Lord Of The Seas escrita por Mrs Jones


Capítulo 7
Eu Sou o Áqueo - Parte 2


Notas iniciais do capítulo

Minhas queridas, juro que farei o possível para postar com mais frequência, mas como 2018 é meu ano de formatura - e consequentemente de TCC - não sei bem como vão ser as coisas. Tenham, porém, a certeza de que postarei ao menos uma vez no mês. Enquanto estiver de férias, tentarei postar a cada duas semanas, já que tenho outra fic para atualizar. Enfim, mais uma vez, muito obrigada por tudo! Feliz Ano Novo a todas!



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O navio desliza calmamente até o centro do vulcão, onde o sol incide numa formação rochosa assimétrica e cônica parecida com um chapeu de bruxa fincado na areia. Há um atracadouro em sua porção oeste. Smee manobra o leme cuidadosamente de modo a atracar o Holandês em posição lateral. Enquanto isso, as afoitas ninfas se precipitam sobre o Capitão, esgoelando-se feito fãs alucinadas em busca de um autógrafo.

— PAPAI! PAPAI! PAPAI!                                        

A você que nunca viu uma ninfa marinha – com exceção de Nerissa, a Primogênita, que está mais para espírito aquático – é válida uma breve descrição. São, nada mais nada menos, do que criaturas parecidas com um ser humano de estatura mediana. A diferença é que não possuem corpo sólido, nem muito menos órgãos – e isso inclui um cérebro. São, tal como Nerissa, um corpo aquoso que anda e fala – nesse caso, até mais do que o necessário.

Ruby, que sempre achara que não houvesse ninguém que pudesse superar a afobação e tagarelice de sua madrasta, surpreende-se ao constatar que há não apenas uma, mas quinze criaturas capazes de exceder o nível possível de palavras emitidas por segundo.

Somando-se à barulheira infernal das conversadeiras ninfas, os pássaros, como que enfadados de voar em círculos, pousam nas bordas e velas do navio emitindo pios de contentamento. Diante de tanta balbúrdia, a pobre Ruby se atordoa com a enxurrada de poluição sonora. Escapa para o conforto da cabine, onde cerra a porta e acalma Ernesta, que de olhos esbugalhados se encontra estática.

— Pobre de mim! – resmunga consigo mesma a lagosta – Meus tímpanos não foram moldados para isto. Acabarei mais ensurdecida do que o Senhor Smee.

Ruby ouve a voz abafada de Davy reclamar:

— Que azucrinação! Aquietem o facho, suas maritacas!

As ninfas riem. Uma delas, Ruby observa pela fenda na parede, perscruta o navio à procura de alguma coisa.

— E então, papai – ela pergunta –, onde é que está a tal garota da capa vermelha?

— Tu fez outro contrato, não fez, papai? – diz outra, cheia de excitação – As Correntes me contaram! Quase não acreditei!

— Não estou vendo nenhuma garota a bordo! – fala outra ninfa – Eu disse que as Correntes estavam mentindo!

 - As Correntes não mentem! – brada Jones – Disseram a verdade!

As ninfas explodem em guinchos entusiasmados. Todas ao mesmo tempo, atormentam o pai com questionamentos. Querem uma descrição detalhada da tal moça, bem como um relato minucioso de como foi realizado o pacto. Jones, que não possui a virtude da paciência, limita-se a informar, ao mesmo tempo em que tenta localizar a moça:   

— O nome dela é Ruby. Ruby Lucas. Me parece que vocês a assustaram com todo esse alvoroço!

— Assustamos? Pobrezinha!

— Nós?! Ora, pois foram os pássaros com toda essa cantoria!

— Sim, papai! Sim, papai! Foram os pássaros com toda essa cantoria!

— Sim, papai! – bradam em coro as quinze ninfas – Foram os pássaros com toda essa cantoria!

Bem dizem que o pior cego é aquele que não quer ver...

— Que seja! – retruca Jones, tragando o cachimbo com ar de quem está prestes a explodir – Pois vão procurá-la! Não tenho o dia todo!

Se Davy houvesse tido um tiquinho de inteligência neste momento, teria raciocinado a tempo de mudar a ordem. Assim como Ruby teria sido sensata o bastante em sair da cabine, se houvesse imaginado que as ninfas guinchariam seu nome em alto brado retumbante.

— RUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUBYYYYYYYYYYYY!

— PELO AMOR DAS CONCHAS! NÃO GUINCHEM! – ruge um Davy azucrinado e de susto os pássaros alçam voo, chiando em protesto.

Convém usarmos abafadores de ouvido.

O bando de ninfas dispersa pelo convés e, ignorando o escândalo do pai, continua a chamar por Ruby num insuportável coro. Todas elas, desprovidas de cérebro, parecem não se atentar ao fato de que uma mulher de carne e osso jamais caberia em esconderijos pequenos. É com extremo constrangimento que Davy observa as filhas verificarem barris, caixotes e espaços vazios. Smee bem abre a boca para sugerir que procurem no lugar mais óbvio, mas com um gesto Jones o faz se calar.

— Não ouse dizer a elas o que fazer, seu gordo energúmeno! – murmura ele entre lábios, agarrando o pobre Baiacu pelo pescoço – Acha que minhas filhas são incapazes pela falta de encéfalo? Hã?! Pois não! Não ouse privá-las do fenômeno da descoberta!

Pensemos nas ninfas como bebês que não saíram das fraldas. Não é com adorável encantamento e escandaloso deleite que eles experienciam o mundo? Pois com as ninfas é o mesmo.

Ruby jamais admitiria em voz alta, mas diante da ignorância alheia ela se sente incrivelmente inteligente (apesar de seu analfabetismo). De fato, ela bem que balança a cabeça, rindo-se da burrice das estúpidas ninfas. Tal qual Karolyn e suas detestáveis meias-irmãs faziam quando debochavam de sua inabilidade com a leitura. É verdade que ás vezes Ruby assume o mesmo comportamento de sua família; não a julguemos, no entanto: ela não tem consciência de que o faz

Eis que, passados longos minutos, uma das ninfas avista a moça espiando pela fenda.

— ACHEI! ACHEI! ESTÁ ESCONDIDA NA CABINE!

As outras quatorze ninfas se precipitam feito galinhas tresloucadas em direção aos aposentos de Jones. Ruby corre a se enfiar no vácuo sob o órgão, numa frustrada tentativa de esconder-se. Dali a pouco se vê acuada por quinze ninfas escandalosas que a observam com a mesma curiosidade com que se observaria um sapo dissecado.

— Ooooiiiii! – berra uma delas, aproximando a cara de Ruby. As outras a imitam e Ruby se encolhe toda, tapando os ouvidos.

— Não guinchem! – ela esbraveja e todas se calam, assustadas – Pelo amor do Holandês! Teu pai não lhes dá educação?! Francamente! Quantos filhos indisciplinados!

Uma ninfa menorzinha desata a chorar, envergonhadíssima. As outras quatorze parecem igualmente embaraçadas, porém não reagem.

— D-d-desculpe-nos, s-senhorita Ruby! – uma delas acaba por balbuciar – Não tivemos i-intenção de perturbá-la.

— Não se assuste! – diz outra, em voz baixa – Nós somos apenas um pouquinho eufóricas.

— Um pouquinho? Pois parecem galinhas tresloucadas!

— Galinhas? – questiona a menorzinha, no meio do pranto – O que são galinhas?

— Hum, são aves terrestres. Em todo caso, afastem-se para que eu possa me levantar.

Ruby se ergue, ajeitando a capa e o vestido. No baldinho amassado, Ernesta parece desfalecida.

— Será que morreu? – pergunta a moça, mais para si mesma do que para as outras. Cutuca a lagostinha com o indicador e respira aliviada quando esta estremece e reage mexendo as anteninhas.

— Olha, uma lagostinha-bebê! – exclama a ninfa menorzinha, cessando o choro.

— É uma Palinurus elephas— comenta outra, quase enfiando a cabeça dentro do balde.

— O nome dela é Ernesta – informa Ruby.

— Oi, Ernesta! – exclamam as quinze ao mesmo tempo.

Ruby segura o riso, perguntando-se se as ninfas faziam coro o tempo todo. Ernesta mexe as anteninhas resmungando “Acabou-se o sossego!”.   

Uma ninfa puxa uma mecha do cabelo de Ruby, que reclama com um “Ai!”.

— Que coisa estranha! Nunca vi algo tão macio! – comenta.

As outras, curiosas, põem-se a analisar a moça. Uma lhe toca o rosto, enquanto  outra lhe examina um olho, e outra observa as articulações de sua mão esquerda, e outra passa as mãos pela textura da capa vermelha.

— Eu nunca tinha visto uma humana antes!

— Oh, nem eu!

— Bem que papai disse que as moças humanas são atraentes!

— O que significa atraente?

— Acho que significa esquisita!

— Não, tolinha, significa bonita!

— Aaah!

— Que esquisito, nunca tinha visto olhos verdes!

— Como não? Os olhos do cozinheiro Jefferson são desta cor.

— Não seja tonta, os olhos de Jefferson são azuis!

— Nada disso, são verdes!

— Azuis!

— Verdes!

— Azuis!

— VERDES!

— AZUIS!

Davy Jones anuncia sua presença ao berrar com estrondo, brotando por trás das ninfas.

— CHEGA! NÃO QUERO SABER DE DISCUSSÃO! Suas indisciplinadas! Como ousam envergonhar teu pai diante de tão ilustre visita?

— Ilustre visita? – Ruby surpreende-se e Davy se corrige, todo atrapalhado.

— Eu quis dizer “estúpida atrevida”.

— Nada disso – diz a ninfa menorzinha – o senhor disse “ilustre visita”.

— Ora, tanto faz! Movam-se! Movam-se! Tenho mais o que fazer! – e ele enxota as quinze ninfas e Ruby como um vaqueiro que toca o gado.

Ruby sai para o convés seguida pelo capitão. Dois marujos se ocupam em ancorar o navio, que oscila sutilmente no marasmo das ondas. Uma prancha de madeira é colocada entre a embarcação e o atracadouro, de modo que os tripulantes possam atravessar seguramente pelo vácuo entre um e outro. Smee oferece a mão à Senhorita Lucas quando esta se mostra receosa em atravessar a ponte. Extremamente cuidadosa, ela testa a firmeza da prancha antes de pisar nela com ambos os pés. Desembarca na passarela de madeira do atracadouro, na qual as ninfas se amontoam à espera do pai. Duas delas engancham os braços nos da moça, oferecendo-lhe sorrisos afetuosos.

— A Senhorita é muito bonita! – comenta a ninfa à sua direita.

— Obrigada! – sorri Ruby, corando levemente.

— Papai bem poderia casar-se com ti quando a maldição for quebrada – diz a da esquerda, suspirando romanticamente – Fariam belos filhos!

O rubor da moça fica mais intenso. Davy agradece mentalmente o fato de sua pele não enrubescer como a de um humano. Disfarça o embaraço ao debochar:

— Como se alguém pudesse substituir minha Janevra!

Nem Ruby nem as ninfas dão resposta. Conduzida pelo atracadouro, nossa protagonista sente as pernas vacilarem, desacostumada a caminhar em terra firme. As ripas de madeira que revestem a passarela rangem e estalam conforme se pisa nelas; parecem firmes, no entanto, recobertas por uma camada grosseira de algas e cracas. Davy pragueja escandalosamente quando enfia a perna de pau na fissura entre duas ripas. A prótese escapa de seu membro aleijado com um ploc! e fica enganchada no buraco.   

— ESTA PERNA FILHA DA PUTA!

Smee censura as ninfas quando estas emitem risinhos. Corre a ajudar o Capitão, que pula num pé só numa tentativa frustrada de equilibrar-se. Bem teria capotado de cara, não fosse o esforço de três marujos em ampará-lo. Ruby não consegue conter-se quando as quinze ninfas desatam a rir.

— QUIETAS! COMO OUSAM RIR DA DESGRAÇA ALHEIA?! – urra irado o Capitão, que se impacienta com a lerdeza dos marujos em desenganchar a prótese da fissura – Seus palermas duma figa! Será que não sabem fazer nada direito?!

— Está presa, Capitão! – justifica um dos marujos, suando pela força que imprime à prótese para desatolá-la.

— Bem dizem que o que se planta se colhe – diz Ruby às ninfas, roxa de tanto rir. O Capitão, tendo ouvido o comentário, pensa em retrucar, mas é interrompido pela tagarelice dos marujos, que decidem serrar uma das ripas de modo a larguear o buraco.

— Andem logo com esse caralho! – pragueja Jones, sua enorme pança sacolejando ante o esforço de firmar-se numa perna só – Malditos idiotas!

Enquanto isso, Ruby gira trezentos e sessenta graus admirando a imensidão do Reino. Seus verdes olhos, ávidos em absorver tudo ao mesmo tempo, pulam rapidamente de uma coisa à outra, tal qual se ela estivesse diante de um farto banquete e não soubesse do que se servir primeiro. Pensando tratar-se de um sonho, ela se belisca para ter certeza de que nada daquilo é produto de sua imaginação. E suspira aliviada ao confirmar que está mesmo no interior de um vulcão inativo, em companhia de quinze divindades aquáticas desprovidas de inteligência.

A você, que de mim depende para enxergar, segue uma breve e introdutória descrição. A começar pela coloração da água, que é do mais vibrante tom de azul-turquesa já visto. Tão vibrante que, em seu marasmo, hipnotiza quem a contempla.  Vê se o fundo do mar uns dois metros abaixo da superfície: um solo que é uma mistura de areia áspera cinza-escura e seixos cor-de-carvão. Não há vida marinha por ali, pelo menos não àquela profundidade. Esperemos encontrar algum tipo de fauna e flora mais adiante.

Sabemos, a esta altura, que o exterior do Reino é formado por um extenso paredão de rochas nuas e pardas, em cuja base crescem espessas algas e em cujas saliências abrigam-se aves marinhas. Ora, pois o interior é exatamente o oposto disso. Que se espera de um vulcão senão um cone de rocha escura e áspera? Pois digo-lhe que, ao contrário do que tu esperas, as montanhas são recobertas por uma densa camada de vegetação verde-escura – que à distância não podemos identificar, mas que, em minha percepção, aparenta-se com a mata atlântica brasileira (eu já estive no Brasil, naturalmente).  

Sabemos também que o chapeu-de-bruxa rochoso se encontra exatamente no centro do vulcão. A partir deste ponto, utilizando-se de uma rosa-dos-ventos, avistamos ao norte, em meio à vegetação verde-escura, uma abertura em formato de fenda. Trata-se de um atalho para o Baú de Davy Jones, o qual explicarei mais à frente.

Ao sul temos duas praias, separadas uma da outra por uma península.

A leste nada consegue se ver, pois o que há para ser visto se encontra nas montanhas, acima das nuvens.

Finalmente, a oeste, avista-se uma porção de formações rochosas: umas que aparentam ser tijolos amontoados, outras que  aparentam ser tijolos flutuantes e algumas que aparentam ser esculturas de tijolos. Conclusão: Davy ama tijolos (o que na verdade são paralelepípedos, para ser mais correta).

E é claro que nesta (não tão breve) descrição, não contemplei as partes não visíveis do ponto em que nos encontramos. Isto fica para outra hora, já que, no fim das contas você se cansaria do meu incessante falatório.

Retornando à passarela de madeira, temos Ruby girando em círculos, pasma com tanta beleza. Ela aponta de um lado para outro perguntando, questionando, indagando.

— O que é aquilo lá? Que lugar é aquele ali? Que fenda é aquela? Que há a leste? Que há a oeste? E aquelas praias, que nome têm?

As pacientes ninfas tudo lhe respondem; até mesmo quando, por equívoco, nossa doce protagonista, tal qual um míope que confunde uma serpente com um cipó, aponta para a cabeçorra do Kraken dizendo:

— Ora, pois pensei que as focas vivessem na Antártida! Por que é que esta se encontra tão longe de casa?

As ninfas desatam a rir, todas ao mesmo tempo. Davy, tendo ouvido o comentário, solta uma gargalhada e por pouco não se desequilibra.

— Não é uma foca, sua boba! – responde a ninfa enganchada em seu braço esquerdo – É uma lontra marinha!

— Aaah – faz Ruby, envergonhadíssima.

Smee, tão paternal quanto podia ser, fala em defesa da moça.

— Ora, pois não riam! A senhorita Lucas certamente nunca viu focas e lontras tão de perto, não estando apta a diferenciá-las, portanto.

— É verdade – assente Ruby, ainda com o rosto queimando de constrangimento – Só vi focas num livro ilustrado. Quanto às lontras... nunca nem ouvi falar nelas.

O que era uma mentira deslavada, uma vez que, ainda pequena, Ruby vira a coleção de focas empalhadas do Senhor Cooper. Mas dissera a verdade quanto às lontras. No entanto, ainda que nunca tivesse visto um bicho como aquele, era absurda a sua capacidade de confundi-lo com um animal tão característico quanto uma foca. Talvez, pensa ela, estivesse ficando míope como Karolyn, que já não era capaz de diferenciar uma cabra de uma leiteira – e não estou exagerando.

Ruby quer saber o que a lontra está fazendo na cabeça do Kraken. Smee responde que as lontras são assim, extremamente amigáveis, mesmo com criaturas gigantescas de tentáculos compridos e alta inclinação para devorá-las.

— Veja lá, senhorita Lucas, como a doce criaturinha acena com as mãozinhas. São fieis amigos, ela e o Kraken. Brincam o dia todo e se compreendem mesmo falando idiomas diferentes.

— Ora, pois seria bem mais proveitoso se o Capitão me desse uma lontra de estimação, ao invés de uma lagosta. – comenta Ruby, encantada pela lontra, que agora brinca de escalar um dos tentáculos que o Kraken estica no ar – Que adorável criatura!

Não é preciso dizer que a pobre Ernesta, magoando-se, chora copiosamente em seu balde amassado. Em se tratando de consideração com os sentimentos das lagostas, Ruby tem ainda muito que aprender.   

— Pois lontras são criaturas afáveis, sem dúvidas – fala Davy, em meio ao roc, roc, roc de um serrote cego – Todavia, são também criaturas livres e, desse modo, não gostam de ser feitas de animais de estimação.

— E não são livres todos os animais? – retruca Ruby – Como o que o senhor, com gentileza, presenteou-me?

— Pois disse-lhe que se trata de uma lagostinha órfã. E, sendo órfã e pequena, necessita alguém para cuidar-lhe. Quando crescer, poderá ser livre.

— Bem observado, Capitão – intromete-se Baiacu na conversa – Porém, discordo. Pois mesmo sendo órfã, a pequena Ernesta obteria melhor desempenho se vivesse as atribulações da vida marinha, em meio à inconstância e perigo dos mares. Vivendo num balde, como é que a coitada haverá de reintegrar-se à vida marinha quando crescer?

Davy emite um desagradável som de indignação.

— Ora, pois cale-se e mantenha suas opiniões para si! E vocês, lesmas gosmentas, andem logo com essa serração!

Roc.... roc... roc...

— Me parece que este serrote está cego – diz Ruby, azucrinada pelo roc, roc incessante.

— Bem observado! – exclama Davy, como se não tivesse percebido – Que tal usar sua língua afiada para amolá-lo?

— Ora, eu bem poderia! Mas o senhor, com toda sua arrogância, é bem mais capaz de serrar a madeira com sua própria língua.

As ninfas tornam a gargalhar, não porque tenha sido engraçado, mas porque é admirável a forma como Davy retorce os tentáculos faciais quando Ruby o enfrenta.

— COMO OUSAM RIR DE TAL AFRONTA? São mesmo tão incapazes de dar suporte a teu pai, cuja honra acaba de ser ferida?

— O senhor há de nos perdoar, papai, mas Ruby bem que está certa – diz uma ninfa que aparenta ser a menos burra do grupo.

— Sim, papai, Ruby bem que está certa! – concordam todas.

— NÃO OUSEM CONCORDAR COM ESTA... esta... Smee, um sinônimo para afronta!

— Vitupério, Capitão.

— NÃO OUSEM CONCORDAR COM ESTE VITUPÉRIO! Pois enquanto minhas filhas forem, discordarão das mentiras caluniosas levantadas contra teu pai!

Roc... Roc... Roc...

— E ANDEM LOGO COM ESSA SERRAÇÃO!

A serragem da madeira leva mais três minutos e trinta e sete segundos.

Recobrada a mobilidade, Jones avança furiosamente em direção às risonhas ninfas.

— Retornem ao oceano, vocês todas! – esbraveja, gotículas de saliva saltando de sua boca feito rojões. Então, como que dragadas por uma força invisível, as divindades desaparecem entre as ripas, deixando para trás partículas de umidade. Davy se volta para Ruby ordenando que a mesma se mova. Ela apenas revira os olhos e faz como mandado.  

A passarela faz uma acentuada curva à direita, acompanhando o formato circular da rocha-chapeu-de-bruxa. Ruby percebe que a rocha é uma espécie exótica de caverna vulcânica, em cujas saliências se acumulam aves marinhas, tais como pardelas e gaivotas. Ainda encarapitada na rocha plana, Lula Lucerna emite uma série de guinchos. Ruby lança um olhar de interrogação a Davy, que lhe esclarece:

— É um cântico de boas-vindas. Ela mesma compôs!

Intitulado Ode de Boas Vindas ao Magnânimo Soberano dos Oceanos, a tradução para o português seria algo como “Chegou, chegou, chegou o Soberano/Chegou, chegou, o Senhor dos Oceanos”. Um refrão que se repete noventa e cinco vezes, até que a ode termina com “Salve, salve o Rei do Áqueo! Salve, Salve!”.

Eu sei o que está pensando... Mas não se pode esperar muito de uma lula...

— Impressionante para uma lula – comenta Ruby e Davy se envaidece todo.

— Meus filhos são incrivelmente inteligentes!

A passarela termina numa abertura na rocha-chapeu-de-bruxa. Parece-se com a boca de uma caverna, um buraco ovalado de nove metros de diâmetro que dá acesso à uma espécie de lago. Postados à entrada da caverna, dois guardas prestam reverência à Davy. Assemelham-se aos marujos do Holandês Voador, conservando, no entanto, muitas de suas características humanas.

— Apressai-vos! – ecoa uma voz masculina de dentro da caverna semi-iluminada – O Soberano está a esperar!

De fato, Davy se porta diante da entrada de sua fortaleza com ar de impaciência. Inquieto, faz movimentos repetitivos com a bota. Segundos mais tarde, um barquinho de madeira é iluminado pelo feixe de luz que adentra a caverna. Dois homens-peixe o remam, enquanto um terceiro homem, sentado de costas, impacienta-se com a vagareza do deslocamento. Quando, por fim, o barco para à entrada da caverna, o homem de costas se levanta e gira o corpo de modo a desembarcar na passarela de madeira. É com surpresa que Ruby constata que, diferente dos outros, este homem está vivo.

Tendo em mãos uma caixa quadrada de pedra negra polida, o homem presta reverência a Davy, saudando-o.

— Bem vindo de volta, ó Soberano! – e largueia a boca num exagerado e falso sorriso, ao mesmo tempo em que toma a mão de Davy, onde deposita um beijo. Se volta para Ruby em seguida, repetindo os mesmos gestos – Presumo que esta seja a salvação de que tanto se fala. Seja bem vinda ao Reino Áqueo, senhorita...

— Ruby, Ruby Lucas – fala Davy, antes que Ruby possa articular o próprio nome.

Ele realmente gosta da forma como esse nome soa em seus lábios...

— Senhorita Lucas – sorri o homem, endireitando-se – Bem, devo dizer-lhe, ó Soberano, que não imaginava uma moça de tão alta estirpe. Nota-se pelo tom de pele que se trata de uma dama aristocrata...

— Sei, sei – Davy o corta, antes que ele se derreta em elogios bajuladores – Pois cesse o falatório e coroe teu Soberano!

— Como deseja, ó Soberano! – da caixa quadrada, o homem retira uma coroa de ossos como a de Nerissa, apenas um pouco maior e mais rústica. A deposita sobre as abas laterais do chapeu tricórnio de Davy, ajeitando-a meticulosamente, com o cuidado de quem veste um bebê recém-nascido. – Salve, salve, ó Soberano!

E tanto o homem quanto os guardas e remadores do barquinho se ajoelham diante do Rei, saudando-o. Ruby, não sabendo como reagir, ensaia uma reverência, mas interrompe a ação antes de concluí-la, pensando que curvar-se diante de Davy seria o mesmo que mostrar-se submissa. Sem notá-la, Jones se exaspera.

— E meu cetro, onde é que está?!

— A Primeira Oceânide o tem em mãos, ó Soberano!

Eis que Nerissa, a Primogênita, sentada à uma rocha colossal a cinco metros da entrada da caverna, brada em ar de zombaria.

— Bem-vindo de volta, ó Soberano!

Tanto Ruby quanto Davy se voltam na direção da voz. Pela primeira vez, Ruby nota a grande rocha na qual a ninfa está acomodada. À guisa de trono, a formação rochosa é plana no centro e cheia de saliências nas laterais, como se o assento houvesse sido toscamente esculpido. É o trono de Davy, nota-se, devido ao seu tamanho e pomposidade.

— Meu cetro, por gentileza! – diz Davy exasperadamente, erguendo a mão na direção da ninfa. O cetro desliza pelo ar até alcançar o dedo tentáculo do Capitão.

Ele, então, sem prestar uma palavra carinhosa à filha, lhe dá as costas ao subir no barco, que afunda pela metade ao suportar seu peso. Ruby engole uma risada e aceita a mão que o homem desconhecido lhe oferece, subindo para o barco sem dificuldades e sentando-se à frente do Capitão. O barco afunda mais um pouco e os pobres remadores se entreolham desanimados ante o esforço dobrado em mover uma embarcação com o triplo do peso.

O homem, que como Ruby constata, se trata de um lacaio, sorri amarelo ao enfiar uma perna no barco, testando o peso. Julga ser possível que a embarcação acomode cinco pessoas sem afundar, mas eis que comanda Davy, em ar autoritário.

— Vocês dois, cabeças de bagre, pulem para fora! – e acrescenta secamente, após os remadores obedecerem – Acomode-se, Chermont.

— Obrigado, Capitão! – sorri amarelo o lacaio, sentando-se à frente de Ruby.

Com um toque do dedo de tentáculo, Davy impulsiona o barco, que se move em velocidade suficientemente razoável. Ruby apenas tem tempo de notar que o lago é tão escuro que não se pode avistar seu fundo. Talvez fosse efeito da penumbra, mas parecia que as águas eram cor de petróleo.

Chermont, o lacaio, observa a moça com curiosidade antes de voltar-se para o Capitão.

— Espero que o trajeto até aqui tenha sido afável, ó Soberano... Diga-me, foi a colheita satisfatória?

Ele, é claro, está se referindo à coleta de almas.

— Hum! – faz o Capitão, obviamente não querendo render assunto. Mas Chermont não está apto (ou finge não estar) a entender o significado dos resmungos impacientes de Davy, de modo que continua falando.

— Ora, pois dessa forma tratarei de fazer os arranjos pertinentes para O Julgamento. Julgo que a cerimônia possa ser realizada no findar do dia corrente. Julgas viável, ó Soberano?

— Hum, sim, claro.

A esta altura alcançam o fundo da gruta e Ruby sente-se agoniada pela iminente escuridão, uma vez que a luz que vem de fora não clareia toda sua extensão. Chermont eficientemente acende uma lamparina ao mesmo tempo em que o barco desliza até um pequeno atracadouro rente à parede direita da caverna. Davy desembarca, oferecendo o dedo-tentáculo a Ruby, que ergue a barra do vestido de modo a facilitar o movimento de descer na plataforma de ripas de madeira.

— Obrigada! – agradece, apanhando o balde de Ernesta, que Chermont lhe estende.

— Que curioso! – diz ele – Uma lagostinha-bebê!

— O nome dela é Ernesta – informa Ruby, ao que Chermont acha engraçado.

— Que nomezinho engraçado! De origem latina, suponho.

— Latina ou não-latina, não importa! – resmunga Davy, impacientado – Ilumine o caminho!

— Como deseja, ó Soberano!

— Por que é que não se dão ao trabalho de iluminar com archotes? – questiona Ruby, pensando que é mesmo inconveniente o fato de dependerem do brilho fraco e opaco de uma única lamparina.

— Por que é que não se dá ao trabalho de ficar quieta e parar de fazer perguntas? – retruca Davy, ao que Ruby se cala no mesmo instante.

Tendo tomado a frente, Chermont os guia pelo atracadouro até uma abertura circular alta o bastante para que os três passem sem precisarem abaixar-se. A abertura dá numa escada estreita de cinco degraus desgastados. Chermont sobe agilmente, acostumado à estreiteza e periculosidade da rocha escorregadia, enquanto que Ruby, temendo cair, busca apoio nas paredes. Atrás dela, Davy sobe vagarosamente, tendo de apoiar ambos os pés num degrau antes de mover-se para o próximo.

Após subir os degraus seguem por um pequeno túnel escavado na rocha, para então darem noutra escada, esta com o dobro de degraus da anterior. Ruby agradece o fato de haver aberturas pelas quais o ar de fora entra, pois, do contrário, já teria passado mal pelo abafamento. Ela espia por um buraco à altura de seus olhos, avistando uma das praias que vira minutos antes. Faz menção de encher o lacaio de perguntas, mas muda de ideia ao notar a expressão pouco simpática de Davy, que a esta altura parece cansado ante o esforço de subir os degraus.      

— Hum, falta muito? – arrisca a perguntar, ela mesmo estando exausta.

— Mais alguns lances de escada, bela senhorita – responde-lhe o lacaio, sorrindo afetadamente. Ruby conhece um puxa-saco quando topa com um. Ah sim, já conviveu com mordomos, lacaios, governantas e empregadas suficientes para reconhecer bajuladores. Acaba por decidir que não vai com a cara de Chermont. Sábia escolha.

— Maldito o dia em que pedi àquele ignóbil que me construísse um castelo – pragueja Davy, por fim alcançando o último degrau – Ai de mim se soubesse que espécie de gracejo aquele sacripanta ia me oferecer!

Ruby faz menção de perguntar a quem ele se refere, mas é guiada por mais um túnel, que acaba por dar numa grande e arejada galeria com vista para as montanhas. É uma sala de estar com móveis antigos e embolorados, similares aos da casa de sua querida avozinha. Atravessam a galeria rapidamente, sem que ela tenha tempo de botar os olhos em tudo. Seguem novamente por um túnel, que dá noutra escada – esta um pouco mais espaçosa que as anteriores. Enquanto se ocupam em esperar que Davy os alcance, Chermont se dirige ao seu senhor.

— Preparei o Salão do Sol como tu queria, ó Soberano. Imagino que sejam os aposentos da Senhorita Lucas...

Ruby se choca.

— Meus... aposentos...?

— Uhum! – confirma Davy, parando no meio do caminho para encará-la e divertindo-se com sua expressão de total espanto – Achou que fosse dormir naquele armário úmido e encalombado pro resto da vida?... Mas é claro que achou! – e ele retoma a subida, arfando à medida que fala – A imagem que tu tens de mim é um tanto deturpada, sabe. Bem sei que sou um canalha malvado, rancoroso e... detestável, mas tu és uma dama e eu tenho uma tendência a tratar damas como princesas... Tu eras digna de um tratamento de rainha... no entanto, todavia, porém, não tens se comportado adequadamente para com seu capitão. E é por este motivo que a partir de hoje tu terás apenas enguias cruas como refeição.

— Oh...

Tanto Davy quanto Chermont riem ante a expressão da senhorita Lucas, um misto de indignação, desgosto e desapontamento.

— Não te preocupes, estou apenas brincando! – ri-se Jones, em nada parecendo-se com aquele tirano mal-educado e escandaloso que conhecemos – Vê, Chermont, ela não sabe diferenciar mentiras de verdades. Tu necessitas aprender algo conosco. Do contrário, pode-se deixar enganar por Epílogo outra vez. E não queremos isso, não é mesmo?

Ela assente, concordando.

— Sim, senhor... No entanto, não serei tola novamente. Bem sei que foi a fraqueza emocional quem me arrastou para as garras da morte.

— E tu não serás mais fraca. Não podes mais ser fraca. É por isso que deves desabafar com tua lagosta.

 - Ainda não vejo como uma lagosta pode me ajudar. – replica a moça, lançando à lagostinha um olhar que aparenta ser de descaso. Ernesta, ainda magoada e chorosa, sequer se mexe no balde –  Mesmo que ela me responda, não sou capaz de falar lagostês.

— Tu haverás de aprender! – diz com convicção o Capitão, por fim alcançando o último degrau – Em todo caso, se não fizeres progresso com suas emoções, podemos arrancar teu coração para que deixes de sentir...

Ruby estremece. Não há dúvida de que o Capitão falou sério. Ainda que acredite ser impossível manter um humano vivo sem o coração, decide não dizer nada, temendo que o homem realmente leve aquela manobra em consideração. Acaba por distrair-se quando atravessam outra galeria, esta um pouco menor do que a anterior, mas ainda assim bastante arejada. É também uma sala de estar que comporta um velho piano e uma magnífica harpa. Ruby quase pede ao Capitão que lhe ensine a tocar esse último, mas imagina que, tendo mãos tão rudes e pouco funcionais, Davy não saiba ele mesmo como manusear tão delicado instrumento.

Seguem novamente por um longo túnel. Chermont para de súbito, fazendo uma reverência ao Rei.

— Seus aposentos, senhor Soberano. Preparei-lhe a água para o banho, como requisitado. Servirei o desjejum assim que a senhorita Lucas estiver acomodada.

— Não quero o desjejum! – diz Davy secamente, passando pela larga abertura que dá acesso aos seus aposentos – Não me importune até a próxima refeição!

  E desaparece na penumbra do quarto. Ruby tem a impressão de ser um quarto extremamente abafado, já que, aparentemente, não há aberturas amplas como nas galerias anteriores.

— Que mau gênio! – murmura Chermont, em tom quase inaudível – Acompanhe-me, senhorita!

Seguem pelo restante do túnel, que logo dá em três degraus que descem. Ruby já está enfadada de túneis e escadas, mas admite para si mesma que aquela é mesmo uma curiosa moradia. Não se pode comparar a um castelo de verdade, é claro. Mas tem sua pompa, devemos reconhecer.

Por fim, após mais alguns metros de túnel, param diante de um buraco ovalado de mais ou menos um metro de altura. Chermont coloca no chão a lamparina, ao mesmo tempo em que, teatralmente, presta reverência à Ruby.

— Seus aposentos, bela dama!

Ela se abaixa de modo a passar pelo buraco. Sobe três pequenos degraus e, com espantosa surpresa, deleita-se com a visão de seus aposentos. Trata-se de um primoroso salão, ricamente mobiliado e com vista privilegiada para as montanhas.

— Oh, meu Deus! – exclama ela, olhando embasbacada para o lacaio, que entrara depois dela – Tudo isto para mim? Pois não mereço tanto...

— O Soberano deu ordens expressas de que devia acomodar-lhe no melhor quarto do castelo. Faça-se em casa, acomode-se e deleite-se com a vista. Trarei em minutos teu desjejum.

Ruby balbucia um agradecimento, mas o lacaio já se fora. Depositando o balde de Ernesta a um canto, sua primeira ação é atravessar o quarto em direção à grande abertura à guisa de janela. Enfia a cabeça por ela, deliciando-se com a brisa que lhe acaricia o rosto. Há um ninho de pardela numa reentrância mais abaixo. Ruby lembra-se de ter visto uma ilustração no diário de viagem de seu pai, recordando-se do nome da ave. Avista outras dezenas de pássaros à distância, todos envolvidos em suas atividades matinais.

Encontra-se a uma altura de mais ou menos quinze metros, o que é o bastante para lhe dar uma vertigem quando olha para baixo. Logo vem a se acostumar, no entanto, após passar longos minutos admirando a paisagem. Dali vê-se as esculturas-paralelepípedo, que para Ruby não fazem sentido algum. Mais além, vê pela primeira vez uma ilhota rochosa e, alguns metros depois dela, um arco grande de pedra. Pensa que deve haver algo mais entre as montanhas e o arco, mas as esculturas verticais de paralelepípedos obstruem sua visão.

Chermont a assusta quando entra de súbito. Traz numa mão uma bandeja de prata e na outra a cestinha que, na afobação de desembarcar, ela esquecera sobre um barril no convés.

— Seu desjejum, senhorita! – diz ele, depositando a bandeja sobre a mesinha redonda próxima à janela – E sua bagagem.

Se é que aquela cestinha puída podia ser chamada bagagem.   

— Obrigada. – agradece ela, timidamente acomodando-se à cadeira que o lacaio puxara – Chermont, não?   

— Corretíssimo, bela dama! Conrade Chermont, mordomo a seu dispor! – e, tal qual um cortês cavalheiro, ele lhe deposita um beijo na mão.

Ruby enrubesce. Era quase como se ele soubesse que, em pensamentos, ela chamava-o lacaio. Mordomo é quase um pronome de tratamento, comparado à indigência da palavra “lacaio”.  Chamemo-lo mordomo então.

— O Soberano deixou-me no escuro no que diz respeito aos teus hábitos alimentares, senhorita, de modo que lhe trouxe o que o cozinheiro Jefferson preparou. Coloco-me à disposição de transmitir-lhe suas indignadas reclamações, se for o caso.

Jefferson. Ruby precisa mesmo falar-lhe. Mas nada há do que reclamar, pois o gentil francês lhe preparou uma agradável refeição. Ruby sequer se lembrava da última vez em que comera, tal fora a emoção da noite anterior, bem como sua chegada ao Reino. Descobrindo-se faminta, por pouco não se serve por si mesma, de modo a abarrotar o prato. Deixa que Chermont o faça, no entanto, pois não quer passar por esfomeada na frente do homem.

Há dois grandes ovos cozidos, uma omelete de ervas, pão de centeio, uma taça de leite, uma taça de vinho, uma taça de água, biscoitos de flor-de-laranjeira e uma generosa porção de cidras em conserva. Tudo isso servido em uma aparelhagem de chá de porcelana chinesa, como a que Karolyn se orgulhava em exibir quando em presença das amigas. A diferença é que esta é mais antiga e desgastada.

Chermont se pôe a tagarelar, enquanto Ruby revira os olhos e deseja que ele a deixe a sós. Logo descobre que o mordomo é um charlatão inconveniente com alta inclinação para fazer sugestões não-requisitadas.

— Tratarei de cuidar para que se alimente de forma adequada, bela dama. Fui mordomo em mansões de alta linhagem e estou mais do que familiarizado com os costumes alimentares da nobreza. – ele sorri orgulhosamente, certificando-se de servir à Ruby uma porção razoável de cidras – Certamente os boatos são verdadeiros: a senhorita descende de uma linhagem de nobres ingleses. De fato, vê-se por seu tom de pele que trata-se de uma dama aristocrata! Todavia, perdoe-me dizer, não está vestida de acordo. Cuidarei para que as ninfas lhe costurem vestimentas mais apropriadas. – pomposamente, ele abre as portas de um grande guarda-roupa de mogno, deixando à vista uma série de vestidos – Por hora, o Soberano manda dizer que estes vestidos são para seu usufruto. Vê-se que são, tampouco, decentes para a dignidade de uma dama como a senhorita, mas haverão de convir, por enquanto.

Ruby assente, depositando um pedaço da omelete sobre uma fatia de pão.

— Obrigada por preocupar-se, Chermont, mas não preciso de novos vestidos quando há tantos à disposição.

— Oh, pois não pense assim, bela dama! – afeta-se o mordomo, como se Ruby tivesse dito um ultraje – Estou aqui para servir-lhe e aconselhar-lhe, e digo que tais peças de roupa não se adequam à tão bela senhorita. Julgo prudente dizer isto ao Soberano, uma vez que ele não parece se atentar ao fato de que estas vestimentas emboloradas e desgastadas não lhe caem bem.

Ruby enfia metade de um ovo na boca, de modo a mantê-la ocupada. Mastiga vagarosamente, evitando responder ao mordomo de forma atrevida. Agora ele se ocupa em lustrar os móveis – já muito limpos, devo dizer – enquanto Ruby passa os olhos pelo aposento.

Além do guarda-roupa, há uma pesada cama de dossel com um colchão mofado e cheio de furos; uma penteadeira de espelho ovalado e rosas entalhadas; dois criados-mudos, cada um portando um abajur de bronze com cúpula de vidro; um grande baú de cedro; um espelho grande; uma escrivaninha; uma estante de livros; uma tina de banho; um penico; um biombo ricamente decorado; um divã; a mesinha redonda, que comporta quatro cadeiras; e, por fim, uma formação rochosa parecida com uma fonte de jardim, que é na verdade uma espécie de bacia à guisa de pia.  

— Quem dormia aqui? – pergunta Ruby à Chermont, pensando que talvez tivesse sido o quarto da amada de Davy.

— Ninguém, bela dama! Este quarto nunca foi habitado, a senhorita é a primeira a ocupá-lo.

Ora, pois Davy fora extremamente gentil ao oferecer-lhe tão lindo quarto. Ruby deve lembrar-se de agradecer-lhe com delicadeza, uma vez que nem mesmo no Solar Wade ela tivera tão amplo e arejado aposento. De fato, aquele salão era duas vezes maior que seu antigo quarto. Sir Victor sempre dissera a Karolyn que Ruby devia ocupar o quarto de hóspedes, visto que era mais confortável e luxuoso. É claro que ele pensava apenas em si próprio, já que assim dormiria mais perto da enteada, o que facilitaria suas investidas sobre a mesma. Graças aos céus, Karolyn nunca considerara que Ruby devesse mudar de aposento.

— Oh, devo avisar-lhe, senhorita, que este colchão não está adequado, de forma que em algumas horas será trocado – diz Chermont, cutucando com o indicador o embolorado colchão – Julguei melhor deixá-lo aí por enquanto, pois uma cama mofada é tão melhor do que uma cama sem colchão.

Ruby assente, terminando a refeição. Não deixara para trás um resquício sequer de comida. Chermont arregala os olhos, como se esperasse que uma dama não fosse capaz de devorar tanta coisa. Sai levando a bandeja e retorna com um balde maior para Ernesta. Ruby estava mesmo sendo uma mãe relapsa, uma vez que até se esquecera da lagosta.

— Oh, meu Deus, acho que ela morreu! – assusta-se ela, colocando a mão no peito em ar de culpa – Não se mexe! Pobrezinha, bem soube que não fosse sobreviver em minhas mãos.

Chermont cutuca a lagostinha com o indicador, depois apanha-a cuidadosamente, examinando.

— Senhorita Lucas, esta lagosta está profundamente magoada! – conclui – Diz ela que a senhorita a rejeitou e que prefere viver sozinha a viver abandonada.

— Oh, pobrezinha! Pois diga a ela que não fiz por mal!

— Ela é capaz de entender absolutamente tudo o que a senhorita diz. Pois, neste exato instante, está a me dizer que a senhorita expressou o desejo de ter uma lontra de estimação ao invés de uma lagosta.

— Ora, pois é mesmo verdade! Pobrezinha, eu não quis magoá-la... Na verdade, achei que não estivesse apta a compreender nosso idioma.

Chermont deposita Ernesta no balde maior. A pobre órfã se anima um pouco, mexendo as anteninhas.

— Senhorita Lucas, todos os animais estão aptos a compreender-nos. – esclarece – Todavia, não estão aptos a estabelecer comunicação de volta. Terás de compreender lagostês se quiser estabelecer diálogos.

— E quem haverá de me ensinar?

— O Magnânimo Soberano!

Claro. Óbvio. Quem melhor do que Davy, que todas as línguas compreende? Mas Ruby bem está pensando que o Capitão não terá a pachorra de ensinar-lhe. Conhecendo-o tão pouco, ousa dizer que sairá das aulas dez vezes mais surda e setenta vezes mais traumatizada. Não diz nada, no entanto.

Quando o mordomo finalmente pede licença para se ausentar, Ruby explora o quarto, admirando o que agora é seu. A mobília é toda díspar, sendo cada móvel de uma época. É tudo muito velho e desgastado, como se houvessem sido usados por gerações. E talvez fosse o caso.

Com exagerado horror, Ruby choca-se com sua aparência no espelho. Está mais pálida do que de costume e com olheiras escuras sob os olhos inchados. Seus cabelos viraram um emaranhado e sua pele está um tanto cinzenta, devido ao ressecamento e choque da noite anterior. Também seu vestido encontra-se em péssimo estado, amarrotado e poeirento.

Decide preocupar-se com sua aparência após um merecido cochilo. Encolhe-se toda no divã e espera pacientemente até que o sono venha. Um halo de luz reflete a água da bacia no teto, criando formas abstratas e brilhantes. Ruby pensa que faria bom proveito da luz natural se tivesse em mãos suas telas de pintura. Pintaria maravilhosas paisagens, inspirada pela visão natural de sua janela. Com esse pensamento, logo adormece, mal percebendo que, encarapitada no guarda-roupa, uma gaivota a observa.

***

  De susto Ruby desperta. Esfrega os olhos vigorosamente ao mesmo tempo em que arreganha a boca num longo e preguiçoso bocejo. Pasma-se ao descobrir que o sol está se pondo. Dormiu por cerca de onze horas e lembra-se de ter tido um sonho engraçado com Davy: ele não era mais um deus, mas um polvo amarelo que ela carregava num chapéu de grandes abas. Ri consigo mesma e espreguiça-se toda antes de levantar-se. Lá fora se passa um rebuliço: as quinze ninfas tresloucadas perseguem dezenas de pássaros, que aos trancos e barrancos tentam voar para longe, mas acabam trombando uns nos outros e caindo. Ruby assiste à cena sem entender o que se passa, até que uma das ninfas a avista e acena.

— Ooooiiiii!

As outras quatorze a imitam, o que dá aos pássaros a chance de escaparem. As quinze guincham em indignação e, ignorando Ruby completamente, saem correndo atrás de uma gaivota desavisada. Nossa protagonista bem parece entretida, mas tem a atenção desviada quando a voz de Davy brota pela porta.

— Vejo que a confusão de minhas filhas por fim fez o papel de despertá-la.

Ruby se assusta e vira-se na direção da voz. Só consegue ver as pernas e metade da pança de Davy, uma vez que ele é obeso demais para conseguir passar pela abertura.

— Boa tarde, Capitão!

— Boa tarde, senhorita! Vim convidá-la a cear comigo.

— Estou inclinada a recusar seu convite – Bem preferia comer sozinha, para variar. Mas percebe que foi mal-educada e pensa que tal atitude é injusta com Davy, depois de sua gentileza em oferecer-lhe aquele quarto – Desculpe, eu não quis... Eu aceito o convite! 

— Ótimo! O jantar será servido em meia hora – e com o toc, toc da perna de pau ele se afasta.

Ruby tem tempo suficiente de pentear os cabelos, lavar as mãos e o rosto na bacia e enfiar-se num vestido salmão. Calça um par de sapatos da mesma cor, que por sorte servem-lhe muito bem. Encarando-se no espelho, sente-se bonita, embora completamente ao natural, uma vez que não trouxera suas maquiagens. Passados exatos trinta minutos, Chermont surge á porta.

— Bela dama, estás lindíssima! Devo admitir que, ainda que inadequado, este vestido faz jus às suas curvas. Quão bela! Quão elegante!

E Ruby só consegue balbuciar um agradecimento tímido, enquanto tenta controlar o rubor que lhe sobe as bochechas. Guiada por Chermont, é levada ao encontro de Davy (como se ela fosse incapaz de chegar aos aposentos do Soberano por ela mesma), que, sentado à cabeceira da mesa de jantar, olha-a de cima a baixo.   

— Boa noite, senhorita! Estás muito elegante neste vestido. Bem disse-lhe, Chermont, que a senhorita Lucas faria jus a qualquer vestimenta que usasse.

Ora, ela seria bonita até mesmo se trajasse um saco de batatas. E não é espantoso o fato de Davy reconhecer isso? Bem, ele ainda é um homem, no fim das contas. É de se esperar que tenha olhos para Ruby.

— Queira se sentar, bela dama! – Chermont puxa a cadeira à outra cabeceira para Ruby, mas Davy se opõe.

— Aí não! Aqui! – e indica a cadeira à sua esquerda.

— Como deseja, ó Soberano! Acomode-se, bela dama! Trarei em minutos a vossa ceia. Com sua licença!

Assim que o mordomo se afasta, Davy comenta com ar de desgosto.

— O excesso de cortesia me enoja... Diga-me, senhorita, são assim todos os mordomos?

— Não, senhor! Os que conheci tratavam-me com polidez, mas não eram assim tão engessados.

— Engessado – ri Davy – Bem estava à procura de uma palavra que definisse Chermont.

Ruby nada diz e acabam por mergulhar num silêncio sepulcral. O quarto de Davy, menor e menos arejado que o seu, a incomoda. A iluminação vem de um único castiçal de bronze sobre a mesa, o que dá ao aposento uma agonizante aparência. A impressão que se tem é a de estar numa caverna sem saída. Ruby está pensando que é o mesmo que ser encerrado numa tumba.

Pela luz difusa das velas, consegue ver os contornos de uma cama como a sua, bem como os de uma escrivaninha e de um espelho coberto por um lençol carcomido. Pensa em perguntar à Davy por que o espelho está tapado, mas acha que já sabe o motivo. Acaba por julgar prudente não dizer nada.

Chermont, Jefferson e Smee surgem trazendo grandes bandejas. O cozinheiro não dosara a mão, preparando um senhor banquete. Obviamente que um homem com os parâmetros de Davy não era fácil sustentar, ainda assim, Ruby achava que havia comida em demasia.

— Vocês podem se retirar – fala secamente o Senhor dos Oceanos. Ao que Chermont franze a testa, fazendo menção de começar a servi-los. – Os três! Tratarei eu mesmo de servir-nos.

Ruby agradece mentalmente, pois não estava mesmo disposta a aturar o interminável falatório do mordomo. O Capitão lhe pergunta gentilmente o que é que ela gostaria de comer, mas se atrapalha um pouco, devido ao fato de suas mãos serem rudes e pouco funcionais. Ruby acaba servindo-os e, por algum tempo, nada se ouve além do crepitar das velas e do tilintar dos talheres. Davy só torna a falar quando faz um comentário pouco educado.

— Mas que bosta de pão! Vou reclamar com aquele cozinheiro! Vê só, a minha própria bunda é mais macia do que esta merda.

— Só está um pouquinho ressecado – opina Ruby, bebericando vinho – Em compensação, a pardela ao rum está divina.

— Se tu dizes... Vou experimentar um pedacinho, pode servir-me?... Obrigado! Coma um lagostim, talvez venha a gostar. 

 O tópico “comida” sempre rende longas conversas. Quando Ruby muda de assunto é para agradecer.

— Foi bondade tua oferecer-me um quarto tão amplo e iluminado. Muito obrigada!

— Não há de quê! – responde Davy de boca cheia e Ruby pensa ter visto um meio sorriso formar-se em seu rosto.

— Só não entendo por que é que o senhor me oferece tão mais do que eu mereço, quando teu aposento é tão lúgubre e abafado.

Davy a encara por uns segundos, antes de voltar sua atenção para a lampreia em seu prato.

— Não gosto do sol, mas presumi que a senhorita gostasse, uma vez que a observei sentar-se no convés para banhar-se nos raios de luz da manhã.

— Realmente, foi uma grande gentileza. Ainda assim, parece-me um tanto injusto que o senhor opte por este aposento, quando certamente há outros mais bonitos e arejados.

— Como o diz, é uma opção.

E dá o assunto por encerrado.

Ruby teme ter chateado o homem. Espera alguns minutos antes de perguntar o que anda louca para saber.

— Capitão... – começa, meio sem saber como fazer aquele pedido. Davy faz “Hum?”, virando de um só gole sua taça de vinho – Eu estava pensando... haveria alguma forma de eu descobrir que fim levaram minha madrasta e meias-irmãs?

— Bem, teríamos de contatar o Senhor Continental ou alguma das ninfas terrestres...

— Ah...

— Mas isto é facilmente arranjado – ele pigarreia e brada para o ar – Ó, ninfa mensageira, eu a invoco!

Em menos de dez segundos, uma das ninfas que Ruby vira mais cedo surge de pé ao lado do Soberano. Ao contrário da Oceânide Nerissa, não precisa locomover-se junto com o oceano, assim evitando a inundação do ambiente. De qualquer forma, deixa partículas de umidade por onde passa.

— Sim, meu senhor? – comportadamente, presta reverência ao pai.

— Ninfa, presta muita atenção nas palavras de teu senhor. Parta em direção ao continente e procure informações acerca do destino da senhora...

— Karolyn Wade – informa Ruby.

— ...Karolyn Wade e suas filhas. Vá num instante e não ouse desviar rota para brincar com golfinhos.

A expressão da ninfa denuncia que ela estava exatamente pensando nisso. Porém, torna a fazer uma reverência e desaparece tão rápido quanto surgira.  

— Quanto tempo vai demorar? – questiona Ruby, curiosíssima (e também preocupada) em saber o que ocorrera à família.

— O tempo que for necessário!

— Obrigada!

— Não tem de quê... – ele se demora observando-a, a ponto de Ruby corar fortemente, constrangida – Está com aquela expressão de quem quer me encher de perguntas. Diga lá, tudo para satisfazer sua curiosidade.

Ruby ri, por pouco não se engasgando.  

— Eu só estava pensando nos seus filhos. Como é que nasceram as ninfas? São semi-humanas também?

— Nasceram do meu sangue, derramado na espuma do mar. Não diria que são semi-humanas, uma vez que são espíritos da natureza. Vê como são tapadas? Não, em nada se assemelham à minha querida Nerissa, que ao menos tem um cérebro.

— Nerissa é sua preferida, não?

— E como não haveria de ser? Os primogênitos são sempre os preferidos.  

Ruby acha que não se pode generalizar, mas está pensando em Madge, que com certeza é a preferida de Karolyn. Sente, porém, que Davy tem seus motivos em fazer aquela afirmação.

—  Diz isso porque tem um irmão mais velho? – indaga, arrependendo-se um segundo depois, pois Jones contorce o rosto numa careta desgostosa.

— Tinha. Já morreu há tempos, naturalmente.

— E era ele o preferido?

— Era. E não, não digo isso por ciúmes. Quer passar para a próxima pergunta?

Ruby devia lembrar-se de não voltar a tocar no assunto.

— E aquela lula... Lucerna, não? É mesmo sua filha?  

— Mas é claro!

— Quer dizer que o senhor...

— Eu não tive relações sexuais com uma lula! Ora essa, como podes pensar isso de mim?

Ruby só consegue rir, não podendo conter-se.

— Eu não disse nada, foi o senhor quem presumiu. Em todo caso, não posso imaginar outra explicação para o senhor ser pai de uma lula.

— Lucerna nasceu de uma experiência – explica ele, um pouquinho perturbado por imaginar-se transando com uma lula – Misturei meu sangue ao de uma lula, por pura curiosidade. Pois então, nasceu aquela criatura gigantesca. Inteligentíssima, como a senhorita veio a testemunhar. É ainda muito jovem e imagino que criaturas mutantes tenham desenvolvimento mais lento, mas digo-lhe que tenho pretensão de ensinar a ela a nossa língua. Tem potencial para realizar grandes feitos.

Ruby assente, concordando. Serve a si mesma mais uma dose de vinho e para o Capitão uma dose de rum.  

— E aquela criatura que o senhor disse ser seu neto?

— Melville. É filho de Lucerna com o Kraken. – ele ri ante a surpresa de Ruby – Ah sim, os dois são amantes, ainda que Lucerna seja uma criança.

Logo se vê que a inusitada criatura só podia ser mistura de outras duas anormalidades.  

— E o Kraken, também é seu filho?

Jones balança a cabeça, fazendo croc, croc ao mastigar as entranhas de um caranguejo. Contém um arroto antes de falar.

— Não, o Kraken é meu fiel companheiro. Criei-o a partir da mistura de um polvo com uma lula. Não tive intenção de transformá-lo num monstro, mas não tendo domínio sobre meus poderes, acabei criando um mutante raivoso, uma máquina de matar. Felizmente, a mim ele obedece, de modo que, quando cai em sono profundo, acalma-se e é facilmente controlado.

Ruby sequer pisca, envolvida pelas recentes descobertas.   

— Quer dizer que o senhor tem uma inclinação para a ciência?

Devo dizer, Davy adora a atenção. É por isso que ele se dispõe a responder os intermináveis questionamentos da senhorita Lucas.

 - Sim, sempre tive. Quando criança sonhava ser alquimista, transformar nossas míseras moedas em ouro. Mais tarde, tendo ingressado na pirataria, interessei-me por astronomia. Atualmente me ocupo em realizar experiências em meu laboratório.

— Um laboratório! – Ruby quase salta na cadeira, afoita – Posso ver?

— Certamente, mas amanhã. Tenho ainda muito o que fazer. A senhorita, acredito, participará da cerimônia de Julgamento.

— Claro! Estou curiosa.

— Realizar-se-á à meia-noite em ponto. Tem ainda algumas horas livres, de modo que sugiro-lhe que use-as para qualquer coisa, menos explorar o castelo. Chermont a levará para um tour amanhã pela manhã. Não ouse desobedecer ou não me responsabilizo pelo o que possa lhe acontecer nestes túneis escuros.

— Eu nem sonharia em desobedecer-lhe, Magnânimo Soberano!

É claro que Davy não acredita nela, mas finge concentrar-se nas cidras em conserva.

***

Seguindo o túnel em direção aos seus aposentos, Ruby pensa no que haverá de fazer de modo a passar o tempo. Pensa em folhear os livros, observando as ilustrações, uma vez que não é capaz de lê-los. Talvez esboce um desenho, mas tem a certeza de que não fará seu melhor à luz de velas. Porém, tão logo passa pela porta e sobe os três degraus, depara-se com uma cena peculiar (como tudo naquele Reino): quatorze ninfas, um pedaço comprido de tecido e um montículo de penas. Ao avistá-la, bradam um “ooooooiiii” conjunto e correm a abraçá-la, tagarelando feito papagaios de pirata.

Tão logo a agitação por sua chegada diminui, Ruby questiona.

— Que é que fazem com estas penas?

— Um colchão novo para a senhorita – responde uma delas.  

— A mando de papai – complementa outra.

— Por isso perseguiam os pobres pássaros! – A moça abana a cabeça, mostrando indignação. Imita as ninfas ao sentar-se no chão perto da cama, cruzando as pernas – Por que não cataram penas soltas?

— Ora, e a senhorita acha mesmo que encontramos mais do que uma centena delas?

— Oh não, senhorita, foi preciso criarmos rebuliço para que conseguíssemos grande quantidade.

— E veja só, há penas suficientes para um colchão e um travesseiro.

— Bem, então devo agradecê-las por tanto trabalho – sorri Ruby, sentindo um calorzinho no coração, pois não está acostumada a receber tantas gentilezas de uma só vez – Eu tinha um colchão de penas em minha casa, tenho sentido falta dele desde que fugi.

— A senhorita fugiu?! – gritam seis ninfas ao mesmo tempo.

— Por quê?! – questionam as outras oito.

— Bem, é uma longa história... – uma que ela não gostaria de repetir.

— Oh, estamos dispostas a ouvir, adoramos histórias, quanto mais longa melhor.

— Sim! Sim! Quanto mais longa melhor! – falam em coro as ninfas e caem no riso logo em seguida.

Mas conforme Ruby narra seus infortúnios, as ninfas desatam a chorar de tristeza. Logo estão abraçadas umas às outras, incapazes de emitir um pio, atentas que estão à fala da moça.

— Ora, pois não chorem! – diz Ruby, ela mesma segurando as lágrimas – O pior já passou e meu sofrimento por fim findou-se.

— Pobrezinha! Tu mereces um futuro de muita alegria.

— Nos dispomos a ser suas irmãs, se assim quiseres.

— Oh, quanta bondade! – ela enxuga uma lágrima – Davy Jones realmente é sortudo por ter filhas tão gentis.

— Ah sim, ainda que ele não admita!

O tópico da conversa muda imediatamente.  

— Sinto falta de brincar com papai... Ele anda tão rabugento!

— Do que brincavam? – pergunta Ruby.

— De espirrar água um no outro. Nos divertíamos um bocado!  

— E construíamos castelos de areia!  

— E perseguíamos juntos os pássaros, apenas pela diversão de vê-los fugindo para longe.

A moça fica com pena. Ela bem entendia o quão frustrante era não ter com quem brincar.

— Quanto tempo faz isso? – indaga.

— Iiih, faz mais de um ano!

— Nada disso, faz mais de um século!

— Dois séculos, eu diria!

— Um milênio! – exclama convicta a ninfa menorzinha e as outras explodem a rir.

— Não seja boba, papai só é Rei há quatro séculos.

— Bem, talvez pudéssemos brincar então... – sugere Ruby, pensativa – Nunca brinquei com minhas irmãs, mas gostaria que elas compartilhassem comigo suas bonecas.

— Bonecas? Que são bonecas?

— Miniaturas humanas – explica, embora tenha certeza de que elas não irão entender –Costuma-se fingir que são nossas filhas, mas, naturalmente, são apenas brinquedos.

— Aaaah... – faz a menorzinha – Não entendi!

Ruby gargalha, o que leva todas a imitarem. Logo estão rolando de rir e Ruby tem a ideia de jogar as penas para o ar. Dali nasce a brincadeira e, esquecendo-se da tarefa de fabricar o colchão, põem-se a girar de mãos dadas, em meio as penas que caem. Ficam nisso por algum tempo até que, exausta e vermelhíssima, nossa protagonista se deita no chão, arfando por ar.

— Eu não me divertia assim há séculos! – confessa, em meio à falta de fôlego.

— Vamos brincar de novo?

— Não vê que a Ruby está cansada? Amanhã tornamos a brincar.

— Mas assim teríamos de arranjar mais penas...

Ruby torna a se sentar de pernas cruzadas, ainda respirando com dificuldade.

— Oh, por favor, não tornem a incomodar os pássaros, coitadinhos. Tenho uma ideia melhor: podemos inventar uma nova brincadeira a cada dia. Assim não nos cansamos das mesmas coisas.

Sugestão que é amplamente aceita pela população de criaturas aquáticas. Elas bradam em coro, fazendo uma algazarra dos diabos.

— Boa ideia! Boa ideia!

— Genial!

— Apoiado! Apoiado!

— Viva a Senhorita Lucas!

— VIVAAAA!

E tornam a gargalhar sem motivo, ao mesmo tempo em que saem a recuperar as espalhadas penas.

Jones, que tudo ouvira, sorri para si mesmo. Começara uma revolução no Reino Áqueo.


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