Mundo medonho escrita por Helen


Capítulo 14
Choque.




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A viagem até o primeiro acampamento durou mais de duas horas. Foi tempo o suficiente para Agatha e Hugo encherem quase metade do caderno. Chegando lá, a primeira coisa que fizeram foi procurar um lugar para começar o treinamento de Agatha, que não poderia esperar mais. Por sorte ou coincidência, o acampamento possuía um "campo de concentração" de Medos, onde faziam pesquisas sobre eles e tiravam a maior parte das informações. Como os Medos eram em grande quantidade, não faria falta pegar alguns para treinar uma novata. O espaço que fora dado a Agatha era grande, com chão de terra, e fechado por paredes de madeira. Duas criaturas medonhas estavam presas em gaiolas feitas com a mesma lâmina fria da espada da garota. Um painel com duas alavancas controlava a abrir e o fechar das gaiolas.

— A primeira coisa que alguém pensa ao enfrentar um Medo, é desviar-se do impacto psicológico. — disse Hugo, tirando a espada da bainha. — É preciso lembrar sempre que eles tem a capacidade de trazer à tona qualquer resquício, por menor que seja, do medo que tínhamos. Nunca subestime um Medo. Por mais fracos que possam parecer fisicamente, eles são bem inteligentes e sabem usar suas fraquezas bem... Talvez porque eles sejam um amontoado de cérebros.

Empunhando a espada, a apontou para o primeiro Medo e sua gaiola, indicando que o usaria como teste. Puxou a alavanca, e a porta da primeira gaiola se abriu. A criatura medonha esgueirou-se, entortando a coluna, como um gato prestes a atacar. Sua aparência era igual a de um Medo comum: pele negra como carvão, olhos brancos que piscavam raramente, pernas e braços esguios, ambos ostentando garras retráteis. Hugo não especificou qual Medo era aquele.

Sorrindo de forma debochada, Hugo fez um gesto com a espada, como se estivesse convidando o Medo. A criatura começou a correr numa velocidade assustadora, em zigue-zague. Hugo parecia preparado e acostumado com tal velocidade, e acompanhava a criatura com a mesma voracidade. Com um impulso, começou a correr, segurando a espada com força.

Caminhos se cruzaram e ambos se viraram rapidamente. As garras e a espada se encontraram. O Medo não parecia assustado ao perceber que a lâmina trazia dano à suas garras. Ele atacou com o outro braço, soltando ao mesmo tempo uma rajada de pavor. Hugo não se sentiu afetado, mesmo sendo um Medroso.

Mais uma vez, Hugo focou em atacar a mão do Medo. Ele moveu a espada para a outra mão com facilidade, e investiu vários ataques rápidos contra a criatura, que cada vez mais era perfurada, sentindo a força de seu oponente.

— Você não pode dar nem uma brecha. — disse Hugo, em meio aos ataques. Cada sílaba era mais um golpe na criatura.

O Medo caiu no chão, sem uma das mãos, e a outra, apenas com uma das três garras. Ainda respirava, com dificuldade. Fitou o oponente com ódio. Rosnou, mostrando os afiados dentes que escondia. Se levantando, a criatura apoiou-se nos pés e fez um impulso, avançando contra Hugo. Este último segurou a espada com as duas mãos, e fez um movimento para frente, cortando a criatura de cima pra baixo. Sangue escuro jorrou, formando uma poça em frente à Hugo. Os restos da criatura se transformaram em pó, pouco tempo depois.

— Viu? É fácil. — Hugo colocou a espada na bainha.

Agatha não conseguia desfazer a expressão de indignada e impressionada.

— Como é que eu vou fazer isso?! — ela acabou falando gritando sem querer, por causa da emoção. — Mal sei segurar a espada direito!

— Ah, então não ensinaram isso também. — ele revirou os olhos — Não achava que vocês Intrépidos eram tão fracos.

Mesmo querendo refutar, Agatha se calou.

— Vou ver como você se sai lutando contra um Medo sozinha. Ou vai me dizer que é uma medrosa? — ele deu uma risadinha.

— Silencie-se, agradeço.

Agatha segurou a espada com a mão direita. Não fazia ideia de como iria atacar, mas precisava achar uma maneira. Apontou para a segunda gaiola com o Medo, mesmo sem saber o que fazer. É estranho descrever a sensação, já que Agatha não deveria ter medo. Posso dizer que ela sentia ansiedade, receio. É... Talvez ansiedade seja uma palavra mais adequada.

Segurando com força a espada, fechou os olhos. Começou a correr no exato momento em que o Medo saiu da jaula. Ele não entendeu o motivo de tanta pressa da parte dela, mas se preparou, correndo na mesma velocidade. Dessa vez, não esperaria um cruzamento. Iria atacar de frente. Pulou, se preparando para se chocar com o rosto de Agatha. A mesma surpreende-o, parando de repente. Levantando a lâmina, acabou fazendo com que o Medo fosse diretamente para a mesma, tendo como fim o mesmo que o seu colega. O sangue de Medo sujou a moça, e as duas metades da criatura também viraram pó. Ela abriu os olhos depois de se certificar que tudo estava quieto.

— Conseguiu deduzir o movimento de um Medo, nada mal. — disse Hugo se aproximando. — Não vai ser toda a vez que eu vou atacar primeiro e dar ideias para o segundo Medo. Desenvolva a criatividade. Você é uma hacker. Precisa utilizar os mesmos métodos aqui.

— Tão fácil dizer.

— Diga-me, o que você faz?

— Desvendo sistemas e procuro achar alguma coisa importante.

— Hum... Desvende os Medos, procurando deduzir suas reações. Não é tão difícil.

— Heh, você é acostumado com essas coisas.

— Nem. — ele tirou a capa escarlate e a pendurou em um prego que estava na parede. — Vou ter que te ensinar como se usa essa espada.

Virando-se para Agatha, Hugo apontou a espada, posicionando-se, prestes a atacar. Mas antes que pudesse fazer algo, parou e explicou para Agatha como se defendia de um ataque direto (posicionando a espada contra a espada/garra do inimigo) e como desarmava o inimigo com esse mesmo movimento (era preciso apenas virar a espada para o lado que desejasse, com força). E de repente, Hugo começou a correr em direção à Agatha, procurando atacá-la diretamente. A mesma, ao invés de seguir o que ele havia acabado de explicar — percebeu com rapidez que aquilo não daria certo —, desviou, recuando para o lado e, aproveitando que ele estava de costas, o atingiu com o pomo da espada, fazendo com que se atrapalhasse, e assim, parasse de segurar a espada com tanta força, e aí sim Agatha tirou a espada da mão dele, com um golpe.

Hugo se recompôs, impressionado. Agatha era do tipo de moça que entendia situações com facilidade. Graças a alguns filmes que tinha visto, tinha uma boa noção de como funcionava os enganos dos oponentes. Mesmo não tendo força física, era uma boa estrategista.

— Por que você mentiu dizendo que os Intrépidos não havia lhe treinado? — disse Hugo, sem se virar.

— Não menti. Juro que não consegui nem segurar a espada direito sem deixá-la cair quando a recebi.

Ele bufou. Seu Medo emergiu no topo de sua cabeça e começou a acariciar o cabelo ruivo do homem, como se o consolasse.

— Mesmo se ela fosse Medrosa, não teria problemas com a espada. Ela, por si só, tem uma alma intrépida. Encontramos alguém importante... Muito importante.

— Por quê? — Hugo pareceu ignorar a presença da moça citada.

— Temos uma humana que não foi modificada pela loucura intrépida. Ela ainda tem o medo dentro de sua mente, mas sempre se convence e convence aos outros que é apenas receio. Receio é sinônimo de medo! Por isso que ela não confiou em nós. Por isso que é a única que aparenta ter sanidade. Não foi modificada, e ainda tem o medo como sentimento. Ela é ouro, Hugo! Ela é ouro!

O rosto do homem iluminou-se, enquanto o rosto de Agatha ficava pálido. A revelação causava um choque em ambos, acendendo uma estranha reação em cada.

— Você... — ele se virou, sorrindo. — É a prova mais concreta de que todos os Intrépidos estão loucos!

...

A notícia se espalhou pelo acampamento como fogo. Todos que passavam por Agatha a cumprimentavam e queriam falar com ela. Havia se tornado a mais essencial no plano. Hugo era louvado por sua sorte em encontrar alguém tão importante, e o Medo dele ganhara créditos e regalias por sua descoberta.

Agatha não se conformava. Já não bastava digerir a conversa dos extraterrestres, e ainda tinha o fator de que era um humano com medos. Recebia choque atrás de choque, e implorava por uma pausa. Quando a moça encontrou a sua barraca, entrou nela e deitou-se, pegando um lençol qualquer e cobrindo-se com ele, e em seguida abraçou o travesseiro. Sua visão se fixou em um ponto qualquer, e ela repassou tudo de novo, na sua mente. Sombras de pessoas que passavam por ali às vezes a tiravam do foco, mas nada que a desconcentrasse totalmente de seu objetivo central.

O crepúsculo trouxe consigo o fim da longa retrospectiva da mente de Agatha. Sentiu falta de alguma boa alma que pudesse ouvi-la. Precisava regurgitar toda aquela digestão no chão, mas seria tolice fazê-lo por si só. A cena e seu vômito — o qual seria palavras sem nexo — mancharia sua reputação de sã. Talvez a moça gritasse, chorasse, xingasse... E o pior: ela se importava se a vissem fazendo isso, e sabia que não adiantaria se fizesse sozinha. Precisava que alguém a ajudasse a limpar o chão, e a si própria. Dormiu pensando nisso.

...

A noite e a madrugada vieram, e quando todos iam dormir, Agatha finalmente acordou. Seu corpo implorava por movimento, e ela concordou com ele.

Uma fogueira estava largada no centro do acampamento. Agatha aproveitou e se sentou perto do fogo, vendo-o se mover e estalar. O brilho amarelo encantava os olhos da moça, os hipnotizando. Fogo era capaz de ser o terrível destino de algo, mas também poderia ser a salvação de alguém.

— Ah, você está aí.

Agatha quase pulou de susto com a voz. Hugo se sentou no lugar oposto da moça. Seu Medo andava sobre quatro "patas", e ficou no colo do dono.

— Procuramos a senhorita por um bom tempo. Estava onde? — perguntou o Medo.

—...

— Tudo bem se não quer dizer.

Os três ficaram em silêncio. Passado certo tempo, Hugo começou a sussurrar coisas. Ele tinha mania de começar a devanear de repente. O Medo começou a dormir ao som dos sussurros de seu "dono". Era uma cena estranha.

Passado alguns momentos de silêncio quebrado pelos sons do fogo, Agatha começou a chorar baixinho. A alma intrépida começara a transbordar.

— Eu vou ficar louca com tanta coisa. — sussurrou ela.

— Todos nós já estamos. — disse Hugo, ainda em devaneios, mas sentindo a realidade. — Faça-nos um favor e não enlouqueça como nós.

— E como é que eu faço isso? — ela abraçou os joelhos.

— Sei lá.

Agatha bufou, sorrindo. O silêncio nadou no ar ao redor do fogo. Uma conversa de gestos, olhares e sorrisos se prolongou até que o Medo acordasse de súbito. Percebendo que já estava tarde, ambos se despediram, indo cada um para seu lado. Enquanto o Medo de Hugo estava deitado na cabeça do homem, Agatha sentia que o fardo que antes carregava saía de sua mente se esvaía como fumaça. O choque não foi totalmente absorvido, porque não era fácil perceber que tinha a capacidade de ter medo como um sentimento comum.

Talvez sua falta de memória fosse a causa principal de não saber que possuía medos. Mas por que tinha esquecido? Ninguém sabia. Talvez precisasse mergulhar fundo na sua mente, para procurar as lembranças que ciência fez questão de esconder.


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