Artimanha da Discrição escrita por Akira


Capítulo 6
✿ 6. O seu silêncio.




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Era noite, fazia frio e minhas roupas estavam encharcadas por conta da chuva. Estava parada em frente à rua que, sinceramente, não tinha ideia de qual era. Nem ao menos de qual bairro eu estava, aliás, que horas eram? Não arrisquei-me em pegar o celular da bolsa, pois a qualquer momento poderia aparecer alguém e roubá-lo de minhas mãos e me agredir em seguida; preferi continuar encarando as gotas d’água caindo sobre o asfalto cheio de buracos.

Sem pensar nos perigos que aquele beco sem saída tendia a oferecer, Natsu, o inconsequente, tentava falar ao telefone do meu lado.  Ele berrava palavras as quais eu não dava importância ao entender, apenas continuei a fitar a rua iluminada por somente um poste de luz amarela, o que causava maior terror na atmosfera presente. Senti um calafrio, caramba como estava frio.

Após minutos ele se aquietou, e seu silêncio era como tiros invisíveis em minha mente.

Só de pensar em como esse dia tinha começado me fazia rir com ironia.

Assim como todas as manhãs, levantei ao som de pessoas brigando na rua. Dei bom dia para meus pais, tomei um café da manhã reforçado e fui até o ponto de ônibus, pois permanecia sem meu querido carro. Inesperadamente acordei de bom humor, mesmo sendo uma segunda feira nublada e com grandes probabilidades de chover.

No ponto de ônibus abri um livro de biologia, lendo rapidamente parte da pesquisa para o trabalho. Levy pela a primeira vez não era minha dupla, e sim Gray Fullbuster, com isso imaginei que teria de fazer todo o trabalho sozinha.

Parei para pensar em Sting. Como nunca notara um rapaz tão lindo morando no mesmo prédio que eu? Provavelmente nossos horários não se cruzavam, e também meu espírito de boa vizinhança não era exercido, portanto, nunca nos encontramos. Mas, à primeira vista, ele já parecia ser um homem atraente. Seus cabelos louros rebeldes me chamaram a atenção, além de também recordar-me das madeixas ruivas de Natsu. Porém, diferente de meu primo, Sting tinha um sorriso caloroso, mesmo com todo o porte físico de garoto malvado. E seus olhos, ah, seus olhos azuis.

Deus, eu queria vê-lo novamente.

Pisquei e revirei o rosto. Merda, o que era isso? Estava ficando doente? Talvez fosse o frio — de qualquer forma, entrei no ônibus. Dessa vez, eu esperava que fosse finalmente uma das últimas vezes que utilizaria de um transporte público.

Quando cheguei, a escola estava extraordinariamente quieta, todos os alunos conversavam baixo, caminhavam pacificamente pelos corredores. Novamente, pensei em culpar o clima gelado pelo desanimo dos jovens, que ao contrário de mim, permaneciam sossegados e calmos. Quiçá eu fosse a única um pouco alegre.

Infelizmente, alterei o humor no momento em que vi Natsu e lembrei de sua existência. Ele conversava com seus novos amigos, haviam band aids em seu rosto e usava o velho cachecol branco com listras que ganhara de Igneel quando mais novo. Recordei-me, no momento em que trocamos olhares, que sairíamos juntos essa noite.

A primeira aula foi reservada para darmos continuidade aos exercícios propostos do trabalho de Sr. Patrick na biblioteca. Mesmo que estivessem todos desanimados nessa segunda, quase a turma inteira desistira de concluir as atividades para conversar ou brincar.

Do outro lado da sala estava Levy e Natsu. Eles não pareciam estar interessados em fazer o trabalho de biologia, pelo o contrário, brincavam e faziam torre com lápis de cor que roubaram de alguém. Eu, por outro lado, mordia minha caneta a ponto de quebrá-la. Ainda não conseguia acreditar que minha melhor amiga me trocara por uma peste ruiva.

Natsu encontrou o meu olhar, sorrindo com sarcasmo em minha direção e envolvendo seu braço em torno de Levy, que ergueu a sobrancelha estranhando o ato. Em seguida começou a brincar com os cabelos da azulada e os dois voltaram a rir. Eu batia os dedos na mesa, impaciente.

— Desse jeito vai quebrar a unha — a voz sonolenta de Gray cortou meus pensamentos assassinos. Virei-me para o olhar, e o moreno lia o caderno com desinteresse enquanto girava um lápis entre seus dedos.

— Me desculpa — falei, retirando a caneta de meus dentes e voltando a focar no trabalho. — É que aquele ridículo roubou minha melhor amiga. Minha melhor amiga! Como ele pôde ter coragem de fazer isso? — Me joguei na mesa com os braços debruçados. — Natsu voltou para destruir a minha vida.

Senti as mãos frias de Gray sobre minha cabeça, fazendo cafuné e brincando com meu cabelo. Um belo consolo, na verdade.

— Pelo visto uma certa loirinha está com ciúmes — soltou um riso baixo num tom debochado.

— Estou mesmo — disse num suspiro.

— Não tem outra coisa para pensar sobre? Que tal o trabalho de biologia?

Senti meus pensamentos clarearem assim que recordei-me dos olhos azuis.

— Ei, acho que estou gostando de alguém.

Gray permaneceu com a mão apoiada em seu rosto, me fitando com desdém. Ficamos em silêncio, essa era a deixa para ele fingir fascínio no assunto, já que estava ocupando o cargo de melhor amiga temporariamente.

Suspirou.

— Nossa, amiga. Me conta mais — continuou. Sorri.

— É um cara do meu prédio, se chama Sting. Eu nunca tinha visto ele antes, e ontem quando fui jogar o lixo fora encontrei ele descendo as escadas. — Expliquei rapidamente. — Foi rápido, mas ele disse que já me conhecia! E meu Deus, ele é gostoso demais...

— Ok, chega. Não precisamos entrar nesses detalhes, Lucy — ele me cortou, balançando a mão e rindo. — Só porque você achou o cara bonito não significa que você está gostando dele, loira. Digo, você achou ele atraente, e só. Falo isso porque sou seu amigo e não quero vê-la quebrando a cara depois.

— Bobagem — respondi. — É tudo questão de tempo, assim como nos livros e séries. Ele sabe da minha existência, isso já é um começo. E Sting não parece ser do tipo... você. Ele tem jeito de roqueiro revoltado sim, mas temos que ver o interior das pessoas, não acha?

— Ah, claro. — Ignorou meu insulto à ele mesmo.

— E ele é loiro, igual nos livros! E eu sou loira. Isso só pode ser um sinal do destino.

— Com certeza.

— ...E os olhos dele. Gray, os olhos daquele garoto são mágicos.

— Bacana, mas e o trabalho?

O fuzilei com o olhar. Definitivamente precisava de uma companhia feminina.

— Estou vendo que o senhor não me ajudará muito em questões amorosas — dei de ombros. — Pelo visto terei que perguntar à Juvia sobre. Ela tem mais experiência.

Gray arregalou os olhos e pude ver um pouco de vermelhão em seu rosto. Me mostrou o dedo do meio, em seguida jogou uma borracha em mim enquanto eu ria do pobre rapaz. O resto da aula percorreu tranquila, mesmo com as provocações de Natsu, que ignorei com prontidão por conselho de Gray. No fim, enquanto todos caminhavam para fora da biblioteca, andei em direção à dupla para conversar com Levy.

— Ei, posso te pedir um favor? — Perguntei ignorando a presença do ruivo ao lado da menor.

— À vontade meu amor — ela respondeu, abrindo um enorme sorriso enquanto nos direcionávamos para a saída da sala. Natsu continuava ao nos acompanhar.

— Tenho um compromisso hoje à noite, então não vou poder pegar meu carro na oficina do Gajeel. Você pode buscar pra mim?

— Sem problemas, mas como vou fazer pra voltar pra casa depois? Nem fodendo que eu volto de ônibus.

— Não precisa, você dorme no meu apartamento hoje! — Exclamei sorrindo. — Pode ficar com meus pais até eu voltar do meu… compromisso.

— Então ok! O que você tem pra fazer de tão importante?

Suspirei e fitei o rapaz que andava junto conosco, ele me encarava de volta sorrindo. Antes que eu tivesse a chance de inventar alguma desculpa esfarrapada, Natsu envolveu seu braço em meus ombros e começou a rir.

— Nós vamos sair hoje. — Respondeu. Levy abriu a boca num perfeito “o”, apontando para nós.

— Então já se entenderam?

— Não! — O empurrei. — Estamos sendo obrigados. Pressão paternal, sabe como é.

Ela concordou, e assim continuamos a viver nosso dia com tranquilidade — o que era pouca por conta de Natsu Dragneel. Dois terços do horário escolar se resumia à troca de insultos, cantadas providas por ele e muitos abraços e beijos forçados.

Se bem que, isso era o paraíso comparado com o que ocorrera no fim do dia.

Só Deus sabe o meu esforço para levantar da cama às oito da noite, perder meu seriado e ter que escolher uma roupa adequada para sair com Natsu. Digo, seria bom se eu tivesse um encontro com alguém que gostasse, Gray ou Levy por exemplo, mas o meu primo? De qualquer forma, coloquei a primeira coisa que vi no armário e a mais confortável — calça jeans, camisa e um casaco quente, pois permanecia frio e à noite tendia a piorar. Até porque não imaginava que ele iria me levar para algum lugar além de um shopping qualquer para comermos em qualquer lanchonete da praça de alimentação e depois irmos embora. No final pelo menos eu renderia um bom hambúrguer.

Meus pais ainda não haviam voltado do trabalho, portanto, era eu e somente eu no apartamento.  Indiquei para Levy por mensagem onde eu deixaria as chaves para ela entrar, e avisei Layla e Jude sobre a vinda dela, inventando uma história qualquer sobre estudar sem mencionar que ela traria o meu carro.

Vi o carro de meu primo na rua, ele buzinou algumas vezes. Com pressa, tranquei as janelas, apaguei as luzes e saí do apartamento, escondendo uma chave e guardando uma comigo. Desci as escadas depressa pois o elevador pela a terceira vez ao mês estava quebrado, eu tinha 1% de chances de que encontraria Sting pelos corredores. Infelizmente isso não ocorreu.

Natsu estava do lado de fora do automóvel preto, de braços cruzados. Trajava um sobretudo cinza e um moletom. Tipicamente, em volta de seu pescoço estava o cachecol branco que usava na escola — provavelmente não teria o tirado o dia inteiro. Ele estava com o rosto afundado no pano de lã, mesmo de longe era notável seu rosto vermelho por conta do frio. Desde pequeno ele fora sensível ao inverno.

Comparada à mim, o rapaz estava muito mais atraente e bem vestido.

— Sério que você vai sair desse jeito? — Ergueu uma sobrancelha ao perguntar.

— Algum problema? — Indaguei de volta, olhando para meu casaco rosa e branco.

— Pra onde você acha que a gente vai? Shopping? — Disse num tom de ironia, enquanto entrava no carro. Entrei junto no banco do passageiro.

— Era o que eu esperava, na verdade. Não espero muito de ti.

Natsu riu enquanto girava a chave na ignição.

— Não sou tão monstro assim como pensa, Lulu. Vou nos levar para um restaurante legal, relaxa — ligou o player do carro que tocava um jazz antigo, possivelmente estava a escutar enquanto vinha até o Brooklyn. Mudou para o rádio e a estação em que tocava uma das músicas mais ouvidas do momento, todavia eu preferia o jazz. Por um momento, realmente acreditei que ele não era um monstro. Um breve momento de ilusão.

— Para qual restaurante, exatamente?

— Você vai ver.

Estremeci, com medo. Poderia ser que ele estivesse me enganando, me levasse para o mais longe possível e largasse-me no meio da rua para voltar sozinha. Meu primo era tão louco para chegar nesse nível?

Imaginei que nesse horário Levy já estava à caminho da oficina de Gajeel. Estava mais ansiosa para o encontro dos dois do que a minha saída com Natsu na realidade, pois torcia para que eles se aproximassem. Faziam um casal fofo, mesmo que não se conhecessem direito.

Permanecemos em silencio na maior parte do trajeto. Às vezes dizíamos frases curtas sobre a música que tocava, ou o clima — nunca imaginei que eu era capaz de usufruir de tal número de monossílabas por tanto tempo. Me preocupava com o que diria durante o jantar, estava convicta de que iria conseguir descobrir algo sobre esse menino enigmático. Formulava frases e perguntas que não fossem causar desconfio por parte dele e que fizessem sentido de alguma maneira. Questões discretas, diferente de: “Você está metido com drogas, ruivo?”, ou “Sua mãe te fez algo de errado? Porque vocês dois estão me intrigando”. Suspirei, ia ser mais difícil do que eu imaginei no sábado anterior quando fomos embora da mansão dos Dragneel.

Olhei para Natsu, seus dedos seguravam o volante com força e a postura estava ereta. Pela a primeira vez os olhos claros dele demonstravam seus sentimentos. A música que tocava ficou mais baixa.

— Me desculpa — murmurou. Senti um déjà vu; isso tinha acontecido antes? Na realidade já tinha vivido a mesma situação alguns dias atrás. — Eu sei que você me odeia, e foi obrigada à vir para agradar nossos pais. Digo, pra mim não tá sendo um esforço muito grande, já que eu gosto de você, Lucy — desabafou, mesmo encarando a rua, seu olhar era vazio. — De qualquer forma, desculpa. Vamos terminar logo com isso e te levar para casa e ficar com Levy, ok?

Congelei. Não consegui responder àquilo. Natsu estava falando sério? Dias atrás ele me chamara de retardada no volante e me provocou, mas agora dá esse discurso do nada? Claro, não foi do nada, era notável o meu mau humor, mas era sincero seu perdão?

Não falei nada, somente assenti no momento em que estacionou o carro.

Estávamos num restaurante italiano, particularmente um de meus típicos costumes alimentares preferidos. Ouvi meu estômago roncar no momento em que meu olfato notou o cheiro de risoto e macarrão impregnado no ar. Aquilo foi o suficiente para aquecer meu coração de todo o frio da cidade.

— Quando éramos pequenos, meu pai sempre nos trazia nesse restaurante, lembra? Hoje em dia não é tão frequentado, mas creio que a comida continue a mesma — sorriu. — Vamos entrar?

O calor do estabelecimento fez todos os músculos de meu corpo relaxarem. De fato, não haviam tantos fregueses, o que era bom por conta do tumulto desnecessário que me irritaria profundamente. Sentamo-nos numa mesa. O ambiente era amarelado com quadros coloridos pendurados nas paredes, e também haviam duas televisões no alto, entretanto ninguém ligava para o que era transmitido. Escutava o barulho da chuva misturado com vozes animadas que riam durante o jantar, e no canto do salão uma mulher encantadora tocava piano junto com um homem bem trajado, era uma bela música. O cheiro de massa misturada com molho voltou a perturbar minhas narinas e meu estômago faminto, senti que havia retomado aos meus oito anos de idade.

Um garçom aproximou-se para nos atender, eu não tinha nem precisado verificar o cardápio para fazer meu pedido, pois, se era para voltar aos tempos antigos, que fosse no mesmo estilo.

— Eu gostaria de Tortellini de Bolonha, por favor — pedi com um sorriso enorme no rosto enquanto o homem anotava num bloco. Natsu pediu macarrão e lasanha.

O silêncio entre mim e ele reinou no momento em que o garçom saiu, exatamente como eu previa. Há quantos anos não sentávamos um à frente do outro para jantar e, principalmente, ter uma conversa decente? Eu batia os dedos na mesa redonda, enquanto Natsu permanecia quieto brincando com os talheres, tentando equilibrar a faca no garfo. As risadas dos outros fregueses se intensificou junto com o diálogo constante, tive inveja deles por um momento. Queria falar, abordar um assunto, discutir ou argumentar — qualquer coisa, mesmo que não tivesse nada a ver com o meu propósito de desvendar seus segredos.

— Então, uh… — quando me pronunciei naquela quietude torturante (admito que fora um pouco alto) o ruivo assustou-se, derrubando o garfo e faca que brincava em cima de sua travessa. Muitos ao redor se espantaram com o ruído provocante aos tímpanos e o encararam sobressaltos, ao mesmo tempo em que Natsu, com seus olhos arregalados e bochechas um pouco rosadas, pediu desculpa e escondeu o rosto na mão direita.

Eu o encarava. Quem diria que Natsu Dragneel passara vergonha em público?

Retirou a mão de sua face e me fitou de volta. Seus olhos verdes eram claros e brilhavam por conta do listro no teto do restaurante. A mão que anteriormente estava em seu rosto, agora encontrava-se ajeitando os cabelos ruivos e rebeldes de Natsu. Ele piscou, as pupilas dilataram e encontrei minha silhueta refletida em seus olhos cintilantes. Sua expressão era a mesma da noite em que ele invadira meu quarto, há alguns dias atrás.

Esse instante constrangedor, que mais parecia ter durado minutos, chegou ao seu fim quando ao mesmo tempo iniciamos uma sequência de risadas. Por que raios ele estava brincando com os talheres como uma criança? Poderia muito bem ter pego seu celular e me ignorar, entretanto não, decidira girar o garfo e a faca. E falhara miseravelmente.

— Deus, como você é idiota — falei, em meio às gargalhadas.

— Eu, idiota? Loira, sua cara quando todos ficaram nos olhando foi hilária — exclamou com a mão em sua testa, jogando o corpo para trás.

Aquele silêncio atormentador se transformou num ambiente com atmosfera agradável. Há quanto tempo não me sentia bem e sem inseguranças perto de meu primo? Anos, considerando que ele morou por muito tempo na França, e meses antes de viajar, eu e ele começamos a nos distanciar.

Quando criança éramos inseparáveis. Vivíamos aventuras juntos, brincávamos na lama, desenhávamos, estudávamos, praticamente vivíamos agarrados. Entretanto, com o passar do tempo, Natsu tornou-se uma criança mimada e detestável — me culpava por todos os erros que cometia, e os adultos acreditavam nele. Puxava meu cabelo e zoava de minha aparência. O que aconteceu conosco?

Suspirei, sem fôlego. Natsu me olhou novamente. Decidi saciar minhas dúvidas de uma vez por todas.

— O que aconteceu conosco? — Repeti em voz alta as palavras em meus devaneios. Analisei seu rosto, lembrando-me da mesma expressão que ele fazia quando menor indicando o quão estava perdido com o rumo da conversa. — Nós… Éramos bons primos. Amigos, de verdade — continuei, apertando minha própria mão em meu colo. — E então, um dia, começamos a nos odiar. Eu nem ao menos lembro se houve um motivo? Você começou a colocar a responsabilidade de seus erros em minhas costas, a me xingar. Por quê?

Natsu abaixou o olhar. Mesmo depois de anos, eu conseguia desvendar muitas de suas manias corporais, e nessa lista se encontrava o movimento insistente no nariz que o rapaz fazia quando estava nervoso e tentava encontrar uma resposta — fazia muito isso na infância quando Igneel nos acusava de algum problema que tínhamos arranjado. Ele suspirou.

— Lucy, nem eu mesmo sei. Ou melhor, eu sei, mas não consigo te explicar.

— Não consegue ou não quer? — O cortei. Natsu desviou o olhar.

— Acho que um pouco de ambos — murmurou. — Eu era um babaca, ainda sou na verdade, você sabe. Não só com você, mas com todo mundo incluindo meus pais. De qualquer forma, eu me arrependi.

— Não pareceu quando nos encontramos pela a primeira vez nas últimas semanas, e nos dias seguintes. Hoje, inclusive, você brincou comigo o dia inteiro.

— Eu estava sob pressão, sei que isso não é uma desculpa plausível, mas é a verdade. E você é minha melhor amiga, óbvio que vou brincar com você — deu uma pausa. — Posso não ser o seu, mas você, Lucy, é a pessoa mais próxima de mim no momento.

Não conseguia decifrar suas palavras. Nada dos fatos se conectava, nada parecia ter sentido. Os olhos de Natsu pareciam mais escuros, eram como o oceano esverdeado, repleto de mistério e obscuridade. Recordei-me de meu sonho, no qual Natsu chorava nas ruas tenebrosas do Brooklyn.

— E seus pais? Sua mãe?

Finalmente tinha chego no tópico que queria, ficamos em silêncio por alguns segundos.

— Estou fugindo deles, na realidade.

Quando fui indagar o motivo, o garçom chegou com nossos pedidos. Nisso a conversa cessou, dando lugar à mesma atmosfera de quando tínhamos chegado no estabelecimento, entretanto pior.

A comida estava boa, tão apetitosa quanto há quase oito anos atrás. Saboreava o Tortellini que se desmanchava em minha boca. Natsu emitia sons que indicavam seu contentamento a cada garfada do macarrão. Em quinze minutos, nossos pratos estavam vazios e a conta devidamente fechada.

— Não se esqueça de que você vai pagar — alertei-o. O ruivo levantou os braços num sinal de defesa.

— Que apressada você. Se acalma, Lulu. — Revirei os olhos, de braços cruzados.

Quando me apressei para dizer-lhe que não podia demorar, meu primo arregalou os olhos enquanto olhava para a porta de entrada do restaurante e escondeu-se debaixo da mesa. Ergui a sobrancelha. Na chegada, quatro garotos mal vestidos com aparências degradáveis pareciam estar à procura de algo, no momento em que me olharam, senti Natsu cutucando minhas pernas. Num movimento automático de susto, juntei-me à ele. Debaixo da mesa estava apertado, obviamente.

— Precisamos ir embora, agora. — Sussurrou.

— Quem são eles? Você os conhece? — Natsu parecia sério, mas não conseguia imaginar que aqueles rapazes fossem normais e que ele estava ficando louco.

— Infelizmente, sim. São eles que estavam atrás de mim naquele dia. — Respondeu, e assim pude ligar o que ele quis dizer com: “Eu estava sob pressão”.

— M-Mas… Por que? O que você fez, Natsu Dragneel?

Ele me olhou, e com um sorriso amarelado disse:

— Coisas ruins.

Senti o coração disparar. Conseguia ouvir as vozes dos garotos conversando com os atendentes do restaurante. Queria saber mais sobre os segredos de meu primo, conversar com ele sobre seus pais, indagar sobre seu comportamento bipolar desde que voltara para Nova Iorque — entretanto o foco agora era fugir, até porque, já que estava junto com Natsu, provavelmente aqueles jovens que estavam atrás dele também estariam atrás de mim.

— O que vamos fazer? — Perguntei num múrmuro. Ele levantou um pouco a toalha de mesa para verificar a situação, dizendo que eles ainda estavam ali, mas agora caminhavam entre os fregueses. Eu estralava os dedos num sinal de ansiedade.

— Vamos sair correndo quando eles não estiverem vendo — disse, ainda observando o lado de fora. Aos poucos saíamos debaixo da mesa, na direção oposta à onde eles estavam. — No “já”, ok? — Assenti. Ele fez uma contagem baixa, e mesmo sem falar “já”, saímos correndo simultaneamente.

Até então não havíamos sido notados, todavia, não vi aquela cadeira. Senti o choque em meu joelho, junto com a angústia e o arrependimento de ter soltado um grito de dor.  Natsu olhou para trás com os olhos arregalados primeiro para mim, que estava com as mãos sobre o joelho roxo, depois para os garotos no meio do restaurante que perceberam nossa presença.

— Merda! — O ruivo exclamou, segurando meu braço. — Temos que correr!

Fácil para ele dizer, pois era eu que estava com o joelho machucado, de qualquer forma tentei correr enquanto os rapazes corriam atrás de nós. Saímos do restaurante, não havia tempo para pegar o carro. Olhamos para a direita depois para a esquerda e também para a rua pouco movimentada, lembrando-me que estávamos em um bairro longe do Brooklyn.

Natsu me conduzia, e ele optou pela esquerda. Escutei berros atrás de mim, vozes grossas e trêmulas dos adolescentes que corriam com passos pesados.

— Vá mais devagar, idiota! — Exclamei para meu primo enquanto mancava. Ele bufou alto.

— Tem certeza? Acho que não quer ser pega por aqueles caras! — Berrou como resposta, segurando mais forte meu braço praticamente me carregando na calçada. Aquele garoto não perdia o fôlego?

Viramos uma esquina. Depois outra. Entramos num atalho. Em minutos notei que o barulho das pernadas diminuiu o ritmo, e após nos escondermos em um beco sem saída despistamos eles, que correram reto. A chuva havia se intensificado, e agora meu cabelo e roupas estavam encharcados.

— Mas o que caralhos foi isso?! — Berrei depois de segundos de silêncio. — Pode, pelo amor de Deus, me explicar quem são eles?!

Senti que ia explodir, ou que iria estapear o rosto de Natsu. Ele arfava cansado, com as mãos nos joelhos e o cabelo molhado caindo sobre o rosto. Até então eu nem me importava com a dor da batida na cadeira, aquilo nem se comparava com a raiva que estava sentindo. Justo quando achei que eu e Natsu poderíamos ter uma conversa civilizada, dialogar sobre o que o importunava e as mudanças que poderiam ocorrer. Mas não!

— Não posso te contar, Lucy! — Vociferou, quase não o ouvi por conta da chuva forte.

— Eu pensei que você me considerasse sua melhor amiga!

— E você ao menos se importa? Loira, tu me odeia — abriu os braços em sinal de sua indignação.

— Sim, isso é verdade, mas podemos mudar isso se você contar o que realmente está acontecendo! — Gritei em resposta. Com isso ele se calou, e eu desisti de tentar. Natsu não era digno de meu esforço, mesmo que a curiosidade me perturbasse.

Fazia frio. Eu fitava a rua enquanto Natsu ligava para alguém no seu celular, e quando conseguiu, começou a berrar e dizer frases as quais ignorei completamente.

“O que estava acontecendo?”. Deus, eram incontáveis as vezes que essas palavras se repetiam em minha mente enquanto olhava para o asfalto molhado. Ele realmente não me odiava de volta? O ruivo admitiu ter agido feito um babaca e pediu perdão, ao mesmo tempo que contou que estava fugindo de ter um diálogo sincero com seus pais. Isso era preocupante, de certa maneira. O que aconteceu na França que nós não sabíamos? Ou melhor, o que aconteceu aos nossos oito anos de idade para que mudasse as atitudes dele?

Se ele fosse um cara qualquer eu já teria desistido de me intrometer no assunto e seguido minha vida em frente sem me preocupar com seus sentimentos, mas era Natsu quem estava envolvido na história. Apesar de tudo, ele fazia parte da família. Da minha família. E Layla sempre me ensinou à considerar a família o primeiro lugar.

O silêncio pareceu um resumo de nossa noite, pois ainda nos permanecíamos calados. Quando pensei em dizer algo para cortar o clima tenso entre nós, senti que a chuva tinha parado. Não exatamente parado, água ainda descia do céu, a rua permanecia molhada e os pingos continuavam a aparecer diante à luz amarelada do poste, mas não havia chuva caindo em meu corpo. Natsu segurava seu grande sobretudo em cima de nós dois, protegendo-nos da chuva.

— Me desculpa — já era qual? A terceira vez que ouvia um pedido de desculpas vindo dele. — Eu ainda vou te contar o que está acontecendo na minha vida. Eu… Não estou pronto — murmurou, sua voz quase que inaudível. — Por enquanto, saiba que estou arrependido do que eu te fiz anos atrás.

Eu ia dizer algo. Eu queria dizer algo. Entretanto, uma buzina me acordou do transe, e um carro estava parado em nossa frente. A porta do passageiro se abriu.

O motorista era Sting.


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Notas finais do capítulo

Caramba, quanto tempo. Não sei nem por onde começar, mas primeiramente queria pedir perdão à vocês leitores (se é que ainda há). Decidi voltar, mas não é concreta essa minha decisão, mas até então a fanfic está de volta, e eu espero que eu consiga prosseguir com os capítulos.