Semana passada descobri que precisava usar óculos.

Eu, com cinquenta e dois anos, três filhos, um neto por nascer e uma carreira respeitável como professor, preciso usar óculos. Um absurdo. Eu não estou tão velho!

Mas não era velhice meu problema, era miopia. Miopia é coisa dos jovens. Meus alunos descobrem que têm miopia; eu não posso sofrer do mesmo mal que eles e ter sobrevivido por meio século sem ter a menor ideia. Sempre vi tudo muito bem, obrigado.

Foi minha esposa que me convenceu de que eu precisava consultar um oftalmologista quando minhas dores de cabeça começaram a tomar boa parte da minha vida. Eu clamei que não nada, que tinha sido assim a vida inteira, mas acabei por fazer o gosto dela. Afinal, você sabe como são essas mulheres e como, por trás de tudo, elas sempre têm aquele pinguinho de razão que te deixa preocupado.

Marquei a consulta e fui, mesmo a muito contragosto. Não tenho nada, doutor, eu juro. Só vim por insistência da minha mulher… Mas eu tinha. Miopia. E nem era uma miopia que se prezasse, só um grau em cada olho. Alguns dos meus alunos – muito mais jovens – tinham graus bem mais elevados!

Não preciso de óculos. Não vou usar. Um grau em cada óculo, qual a razão? Mas minha esposa me lembrou das minhas dores de cabeça e disse que eu era bem-vindo a senti-las pelo resto da vida se assim me calhasse. É claro que, mais uma vez, ela tinha razão, e eu fui obrigado a ceder e ir atrás dos malditos óculos.

Sentia-me cada vez mais ridículo enquanto provava os aros, mas por fim escolhi um que a vendedora disse me deixar com ar intelectual. Ontem fui buscar meus santos oculozinhos.

Semana passada descobri que era míope.

Ontem provei os óculos pela primeira vez.

E o que eu vi… O mundo sempre fora tão bonito assim? Sempre tivera aquela beleza escondida em seus traços, cores, sentidos? Sentia-me como uma criança recém-nascida, andando pela casa em admiração. Os números no relógio eram elegantes, o papel de parede continha mil detalhes, o rótulo dos xampus era claros mesmo de longe! Que maravilhoso mundo era aquele!

Minha esposa me encontrou andando ainda em excitação pela casa, tocando as coisas, maravilhado. Não conseguia conter o sorriso, conter o novo sentimento que eu descobrira. Era como ter estado a vida inteira olhando por de trás de uma cortina, e eu finalmente estava livre dela; era como entrar por acaso em um novo mundo sobre o qual eu apenas ouvira falar, mas que se provava tão fantástico quanto verdadeiro.

Que mundo lindo esse em que vivo!

Pensar nisso fez também minha euforia se esvaecer. O mundo era lindo e novo para mim, mas para todos os outros continuava o mesmo. Esse mesmo mundo sobre o qual eu pensava com empolgação abrigava crianças famintas, guerras e doenças terríveis; era lar dos mais cruéis assassinos e egoístas governadores, querendo manipular a todos nós como fantoches. Como podia se tratar do mesmo mundo?

Seriam todos míopes? Seriam os donos das maldades e dos pecados, cheios de ganancia e egoísmo, incapaz de ver o mundo bonito em que se encontravam?

É difícil acreditar que vivemos em um monte controlado por poucos, onde é preferível investir na guerra a nos que têm fome, onde há tanto preconceito por todas as partes. É difícil acreditar que tudo isso é verdade, que há tanta violência, tanto exagero, tanta poluição. É difícil aceitar tanto ódio, tanta falta de empatia… Quando foi que dinheiro passou a significar mais do que uma vida? Quando foi que a educação deixou de ser prioridade? Quando foi que perdemos nossos direito?

Deus vai ajudar! Só é colocado a sua frente o que Deus sabe que você aguenta.

Teria, então, Deus simplesmente abandonado sua obra que acabou em desastre? Ou, pior, sido assassinato?

Há tantas coisas boas no mundo, tanta beleza tanta graça! Tudo destruído, tudo arrasado.

E por que ninguém faz nada para mudar?

Semana passada descobri que sou míope.

Ontem descobri que o resto do mundo está míope.