O Cão e seu Menino escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Amigo, estou aqui.




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Cidade estranha, com gente esquisita.

Eu era um forasteiro em terras desconhecidas. E apesar de falar a mesma língua, parecia que ninguém naquele lugar era capaz de me entender.

Exceto você.

Você, que apareceu no portão da minha casa numa noite, chorando tão alto quanto a dor lhe permitia. Eu tinha prova no dia seguinte, e precisava dormir.

Entretanto, você me roubou o sono. E quando fui procurar pela origem do barulho, vi uma criaturinha largada no meio fio, era tão pequeno, mas, ainda assim, percebi que era só tristeza. E dor. Alguém tentou te matar, quebrando o seu pescoço. Te machucaram, mas você resistiu.

Eu já disse que precisava dormir naquela noite?

Mas você não deixou.

Te deixei na minha cama, sangrando, enquanto pesquisava desesperadamente por um veterinário que pudesse lhe atender naquele horário. Não encontrei nenhum.

Você continuou chorando bem baixinho, e cada vez ficava mais difícil de te ouvir.

Te peguei ao colo, e, sentado no minúsculo quintal daquela casa sublocada, passamos a noite. Eu pensei que você morreria nos meus braços e não dormi nem por um segundo, sentado no chão, com frio e chorando por você.

Mas você não morreu, e eu te levei até minha faculdade, onde te atenderam.

Eu disse que você não era meu cão. E eles responderam que, se não havia dono, o mais humano seria sacrificar. Você estava sofrendo e, mesmo que sobrevivesse, teria sequelas para o resto da vida.

Alguém te deixou largado na sarjeta, sozinho, com frio, sangrando e quase morto. A primeira reação humana que você conheceu foi a rejeição.

Eu não tinha espaço. Nem dinheiro. E muito menos vontade de ter um cachorro naquela casa minúscula em que habitava. Entretanto, não era mais uma questão de querer ou não. Você me pertencia. E eu disse que não iriam te sacrificar. Que você voltaria para casa comigo.

E voltou.

Apesar de seu pelo preto e fosco eu te chamei de Fênix. Talvez feminino demais para um macho. Mas não poderia ser outro: você morreu e ressurgiu naquela noite.

E eu também.

Afinal, você foi o meu primeiro amigo naquele lugar estranho. Mesmo me tendo feito perder aquela prova que me rendeu uma dependência.

Você realmente teve sequelas. Era todo tortinho. Precisava se esforçar para não acabar andando sempre em círculos. As patas dianteiras quase sempre se cruzavam, ou pisavam uma na outra. Eu via como as pessoas te olhavam, quando eu te levava para passear, mas eu me divertia e você também.

Lembra quando você estava melhorando do pescoço e acabou ficando doente de novo? Eles me disseram o nome da doença, mas eu acabei esquecendo. Mas nunca vou esquecer que seria a minha primeira viagem internacional, mas eu deixei de ir para ficar com você. Afinal, ninguém mais aceitaria ficar com um vira lata doente.

Você quase morreu de novo, mas sobreviveu. E eu fiquei um mês inteiro de férias preso naquela cidade estranha, com você.

Foi um dos melhores meses da minha vida.

Eu só não sabia.

Você me fez conhecer realmente aquela cidade, e perceber que não era assim tão estranha. Você se lembra quando conhecemos aquela moça ruiva e simpática naquela praça? Você pulava em cima dela, e pedia por atenção. Mas depois você latia e tentava a morder.

Talvez você não se lembre, mas a moça ruiva me deixou e eu estava triste. Não queria sair do quarto. Não queria ir para as aulas. Entretanto, você não aguentava ficar enfurnado naquela casa, não é? Você latia, arranhava e mordia os móveis até me fazer te levar para sair. E caminhando contigo novamente, como dois amigos contra o mundo, me fez lembrar de como eu era feliz e não sabia.

Aliás, foi numa dessas caminhadas que eu comecei a falar com você. Primeiro baixinho, com vergonha que os outros fossem ouvir, e depois não me importava. Eu sabia que você entendia. E por muito tempo, foi você o único que me ouviu. Que absorvia minhas palavras, antes mesmo de eu tomar gosto pela escrita.

Falando em escrita, quantos trabalhos meus você comeu? Quantos livros caros você mastigou? E o meu celular de última geração que meus pais me deram de natal que você usou para aparar os dentes? E todos os sapatos que foram para o lixo depois que você resolveu brincar?

Ah, Fênix, na verdade nada disso importou. Quando eu estava prestes a finalmente me formar, e você ficou doente de novo. Eles disseram um outro nome complicado que eu não quis memorizar. Disseram que você morreria naquela semana.

Mas você não morreu, né?

Não, você é muito estúpido para simplesmente deitar e morrer.

Como uma verdadeira Fênix, você ressurgiu das cinzas e ficou comigo por mais seis meses. Me viu graduando, e voltou comigo para a cidade onde eu nasci, para a casa dos meus pais.

E então um dia você fechou os olhos e se foi.

Agora eu estou aqui, escrevendo isso e pensando em como você foi um cachorro difícil. Você era todo torto, sem raça, me fez perder uma viagem, me fez perder notas, tinha ciúmes da minha namorada e avançava contra ela, comia todos os móveis, latia demais a noite, urinava na minha cama sempre que estouravam fogos e chorava sempre que escutava trovões.

Tudo isso, e o seu único defeito foi não durar para sempre.

Isso não é um adeus, é um obrigado.

Como ser humano, eu não sei nada de nada. Mas você sabia. Sabia de coisas profundas e relevantes, mesmo sem conhecer sequer uma palavra. E apesar de continuar sendo humano, agora eu sei de algo que nunca ninguém vai poder me fazer esquecer, porque você me ensinou.

Agora eu sei o que é amizade.

A lealdade sem fim. O amor incondicional.

E apesar da coleira vermelha anti pulgas que você usava, eu sempre lhe pertenci e nunca o contrário.

Eu te amo, meu amigo.


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