Novo começo, para todos nós escrita por americangods


Capítulo 1
Novo começo, para todos nós.


Notas iniciais do capítulo

Pós-Mass Effect 3. Capítulo único, uma raridade em minhas escritas. Gostaria de agradecer a Nammyee, que escreveu a fanfiction Choice (http://fanfiction.com.br/historia/270947/Choice/), a qual li faz alguns anos e que me inspirou a escrever Novo Começo.

Esse texto é, também, de anos atrás, e recentemente quando passei por ele no meu computador, pensei em deletá-lo, mas por fim resolvi postar aqui. Foi um texto que me emocionou muito enquanto escrevia e relia, algo que nunca aconteceu (dessa maneira) antes com outros textos meus. Espero que os fãs dessa incrível série gostem da história.



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Novo começo, para todos nós.

Está escuro.

A escuridão é o resultado de uma escolha. Sua vida, no fim, se resumiu a isso. Escolhas. Dizem ser elas que moldam as pessoas, que moldam a personalidade. Isso é verdade. Ela sabe disso melhor do que ninguém. Só que quem, um dia, disse isso pela primeira vez ‘a vida é feita de escolhas’, certamente não conhecia a história de Shepard.

Ela aprendeu a odiar escolhas.

Seus últimos anos foram só isso. Quem vive, quem morre. Quando atirar, quando recuar. Em quem confiar, em quem enfiar uma bala na cabeça.

Ela não queria escolher mais nada, estava farta disso.

Seu último ato em vida foi uma escolha.

Aquela criança maldita.

Aquela lógica sem sentido.

Shepard, com suas escolhas, provou que a criança estava errada.

Mas ela era Maria Shepard. Uma humana. Uma pessoa qualquer, normal. Tudo bem, uma pessoa normal não voltaria da morte como ela já fez uma vez – mas provavelmente, não pela segunda –, nem uma pessoa normal poderia salvar a galáxia algumas vezes. Uma pessoa normal não resolveria uma guerra centenária entre povos. Duas vezes.

É, ela fez isso. Ela provou que orgânicos e orgânicos podiam esquecer as diferenças e dar as mãos, caminhar e lutar em direção à paz. Krogans e turians. Unidos por um só ideal: sobreviver. E depois da guerra, unidos por outro: reconstruir. Victus e Wrex, seu companheiro. Wrex... ela não podia pensar em ninguém melhor para liderar o povo krogan. Na verdade, ele e Bakara. Só alguém como Wrex poderia trazer a sabedoria para um povo que viveu tanto tempo na selvageria. Só alguém como Bakara poderia mudar as bases daquela sociedade bárbara que eram os krogans.

E Victus perdeu seu filho, ele sabe finalmente a dor que todos os krogans sentiam com a genophage, ele sabe que pode fazer algo para nunca mais permitir que isso aconteça. Ele só precisa escutar e conversar. Wrex também. O grandão saberia fazer isso. Aprendeu com a melhor.

Ela provou que orgânicos e sintéticos podiam conviver em harmonia. Nós... estamos em sinergia com os criadores, disse-lhe um Geth Prime em Londres. Os sintéticos estavam ajudando os seus criadores. Ensinando onde deviam plantar em Rannoch, onde deviam viver, que sementes usar nos novos assentamentos.

Geths protegendo quarians. Quarians protegendo geths. Viu um quarian levantar um sintético e salvá-lo da morte certa. Viu um geth ser fuzilado por Marauders, protegendo uma quarian.

E tudo isso por causa dela. Shepard. Ela promoveu a paz entre eles.

Eu escolhi, eu provei que estava certa. Merda, porque aquela criança não me escutava?

Não adiantou, porque mesmo sendo a salvadora da galáxia, ela era uma humana. E uma humana não entenderia nem pensaria como uma máquina. Mas aquela não era qualquer máquina. Era uma máquina louca, e com o controle de todas as coisas. Se fosse Legion ou EDI... eles a escutariam. Eles a entenderiam.

Você veio mais longe do que qualquer outro, disse a criança.

É claro que eu vim. Mas você me impede de chegar mais longe do que você jamais pensaria ser possível, máquina maldita. Porque você é um erro. Uma lógica que tentou todas as alternativas viáveis, restando só confiar na loucura. Leviatã me disse isso.

Não adiantou.

Ela era boa com palavras. Sempre fora. Sua infância na Terra a forçou a isso. Tinha duas opções: roubar ou enganar. Escolhas, novamente, a acompanhando desde cedo. Ela não ia roubar, então resolveu enganar. Sabia que palavras usar, a entonação certa, aquilo que queria ouvir cada pessoa. Era natural. Convenceu pessoas a vida toda, fez com que mudassem de opinião, fez com que talvez nem mudassem, mas considerassem o ponto dela que podia nem ser o melhor a se fazer, mas ela fazia parecer com que fosse o mais certo.

Shepard conseguia fazer o mal se tornar bom, e o bom, se isso a prejudicasse, se tornar uma péssima alternativa. Ela brincava com a voz e as palavras, a entonação, o lugar e o momento certo para falar. Todas as conversas ao pé de ouvido que lhe renderam uma vida um pouco menos miserável, os homens e mulheres, jovens e velhos que ela enganava com sua voz doce, maldosa, sensual, confortante, esperançosa.

Usou esse talento muitas vezes na infância e na adolescência. O talento que fez ela sobreviver nas ruas sujas e nojentas que cresceu. A podridão que escorria pelos avanços e progressos dos países e nações humanas de primeiro mundo. Um dia compreendeu que o mundo era essencialmente sujo, e que as pessoas não podiam se livrar daquilo. Ela criou uma gangue, sua voz ecoando por diversas cabecinhas mais jovens ou até um pouco mais velhas que ela, manipulando-as em ordens e demandas de uma líder que soube tirá-los das ruas podres e entregar a eles um pouco de dignidade e tranquilidade alcançadas com coisas indignas e ilícitas. Seu pequeno impériozinho com um séquito leal de seguidores.

Era irônico o quanto aquilo foi influenciar a sua vida mais tarde.

Quando se alistou, após o império ruir e seus seguidores morrerem ou serem presos, descobriu que podia usar esse talento para fazer coisas boas. Então aquela pirralha dissimulada e arrogante virou uma oficial exemplar. Decidindo e julgando quando era necessário, quando ninguém mais podia fazer aquilo e restava só ela. Shepard era o ultimato que as pessoas esperavam. Virou uma heroína de guerra. De imperatriz má à cavaleira de armadura branca, segurando sozinha um ataque de piratas batarians contra uma colônia humana.

Mas seu talento não surtiu efeito na criança.

Deixe a criança, ela pensa. Deixe ela morrer explodindo, assim como você, Maria. O seu corpo pegando fogo, incinerando, suas próteses e implantes derretendo e queimando seus ossos, músculos, veias e artérias. Os seus joelhos tocando o chão, sem força alguma para lutar, o seu corpo desistindo de todas as coisas.

Lá, nos milésimos que sucederam sua última decisão, finalmente fechou os olhos, aquela luz avermelhada tomando conta de todo os seu ser, consumindo-a, privando finalmente de fazer mais escolhas. A escuridão eterna. A escuridão quente, mas não queimante como o fogo da destruição. A escuridão reconfortante.

Escolher não doía mais. Sua alma, uma dualidade de maldade e bondade, finalmente descansando em paz.

Alma...

A escolha é sua.

Legion. Ele acreditou nela. EDI. Sua amiga. A sinergia entre orgânicos e sintéticos. O amor entre sintéticos e orgânicos. Isso poderia ter salvado a guerra. Isso poderia ter mudado tudo. Ela tinha certeza que não aconteceu antes, porque os Reapers não deixaram. Bastava para as máquinas entender aqueles sentimentos mais básicos orgânicos... Joker... Jeff, me perdoe, por favor.

Foi sua única opção. Não queria se tornar uma deusa, tornar-se alguém como os Reapers. Ninguém pode ter esse poder. Illusive Man acreditava nisso. Acreditava que podia controlar os ceifadores. Shepard tentou argumentar com o homem que a trouxe de volta a vida. Não era mal. Nunca foi. Mas para ele os fins justificavam os meios. Ele só era idiota, talvez louco como a criança, e estava errado.

Escolher por todos os seres vivos? Não. Isso também ela não iria fazer. Não ia molestar bilhões sem seu consentimento. Não podia decidir por eles. Não tinha como fazer aquela escolha. Mesmo que... isso permitiria os sintéticos entender? Isso faria com que EDI soubesse plenamente o que é ser humana?

Ela grita, arrependida, derrotada, aceitando a morte própria e de milhões de outros. É muito alto o som que ela produz. O grito mais alto que já ecoou no coração do universo.

Deus, eu tentei. Eu tentei de tudo. Eu fiz o melhor que pude desde que virei uma Espectro.

Você foi egoísta, uma voz diz.

Você fez o certo, diz outra.

Não são diabinhos nem anjinhos. Não é deus humano lhe respondendo. Não é nenhum dos deuses alienígenas. Essas vozes não tem forma. São apenas ecos de sua consciência demorando a ser consumida pela destruição que ela mesma causou.

Será que...? Ele... Mordin estava certo? É por isso que aquilo não parecia com a morte? Ela sabia como era a morte. Já morreu uma vez. A morte era a morte. O fim de tudo. Escuro, fim da consciência e só. Mas agora era diferente. As vozes de novo, os ecos da sua consciência, só que finalmente uma voz conhecida, confortante, que não a faz gritar de arrependimento nem pela dor de milhões de mortos que matou.

Ciclo da vida. Conceito salarian. Similar ao seu conceito de reencarnação. Tende a ver a vida como interminável. Corrigir erros na próxima vida. Aprender, adaptar, melhorar. Recuso-me a acreditar que a acaba aqui. Seria desperdício demais. Muitos erros para consertar. Não pode acabar aqui. Podemos fazer muito mais...

Mordin. Lágrimas. Como pode haver lágrimas ali, em meio ao fogo? Onde está o fogo? Não há mais calor. Apenas ecos. Ecos de Mordin, seu grande amigo. O Redentor. Esse era Mordin.

Mas e ela?

Shepard, a salvadora da galáxia. A Genocida.

Adoraria ter estudado as conchinhas. Disse ele, lá atrás, à muito tempo.

Espero que você tenha encontrado sua redenção, meu amigo. Eu jamais vou encontrar a minha...

Escuridão e vazio. Quanto tempo aquilo ainda ia durar? Quando nasceria de novo? Quando seria julgada no céu e no inferno por um decrépito ou um benevolente? Quando sua consciência sumiria, assim como na sua primeira morte e seu corpo viraria poeira?

Essa unidade tem alma?

Não, pare com isso! Ela não pode ouvir mais. Não Legion. Ele se sacrificou pelo seu povo. Ela destruiu esse sacrifício, invalidou a escolha dele. Invalidou o que ela própria fez, a paz que ajudou a construir.

Destruição era a única alternativa. Destruição era paz.

Não, havia outras escolhas! Eu poderia...

O que ela foi fazer?

Encontre-me no bar. Garrus.

Não há uma Shepard sem um Vakarian. Seu irmão. Espera que ele esteja bem. Amou ele como nenhum outro homem. Ela ri sozinha, na interminável escuridão. Está gargalhando, lembrando dos momentos juntos. As calibragens. Dane-se a escuridão. Era um amor diferente. Eles se completavam, mas de uma maneira única, só deles. Ela mostrava o caminho para ele.

E ele mostrava que o caminho que Shepard escolhia era o certo, que as decisões eram as corretas. Garrus era sua luz. O farol que ela teve em sua vida.

Você é como uma irmã para mim! Wrex. Quantos irmãos aquela menininha órfã acabou arranjando em tão pouco tempo... A partir de agora, Shepard vai significar heroísmo, sim! Shepard, a heroína, para o meu povo! Ela espera que signifique só isso, e não coisas piores. Shepard, a diaba que negociou o futuro de todas as coisas. A diaba que matou os sintéticos. Não. Pare, Maria. Pare de pensar em coisas ruins.

Cuide bem de Bakara, irmãozão. Mais um sorriso na escuridão. E da pequena Mordin.

Com muito cuidado... whisky Turian. Triplamente filtrado, introduzido na roupa através de uma porta de indução de emergência.

Isso é um canudo, Tali.

Eu tenho alguém melhor, Shepard. Eu tenho você. Sua irmãzinha. Que família maravilhosa que ela arranjou em meio a tanta morte e dor, mesmo depois de ser uma rainha egoísta e manipuladora quando jovem, achando que aqueles à sua volta eram seus irmãos, seus parceiros leais. Quanto engano. Seus irmãos, a sua família era outra, uma que só foi encontrar muitos anos depois, salvando a galáxia.

Passa muito tempo e muitas lembranças de sua família. Todos eles, todas as frases, conversas e momentos juntos. Menos as de uma pessoa.

Liara... não conseguia pensar nela. Doía muito cada vez que fazia isso. Todas as lembranças que tinha com a asari passando como um filme na sua frente, as noites juntas, o laço eterno que elas criaram... a dor interminável de perdê-la. Mas... o alívio de saber que ela também estava a salvo. A asari ainda era jovem, tinha séculos pela frente. Ela ia esquecer Shepard, eventualmente. O amor dela morreria com os séculos. O amor de Maria morreria com essas malditas chamas que demoravam a consumir sua consciência. Não existe algo como laço eterno... tenta ela se convencer, ignorando as palavras da asari.

Saber que eles estariam a salvo, que finalmente poderiam ter um futuro à sua frente a faz pensar que fez a escolha certa. Um alívio. Ela quase podia descansar em paz agora.

Sacrifícios eram o resultado direto de escolhas. Era assim que o universo funcionava. Para você ganhar algo, alguém tem de perder. Maria Shepard trocou vidas por outras vidas. Milhões por bilhões. Foi agraciada com a morte para não precisar ver o resultado de suas ações.

Seus pés molhados. Frio gelado, mas suportável em meio ao calor. Frio relaxante. Ela finalmente abre os olhos. Não há mais escuridão. Tudo que ela vê é o oceano e praias intermináveis. Areia branca e fina, nada de praias negras, cheias de óleo, metal e lixo como as da Terra. O horizonte mais belo que ela já viu. Verde sem fim. Florestas a perder de vista. Florestas de verdade, e não simulacros. Onde ela estava? Que lugar poderia ser tão belo?

As pequenas ondas tocando seus pés descalços. Ela se ajoelha. Lembra que foi assim que morreu. De joelhos. É assim que ela chega ao outro lado. Então existe o outro lado? Não há fim para nossa existência?

Não há resposta. Não há vozes de sua consciência para responder a mais primordial das dúvidas.

Não existe o fim de todas as coisas?

Um vestido branco e fino cobrindo seu corpo. A leve brisa no seu rosto. O ar mais puro que já respirou. Ar puro já não existia mais na sua época. A Terra estava poluída, o ar nas espaçonaves e outros planetas era artificial, resultado de terraformações. Mas aquele ar era puro. Ela sabe disso.

Micropartículas de rochas e minerais, meio brancas, meio o amarelo mais claro que ela já viu, a areia dançando e deslizando entre seus dedos. Nunca estivera em uma praia de verdade.

Sem escolhas. Nunca mais.

Ela corre em direção a água e se joga, o peso de toda uma galáxia sendo lavado de seu corpo para nunca mais voltar. A água é cristalina, ela pode ver peixes, criaturas e plantas das mais diversas cores. Leões marinhos, golfinhos, pinguins – ela adorava pinguins – ali eles não estavam extintos, não eram esqueletos em museus, hologramas em projeções educativas. Ela pode ficar horas ali embaixo, sem nunca precisar voltar para a superfície. Não sabe quanto tempo fica ali. Talvez dias. Meses. Anos. Bilhões deles. Trilhões. O bastante para o universo morrer e viver e morrer e viver centenas de vezes.

O Sol nunca se põe, o céu nunca escurece. O azul perpétuo das águas e do céu.

Muito tempo depois ela volta para a superfície.

Um som. Uma canção? Algo que ela conhecia. Alguém cantara aquilo, muitas vezes. Alguém na beira da praia. Ela nada até lá, mesmo não havendo ninguém a sua vista. As pernas lutando contra a força das águas. Não se sente cansada. Talvez ali nunca ficasse cansada. Não havia nada para machucá-la, para feri-la. Nunca mais. Corre pela areia, a franja molhada caindo sobre seus olhos, os pés afundando nos finos grãos, um rastro interminável que ela vai deixando enquanto segue a música. Ela corre com vigor, o máximo que consegue. Não se cansa nunca. A energia em seu corpo é inesgotável, infinita.

Eu estudei espécies, turians asaris e batarians

Não consegue acreditar no que vê, no que ouve.

Sou muito bom em genéticas (um ramo da biologia)

Mordin Solus na sua frente. Sentado na fina areia. Conchinhas em suas mãos. Aqueles seus grandes olhos às estudando cuidadosamente. Coloca uma delas no chão. Depois outra, com muito cuidado, como se aquilo fosse sua mais importante pesquisa. Levanta-se, olha para Shepard.

Porque eu sou um expert (e eu sei que isso é uma tautologia)

A roupa dele é a mesma de quando o viu pela última vez. As cores de um médico salarian. Não é de admirar encontrar o doutor de branco. Ela sim, era estranha com aquele branco todo. Sempre preferiu cores mais vivas. Mas não importava agora. Cores não importavam naquele lugar. Quem você era, quem você foi também não.

Meus estudos na xenociência vão do urbano ao agrário...

Ele abre os braços, ainda alheio à ela, a canção ecoando nos quatro cantos daquele mundo. A canção que ela tanto gostava.

– Eu sou o perfeito modelo de um cientista salarian! – Os dois terminam de cantar juntos.

Ela corre para os braços abertos do salarian. A felicidade não morre nem quando as lágrimas tomam seus olhos novamente. Eles ficam assim, em silêncio... quem sabe por dias, até.

Não havia tempo naquele lugar.

Ele desliza aquela mão salarian sobre os cabelos molhados dela.

– Eu senti sua falta – diz ela.

– Eu também, comandante – diz ele.

Aquela palavra por algum motivo a incomoda muito. Não queria mais ouvi-la. Não era mais comandante de ninguém.

– Por favor, Mordin. Chega disso. Eu não sou sua comandante aqui... eu... o que é aqui? Onde estamos?

– Não importa, Maria.

Nunca a chamou assim. É estranho.

Ela gosta.

– Você estava certo? – Pergunta, – aquele conceito de vocês... nosso – ela se corrige. – A vida é mesmo interminável?

Ele sorri.

– Ainda estou estudando isso, mas preciso de tempo. O que não deve faltar aqui. É fascinante, minha querida. Assim como você.

Minha querida. Sempre imaginou Mordin a chamando assim. Ouviu-o falar isso algumas vezes, mas sempre quando estava sozinho e sem ninguém por perto. As vezes parecia que ele ia falar isso para Maria, mas então parava, se corrigia e substituía por Comandante. Shepard presumiu, certa vez, que minha querida, aquelas palavras que nunca ouvi-lo dizer a ela mas que sabe, tem certeza, ele quase o fez, era alguém muito importante para Mordin, alguém que Maria o fazia lembrar. Nunca falaram sobre isso. Não era preciso.

Alguém aparece no horizonte. Não, é mais de uma pessoa.

Não pode ser...

Ashley, Thane, Anderson. Todos aqueles que ela perdeu. EDI? Legion?

Ela acha que ri. Não sabe ao certo. Robôs vão para o céu?

Mas o sorriso em seu rosto morre, os lábios se arqueando em tristeza, seus olhos receosos, evitando olhar para a direção dos dois sintéticos. Talvez aquilo não fosse o céu, mas o purgatório, ou uma versão muito sádica de inferno, que primeiro lhe dava tudo para depois lhe tirar. Porque não havia como alguém como ela ir para o céu. Uma genocida não merecia o paraíso ou o pós-vida. Uma genocida merecia ter sua existência apagada do universo. EDI e Legion eram a prova disso.

É Ashley Willians que a tira de pensamentos tão escuros e tenebrosos.

Oh capitã, minha capitã! Nossa temível viagem acabou... – Ash toca o seu rosto. A amiga que deixou para morrer em Virmire. Outra vez, as malditas escolhas. O cabelo dela está solto, o sorriso mais belo do que nunca ... mas a sua ainda não... – termina ela.

Maria não entende.

– Ash? Do que está falando?

EDI e Legion na sua frente. Ele... aquele seu olho brilhando mais azul do que nunca. Shepard-Comandante, diz. Ela quer virar o rosto, nunca mais olhar para ele. Não tem coragem para isso. Essa unidade tem uma alma. Obrigado.

EDI se aproxima dela, um abraço quente e confortante. Já tinha... interagido com ela antes, por insistência da própria sintética. Ela queria aprender sobre o comportamento humano, e o toque era essencial para isso. Apertaram as mãos, Shepard deixou que a tocasse em seu rosto, sentiu-se estranha quando ela apertou suas bochechas e mexeu em seu cabelo. As mãos dela eram frias. Mas não agora. Não aqui. EDI era quente como qualquer ser vivo.

Cuide de Jeff, diz ela, mas os lábios não se mexem. É só um pensamento plantado na mente de Maria.

Thane também tocou em seu rosto. Sente um frio, um arrepio em seu corpo, depois calor, e novamente seu rosto vermelho, o toque do drell sarando todas as queimaduras e cicatrizes que adquiriu durante a guerra, todas elas, a infância, adolescência, tudo. Maria Shepard bela e intocada pelos males do mundo.

– Siha...

Lágrimas. Mais delas. Porque eram diferentes de quando encontrou Mordin? Porque não havia alegria nelas?

Despedida.

Não! Vocês não podem me deixar! Ela quer dizer isso, mas o som não sai, morre dentro de sua garganta, nunca chegando aos seus lábios trêmulos.

– Kalahira, o coração dessa é puro, mas assolado por maldade e medo. Guie ela ate onde o viajante nunca se cansa, o amor nunca a deixa, os famintos nunca passam fome. Guie ela, Kalahira, e ela será uma companheira para você como ela foi para mim.

Aquilo de novo não. Ela não ia aguentar se despedir de Thane novamente.

– Não, Thane! Eu te vejo depois do oceano, lembra? – Ela quer segurá-lo pelas mãos, virá-lo em direção e mostrar-lhe o oceano infinito que ela cruzou durante a morte. Estavam ali, os dois, ao fim das águas e de todos os problemas do mundo. Ele não podia deixá-la ali.

– Ainda não, Siha – aquele mesmo sorriso fraco e conformado do seu leito de morte.

Ele desaparece. Todos eles. Não, nem todos.

Faltava alguém.

Estão sentados. O oceano à frente deles, as pequenas ondas tocando-a e se recolhendo, para depois voltarem, num movimento interminável. Anderson usa o traje de almirante. Ela quer dizer que ele está engraçado, assim, sentado na areia com ela e sujando aquela impecável roupa militar, mas não consegue. Estão parados ali há muito tempo, mãos dadas. O rosto dela deitado sobre os ombros dele. Nunca se permitiria fazer isso em vida.

Anderson quebra o silêncio eterno. Mais uma vez, ela não sabe quanto tempo passou. Cada nanosegundo ao lado dele era tão triste... mas... tão feliz ao mesmo tempo.

– Você já pensou em como as coisas podiam ser diferentes?

– Senhor? – Os seus olhos estão vermelhos e secos. Não há mais o que sair dali. Chorou durante milênios ao lado do seu capitão.

– Eu nunca tive uma família, Shepard. Nunca tive filhos. É uma coisa que me arrependo. Quando eu vi você, ainda jovem, parecendo perdida e recém alistada na Aliança... percebi que havia alguma coisa de diferente em você, criança. Eu sempre te acompanhei, a sua carreira toda. Eu sabia que você era especial, e você retribuiu de uma maneira que eu jamais poderia esperar.

Ela sabe o que ele quis dizer com aquilo. Já tinha deixado claro antes, mas não com essas palavras. Eram aquelas pequenas reaçõezinhas que Maria Shepard conseguia provocar mas também enxergar nos rostos das pessoas, as tímidas mensagens escondidas entre as palavras.

– Eu fui... que nem uma...?

É tão fácil falar. É uma palavra tão simples. Porque ela não consegue pronunciá-la?

– É – diz ele, uma risada leve. Parece que ele também nunca ia dizer aquela palavra. Ele não precisava, conclui finalmente ela. Sentia o mesmo, e não precisava dar outro nome à ele além de Anderson, senhor, almirante. – Você preencheu essa falta que eu tinha. Eu tive muito medo ao te escolher para a tripulação por causa disso, em te indicar para ser a Espectro humana. Sabia que você era especial, que tinha nascido para aquilo, mas ao mesmo tempo não queria arriscar te perder.

– Você não vai, senhor. Nunca mais – o seu olhar de súplica, sabendo o que aconteceria, achando que Anderson podia fazer alguma coisa.

Ele não podia. Talvez, só ela.

Talvez ela tivesse que fazer mais uma escolha. Ela quer ficar ali. Não quer voltar. Essa é sua escolha.

Não é?

Sorriso de um pai que ela nunca teve.

– E quanto a você?

– Eu... o que?

– Nunca pensou em achar um lugar para descansar? Família?

Ela não sabe porque riu daquilo. Abraçou o velho homem com força, querendo nunca mais largá-lo.

– Eu não sei, senhor. Não... sei se eu serviria para isso.

– Eu acho que você seria uma ótima mãe. Imagine o orgulho que seus filhos teriam, falando para todo mundo: minha mãe... é a Comandante Shepard.

– Muitas coisas que eu fiz não são dignas de orgulho, senhor.

Eu condenei os geths e EDI. Eu deixei Ash para morrer, não fui capaz de ajudar Thane.

Mas eu salvei a galáxia... não salvei? Saren, Coletores, Reapers. Eu fiz isso. Fui eu.

– Eu estou orgulhoso de você, filha.

O Sol retorna. Anderson não está mais ao seu lado. Maria está sozinha novamente. Ela não quer voltar. Não pode voltar. Como ela encararia as pessoas depois de tudo que fez? Depois de ter condenado milhões à morte?

Quem teria coragem de chamá-la de heroína? Que amigos ficariam ao seu lado? Que... criança teria orgulho de uma mãe que matou milhões?

As dúvidas.

A escolha que ela não consegue fazer. Ela desaba na areia, que agora parece machucá-la. Não são mais finos grãos, mas pedrinhas escuras e pontudas, cortes e perfurações por toda as suas pernas. Sangue. Aos poucos, seu corpo vai esquentando. Aquele calor que dói, machuca. As lágrimas em seu rosto, seus dedos, pulsos, braços latejando de dor. As pernas também. Elas estão ali, mas não consegue movê-las.

Não consegue levantar. Não tem forças para isso.

Alguém vem até ela e a ajuda.

Mordin entrelaça aqueles seus três grandes dedos nos finos e delicados dela, aqueles dedos por onde correu tanta energia biótica, que tanto apertou gatilhos e condenou seres vivos à morte certa.

Aqueles dedos que puxaram o gatilho contra o Crucible.

Ela quer gritar. A dor é muito grande. Os olhos de Mordin, as duas grandes orbes negras parecem a impedir disso. Parecem dar forças para que suas últimas palavras fossem pronunciadas:

– Eu não quero voltar, Mordin... – ela só consegue sussurrar. A dor latejante voltando ao seu peito.

– Tem certeza? Maria, você tem que voltar. Há tanto a se fazer. Tantas outras decisões a se tomar. Tantas pessoas à liderar. Tanta... esperança para distribuir para os que precisam.

Ele faz uma pausa, espera os olhos dela levantarem, olhar diretamente para ele. Uma troca de olhares profunda, quase eterna, e que ela nunca vai esquecer.

– Outra pessoa... faria as escolhas erradas.

– Eu fiz a escolha errada, Mordin!

– Então viva. Para consertá-la. Não pode acabar aqui, Maria. Você pode fazer muito mais. Agora, minha comandante – ele usa a palavra de novo. Ela não desgosta daquilo, sabe que vai ser a última vez que vai ouvi-lo falando – feche os seus olhos. Respire fundo. Aguente só mais um pouco, minha querida. Essa dor já vai passar.

Ela está tremendo. Abraça Mordin com força. Alguma coisa muito forte queimando dentro dela, querendo sair, guardada à muito tempo.

Siha

Oh, capitã, minha capitã

Esta unidade tem uma alma

Cuide de Jeff

E enfim,

Estou orgulhoso de você, filha.

Mordin se afasta dela, que é puxada por uma força imensurável e desconhecida. As mãos de ambos se tocam. Uma última despedida. O vestido branco dela some. A armadura volta ao seu corpo, reluzente na cor que ela mais ama, um brilho iluminando a escuridão. Mordin Solus está sorrindo. Um sorriso de que tudo vai ficar bem. Os lábios dele se mexem, ele vai pronunciar suas últimas palavras para Maria Shepard em pós-vida, no paraíso, em sua consciência delirante, seja lá onde ela estava.

– Um novo começo... para todos nós.

Finalmente ela percebe. A escolha fora feita.

Ela fecha os olhos.

––

Todo o ar preso em seu pulmão é liberado. O seu peito ardendo, os braços parecendo quebrados.

Luzes avermelhadas, calor. Ar pesado, difícil de respirar. Cheiro de coisas queimando. Mas nada para queimá-la, nada a machucando. Tudo que podia atingi-la já o fez. Tudo que o universo podia jogar nela para impedi-la já foi jogado. Não foi o bastante. Nada a pararia, na vida ou na morte. Destroços. Peso sobre seu corpo machucado, ensanguentado.

E vivo.

Ela não tem fôlego para isso, mas grita mesmo assim. Um grito de vida. Uma menina órfã gritando no coração do mundo. E então vem o som, a voz dela, amplificada mil vezes pela vida. Uma menina não mais órfã renascendo do coração do mundo.

– Shepard!?

Kaidan?

Um gigante tirando algo de cima dela. Sua armadura vermelha e imponente, os olhos da mesma cor. O sorriso de dentes afiados de Urdnot Wrex. O que é isso? Um krogan, chorando?

Um turian ajudando o krogan. Garrus. O encontro no bar fora adiado, ou, parece, transferido para ali. Para a vida.

Sons de uma quarian quase tendo uma síncope, não parando de falar e gritar Keelah’se’lai. Seus irmãozões e irmãzinha, a sua família.

Mais destroços retirados. Um homem sem camisa, musculoso. Mas tão, tão frágil assim, olhando emocionado para ela, rindo que nem uma criança. A tatuagem N7. Lola! grita ele. James Vega.

Uma manifestação de energia biótica tira o resto dos escombros em volta dela. A maquiagem nos olhos borrada pela chuva, é a desculpa que Jack um dia dará a ela. Mas depois, muito depois, entre chás e cervejas, ela vai admitir o quão alegre se sentiu ao vê-la voltar da morte.

Quatro olhos amarelados, Javik olhando para a única esperança que todos os ciclos já tiveram. Um sorriso que demorou milênios para surgir naqueles lábios.

Garrus e Wrex a levantam. Sol. Luz quase cegante. A estrela nascendo, trazendo o dia. Ouve um grito choroso. Maria Shepard só vê um borrão azul correndo em sua direção.

Alguém lhe trazendo razões para viver.

A escolha que ela fez.

Liara.


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Notas finais do capítulo

O título "Novo começo, para todos nós" é uma homenagem a fala do Mordin no arco de Tuchanka em Mass Effect 3. Essa cena ocorre apenas se você não faz Mordin cantar em Mass Effect 2, algo que todo mundo provavelmente o fez (nesse caso, ele canta a música do salarian cientista na cena).

Eu sempre achei, no entanto, a versão com a frase "Genophage curada. Krogans livres. Novo começo... para todos nós", superior e mais tocante que a música. Mordin, naquele momento, parece olhar para o jogador, e isso, mais as palavras dele dão ainda mais sentido às suas ações e escolhas durante os três jogos que o levaram até esse momento.



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