A Missão escrita por StefaniPPaludo


Capítulo 23
Capítulo 15




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Após um tempo vigiando sem falar qualquer coisa, Danilo resolveu puxar conversa comigo:

– Porque você quis ficar aqui vigiando? Você podia tá dormindo.

– Os outros pareciam mais a fim de dormir do que eu. E alguém teria que assumir.— dei de ombros. - E você?

Danilo deu uma olhada em Júlio, que parecia não estar prestando atenção em nossa conversa e depois olhou sério para mim, como se fosse contar uma coisa muito importante:

– Estou na mesma barraca que o Eric. - disse, como se isso explicasse tudo. Mas como ergui as sobrancelhas mostrando que estava confusa, ele complementou - E tenho medo de dormir lá com ele. Sabe, ele pode me agarrar enquanto eu estiver dormindo indefeso.

Eu ri da piadinha dele, tentando não fazer som algum, para não acordar os outros.

– Mas se você tem medo por que quis dividir a barraca com ele? - eu quis saber.

– Ele me convidou e eu não sei magoar as pessoas.

– Entendi.

Mais uns minutos se passaram até que Danilo voltasse a falar, mas dessa vez se dirigindo a Júlio:

– Maninho, você pode ir dormir se quiser. Nós somos bons vigias, não se preocupe.

– Não, soldado. - foi a única coisa que Júlio disse.

– Sem essa. Largue um pouco o posto de sargento e não me chame de soldado. - Danilo estava irritado, o que era incomum para ele - Meu nome é Danilo e sou o seu irmão caçula. Você se lembra disso?

– Sim, soldado — Apesar do tom de voz indiferente, Julio sorriu, mostrando que havia chamado Danilo de soldado apenas para irritá-lo ainda mais.

– Isso. Bem melhor assim. Sorrindo....- ele deu uma piscadinha para mim — Agora, nos conte umas histórias de terror.

Júlio suspirou:

– Quando você vai crescer, Danilo? - sua voz não era braba, nem indiferente. Era como se ele tivesse fazendo uma brincadeirinha também.

– Viu, viu... você me chamou de Danilo. Sabia que se lembrava do meu nome.

Júlio chacoalhou a cabeça, dando um olhar cúmplice para mim, como quem dissesse: "Esse menino não tem jeito." Depois fez uma expressão desistindo de se manter como sargento e professor:

– Sobre o que vocês querem conversar?

A expressão de Danilo se iluminou e ele sorriu alegremente, respondendo ao irmão:

– Sei lá. - parou para pensar — Onde estamos?

– Na floresta.

– Ta, eu sei, na floresta... Mas a onde especificamente?

– Esta é umas das partes que sobrou da Floresta Amazônica. Estamos nos limites de Tazur. Se avançarmos mais para a frente ainda encontraremos um bom pedaço da floresta e depois... - Julio olhou para o horizonte, perdido em suas reflexões — não sei muito bem. Ninguém esteve lá depois que nos colocaram aqui.

– E porque ninguém esteve lá? - foi a minha vez de se meter na conversa.

Júlio olhou para mim e franziu a testa pensando num porquê para aquilo. Por fim admitiu:

– Nunca me perguntei isso. Talvez não tiveram motivos para ir, ou então ficaram com medo do que encontrariam.

– Medo? Será? O que poderiam encontrar de tão aterrorizante? Uma cidade abandonada? - questionei novamente.

– Eu não sei, Liss. - Gostei do jeito como ele me respondeu. Era bom ouvir ele dizendo meu nome e falando como se eu fosse alguém igual a ele.

Olhei para floresta e pela primeira vez uma coisa me passou pela cabeça: tinham colocado nossos antepassados aqui e nunca ninguém mais tinha feito contato conosco. Mas e se por alguma razão a doença que atacou o mundo não fosse assim tão forte e alguns tivessem sobrevivido?

– E se lá fora ainda existirem pessoas que sobreviveram a doença? - dei voz aos meus pensamentos.

Os dois irmãos olharam para mim com cara de espanto. Não precisava de tanto. Era só uma hipótese. Enquanto Júlio virou a cabeça ignorando meu comentário, Danilo deu um jeito de achar uma solução a minha questão:

– Se existissem elas dariam um jeito de entrar em contato com nós. E o governo também deve ter verificado isso antigamente, não acham?

– Na verdade, não acho não. - Júlio voltou a olhar para nós. - Não teria como o governo conferir todo canto do mundo em busca de sobreviventes. E mesmo se existisse uma maneira, eles não fariam isso. O governo não quer perder o poder que tem sobre o povo. Se existisse outra civilização além de Tazur, provavelmente sairíamos daqui e iríamos para outro lugar do planeta, onde o governo não teria nenhum direito sobre nós. E não é isso que eles querem. Preferem nos manter aqui, isolados e controlados.

Senti uma ponta de rancor no tom de Júlio, ou será que seria ódio? Ele parecia falar como se soubesse como o governo age, o que eles querem.

– Você fala como se conhecesse o governo. - Danilo percebeu o mesmo que eu.

Júlio ficou quieto e não respondeu. Ele abaixou a cabeça parecendo muito interessado em ver como estava o seu sapato.

– Você conhecesse, né! É claro que conhece. Você trabalhou no prédio do governo por um mês. - insistiu Danilo, olhando suplicante a Júlio.

– Sim eu conheço. - Júlio deu um suspiro de derrota.

– E como ele é? - a curiosidade era nítida na voz e no rosto de Danilo.

– Na verdade é como eles são. - corrigiu — Não temos apenas um governante. Temos 3. Dois homens e uma mulher. Um dos homens é mais velho, aparenta ter uns 50 anos e os outros dois, o outro homem e a mulher, eles são irmãos. São muito parecidos e tem quase a mesma idade. - Júlio assumiu o seu tom de professor, variando o olhar entre nós dois. Eu prestava bastante atenção, curiosa e empolgada com o rumo que a conversa havia tomado. Queria saber mais sobre o governo. Isso sempre me interessou, mas nunca tive informações. Júlio pressentindo a avalanche de perguntas que viria fez questão de nos acalmar — Não se preocupem com isso agora. Vocês nem deveriam estar sabendo dessas coisas ainda. No final do treinamento de vocês terão todas as informações que precisam.

Não tivemos coragem de perguntar qualquer coisa depois de suas palavras. Mas na última frase uma parte me chamou atenção: "....todas as informações que precisam".O que ele queria dizer com isso? Nos dariam toda a informação necessária para fazermos nosso trabalho de soldados corretamente? Esconderiam algumas, ou melhor, muitas coisas de nós?

Já era madrugada e eu estava me segurando o máximo possível para não cochilar enquanto vigiava, quando Júlio falou em alto e bom tom:

– Soldados vocês já fizeram seus trabalhos por hoje. Podem ir dormir um pouco e chamem para seus lugares seus companheiros de barraca.

Eu e Danilo nos levantamos. Eu estava com o corpo duro e as pernas amortecidas de ter ficado sentada tanto tempo sem sair do lugar. Segui para minha barraca, dei uns chacoalhões para acordar Carol e depois que ela foi para seu posto de vigia, adormeci imediatamente.

Os outros dois dias de acampamento passaram voando...Treinamos fazer fogueira, caçar pequenos animais, pescar alguns peixeis, colher frutas e plantas comestíveis, entre outras coisas. Não era como quando estávamos no quartel. Era muito melhor. Sem militares chatos andando carrancudos por ai, sem exercícios diários. Apenas nós e a natureza.

Achei que o Thomas ir junto poderia estragar um pouco as coisas, mas não foi isso que aconteceu. Ele incomodava bastante o Julio, querendo mostrar um melhor jeito de nos ensinar. Mas Julio era paciente, ignorava Thomas ou lhe dava uma resposta curta que fazia-o se afastar.

O único problema que ocorreu foi quando Thomas começou a falar para o Júlio que ele esquecia de nos xingar durante os treinamentos, seus argumentos eram que isso é importante, que assim aprenderíamos a sermos maltratados e não sermos como as outras pessoas comuns. Júlio discordava insistentemente, mas sem se exaltar. Eles já estavam desistindo de discutir sobre aquilo quando Danilo, que como eu assistia a conversa, resolveu se meter:

– Não tente ensinar meu irmão a dar aula. Ele é o professor aqui e não você! - levantou-se de pé, aproximando-se de onde os outros dois estavam.

– Não se meta na conversa pirralho. - ordenou Thomas, com uma cara de nojo olhando para Danilo.

– Danilo, sente-se — foi a única coisa que Júlio disse ao irmão. Danilo não sentou, mas recuou um pouco, apenas olhando o irmão, que agora se dirigia a Thomas. Dessa vez percebi que ele estava começando a se sentir incomodado. - Eu prefiro não ofender meus alunos. E enquanto eu for o professor aqui, espero que você respeite isso. Não quero ouvir você chamando Danilo de pirralho mais uma vez, ou chamando qualquer um dos soldados por outra coisa que não sejam seus nomes.

– Entendido sargento — disse ironicamente Thomas, batendo continência para Julio. - Já percebi que seu plano é transformar o quartel em um acampamento de férias. Só que vamos criar um monte de soldados mulherzinhas. Do jeito que tá, eles vão sair correndo quando escutarem o primeiro tiro. E sabe quem vai pagar por isso? - apontou o dedo para Julio — Não é você. É todos nós. Não vamos ter soldados para nos defender, só um bando de maricas igual a você.

Pela primeira vez Julio se descontrolou, seu olhar estava negro e mortal, parecia ser capaz de enfrentar qualquer coisa naquele instante. Mas ele apenas se levantou e gritou:

– Cale a boca! - ele respirou fundo, tentando controlar a raiva. - Você não sabe o que está dizendo. E eu sou seu superior aqui, então não se meta. Aproveite para fazer alguma coisa de útil e vá buscar mais água.

Thomas parecia pronto para revidar, mas deve ter pensado melhor e percebido que teria que obedecer as ordens do Julio. Ele saiu, andando rápido e batendo os pés, mostrando seu descontentamento.

Júlio sentou-se onde estava antes, fechou os olhos e ficou lá se acalmando. Danilo entrou para sua barraca, mais incomodado ainda por ter sido impedido de participar da confusão.

Não sei muito bem como, mas num impulso eu estava ao lado de Júlio, tentando o acalmar:

– Você está bem? - perguntei com a voz suave e baixa, para que ninguém além dele escutasse.

– Sim, eu estou — ele abriu os olhos, endireitou a postura, parecendo constrangido em ser pego daquela maneira. - Posso ajudá-la, soldado?

– Não. É que eu vi o que aconteceu e vim aqui ver se você estava bem. Só isso. - agora eu era quem estava envergonhada, senti minhas bochechas queimando. Porque mesmo eu tinha vindo saber como ele estava? O que isso me interessava?

– Eu agradeço a preocupação. - ele já havia conseguido se acalmar, sua voz e seu olhar voltaram a ser o de sempre: sério e rígido.

Sentei ao lado dele e de novo pelo impulso as palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse controlar:

– Não ligue pro que ele disse. Eu acho você um professor muito melhor do que o Alexandre. Vamos ser ótimos soldados depois de formados e isso vai ser porque você nos ensinou muito bem. Estaremos preparados para tudo, eu tenho certeza — eu ainda mantinha o tom de voz baixo e olhava para o rosto dele, que apenas encarava a sua frente, enquanto escutava minhas palavras.

–Talvez ele tenha razão. Eu devia ser mais severo. - Seu olhar assumiu um tom mais jovem, como um menino arrependido pelo que fez. Tão diferente daquele que ele era na frente de todos...

– Não. O seu jeito de ensinar é que tá certo. Eu vejo por mim, — as lembranças da primeira surra que eu levei me vieram a cabeça — na aula de defesa pessoal, com o Alexandre gritando e xingando eu não consegui aprender nada. Mas quando você foi me ajudar, ensinando cada movimento com calma, ai eu consegui entender.

Ele virou o rosto pra mim e me encarou, eu o encarei de volta, olhando fundo em seus olhos, que pareciam mais doces do que nunca.

– Continue com o seu jeito de ensinar e mostre como você tá certo. Você é o sargento aqui, e é o melhor sargento que poderíamos ter. - ele deu um sorriso tímido para mim, sem mostrar os dentes e eu lhe retribui com um grande sorriso, e sem pensar coloquei minha mão em cima da dele e a acariciei, lhe dando todo o meu apoio, que eu tenho certeza, ele não precisava.

Rapidamente ele puxou a mão para perto de si, fazendo com que a minha que antes tocava sua pele quente, agora encostasse num tronco de árvore gelado e áspero, onde estávamos sentados. E em menos de um segundo, o cara com o olhar doce desapareceu e deu lugar ao homem grosso e rude:

– Você devia ir conversar com o Danilo e não comigo. Ele é quem precisa de seu apoio e não eu. Ele não gosta muito do Thomas e fica muito irritado quando acontecem coisas como essa. Ele ainda é novo, não sabe se controlar.

Me senti triste com Julio. Eu tinha ido lá falar com ele, sem saber muito bem o porquê e agora ele vinha dizer que eu não devia ter feito aquilo? Que ele não precisava do meu apoio? Que ingrato. Eu só estava tentando ser prestativa e acalmá-lo.

– Ok. - eu engoli meu ressentimento e fui para a barraca de Danilo, para conversar com alguém que realmente entendia que eu me importava com os outros e que não me trataria mal.


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