corpo tão lindo. – suas palavras ásperas me despem.

Arregalo os olhos e paraliso. Não...

Posso senti-lo abaixar próximo de meu corpo. Tento me arrastar, mas a pressão contra o meu corpo é muito forte. Suas mãos tateiam minhas coxas e nádegas. Grito entredentes e tento me arrastar novamente.

– Tão doce. – ele sussurra – Imaculada.

Isso não, por favor, me mata, me mata, me mata!

Talvez o medo do futuro tenha me deixado mais forte ou a inexplicável vontade de fugir dali, consigo erguer o corpo e avançar. Três “arrastos”: é a distância que consigo percorrer antes que as mãos fortes alcancem meus ombros e me forcem contra o chão. Não consigo me mexer, gritar, fugir. O desespero me faz hiperventilar.

Uma mão intrusa em minha blusa começa a rasgar o tecido fino. Tenho ânsia de vômito.

– Minha menininha, fique quieta, sim? Se não te mato.

Estou livre de minha roupa, menos dele. Sob sua voz abafada meu corpo reage e mais uma vez, tento fugir. Ergo o corpo e sou jogada contra o concreto mais uma vez, o grito entala em minha garganta. Quero gritar para morrer, quero suplicar por isso.

Suas mãos passeiam por meu corpo nu e frágil mais uma vez. Lisas como o couro que as veste e geladas como a morte que trazem. Sou subjugada por seu corpo maior e mais forte, impossibilitada de lutar, de me salvar. Fecho os olhos por um breve momento e rezo.

O cheiro fétido do sangue de minha vó embriaga minhas narinas e se mistura com minha situação. Gorfo; esse gorfo conhece mais meu rosto do que o chão que me esmaga; esse gorfo é incapaz de parar o animal.

– O que foi? Até parece que não está gostando. – ele me faz erguer um pouco o quadril.

Mais uma vez, luto. Seus dedos agarram meu cabelo e forçam minha cabeça contra o chão novamente. Chão duro. Pinto duro.

O corpo pesado esmaga o meu mais uma vez e faz minhas bochechas esfoladas serem esfregadas novamente no concreto molhado. As lágrimas tampam minha visão e meu choro oculto me distraí. A sua outra mão monstruosa busca caminho entre minhas pernas e quando tento me esquivar, tenho a cabeça batida contra o chão de novo.

Sua cintura contra o meu quadril; seu pau a me violentar.

Uma.

Duas.

Três.

Quatro.

Cinco.

Perco a conta dos movimentos, perco a noção de espaço. A cada encontro de seu corpo com o meu uma parte minha morre, minha alma se quebra e se perde. Trinco o maxilar e grito um som mudo. Sua respiração abafada está ao pé de meu ouvido e o nojo ao ouvir o som pesado se irradia pelo meu corpo.

O sangue de meu rosto esfolado, de meus lábios estourados e meu íntimo ferido começam a se juntar com a água suja do chão, dando-lhe uma coloração mais forte a minha volta. Posso sentir o sangue escorrer por minhas pernas. Minha vida está escapando de meus dedos. Por que não consigo gritar para morrer? Quero morrer. Quero que ele me mate agora.

A água vermelha é a resposta explicita do grito que não consigo expelir, da dor que não consigo lamentar.

Consigo ver o rosto de minha vó olhando para mim, seus olhos vidrados. Com força, consigo estivar a mão e pegar na sua, aperto.

Vovó, me ajude, por favor, me tire daqui.

Aquela coisa asquerosa não para de entrar e sair de dentro de mim.

Entrar; sair.

Entrar; sair.

Entrar; sair.

Meu pranto é silencioso, assim como minha reza. Meu corpo se despedaça a cada inda e vinda do corpo estranho no meu. Além de meu choro, há o sangue; que escorre por minhas coxas, boca, bochecha e por minhas lágrimas.

Quanto tempo irá demorar para eu morrer?

Então, além de tudo o que estava existindo no momento, há também o gozo. Esse sêmen a apodrecer minha carne; branco, denso, descendo por minhas pernas: morte.

Não sinto mais seu corpo sobre o meu, seu peso me esmagando. Estou leve. Tenho a sensação que irei desmaiar.

– Minha indefesa Angel. – ele afunda os dedos em minha coxa com um tapa forte e começa a caminhar em direção a escada. Escuto sua braguilha ser fechada. Meu corpo desaba no chão.

Viro o corpo e escorrego minha mão até a mistura grudenta de branco e vermelho; para mim, essa mistura nunca se tornará rosa. Deixo-me largada no chão, segurando a mão de minha vó, em meio minhas roupas rasgadas e meu sangue. Escuto seus passos no andar de cima.

Será que ele me matará agora?

Não há mais lágrimas, mais dor ou medo. Não existe mais nada em mim.

Seus passos somem de minha audição.

Meu olhar está perdido para a imensidão do negro que consume.

***

Não sei quanto tempo me larguei ali. Morta. Quando me encontraram já era tarde na hora de evitar o que aconteceu: ninguém poderia me salvar, minha vida já havia acabado. Já era tarde para uma alma morta.

No fim das contas, não existe lenhador. Não existe ninguém ali para te salvar.

Os policiais que fariam minha escolta de manhã estavam aqui. Amanhã já era hoje?

Me fizeram largar a mão de minha vó e subir as escadas, vestiram meu corpo debilitado e me alimentaram com um chá enquanto chamavam por reforços. A desgraça havia acontecido. Não havia mais um eu aqui, onde eu estava?

De todos os procedimentos que seguiram – o IML, os infinitos exames, as intermináveis perguntas, as tonalidades e prescrições de cada caixa de remédio, os flashes das câmeras, a fúria por informação, o choque das pessoas próximas, os cuidados com meus ferimentos, um possível feto –, apenas participei do banho que minha mãe me deu no hotel. Esfreguei minha pele com tanta fúria que achei possível arrancá-la, tinha tanto nojo do meu corpo que parecia que aquela sensação nunca passaria – tinha a impressão que ele ainda estava encostando em mim.

– Por que ele não me matou, mamãe? – balbucio ainda esfregando meu braço até que outra nuance de cor ficasse exposta além do roxo dos hematomas.

Ela arregalou os olhos e não disse nada, ao contrário, me abraçou e segurou minha mão para dar um fim na minha tentativa de arrancar minha pele.

– Pare com isso. – ela sussurra.

– Por que ele não fez isso? – murmuro.

– Bianca, por favor.

O soluço desencadeia meu choro e meu grito rouco. Minha mãe afunda o rosto na curva de meu pescoço e também chora. Viro e abraço-a, apertando os corpos.

Sou uma pessoa quebrada.

Ela puxa a toalha e a enrola em meu corpo, me guiando para fora do boxe. Caminhamos para o quarto, onde ela se distraí em caçar uma muda de roupa para mim. Sei que está evitando chorar na minha frente, demonstrar fraqueza – alguém precisa ser forte para me dar apoio, mesmo não querendo um -, ela não falou de vovó ou quis saber o que aconteceu. Está ignorando enquanto eu estou morrendo por dentro.

Arrasto os pés até o espelho e me encaro; um espectro me encara de volta, olheiras, palidez, fraqueza, curativos e hematomas, lábios inchados, falhas na cabeça por conta dos pontos. É isso que sou agora: nada. Por que ainda estou viva? Por que ele me deixou viva? Para viver esse inferno toda vez que me olhar no espelho? Para sempre me lembrar do que aconteceu? Continuar presa a maldição, sendo que estou gerando a maldição em mim agora. Há um monstro crescendo em mim – talvez.

Sou apenas a extensão de Helena. Não há mais Bianca aqui.

Pego o prato do serviço de quatro e jogo-o contra o espelho. Os pedaços espelhados voam contra o meu corpo e um que está no chão chama a minha atenção. Grande o suficiente...

Minha mãe diz alguma coisa enquanto corre em minha direção. Abaixo para pegar o caco de espelho e aperto em minha mão, uma gota de sangue escorre. Sem medo ou hesitação, finco-o em meu ventre, posso sentir a pele ceder e o abrigar, o sangue escorrer. Minha mãe grita.

Grande o suficiente para ferir e pequeno demais para matar.


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Notas finais do capítulo

Well, acho que irei ficar mais uma semana sem postar aqui... Talvez não chegue a uma semana, mas irei demorar um pouco. Sorry.



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