Lord Of The Seas escrita por Mrs Jones


Capítulo 5
Eu Sou a Oceânide


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas que querem me matar! Eu sei que mereço uns tabefes na cara, mas por fim retornei da Terra dos Autores Relapsos com mais um capítulo. Minhas sinceras desculpas! Essa fic é difícil de escrever e eu não estava inspirada o suficiente. Talvez achem o capítulo cansativo, mas era necessário para o decorrer da história. Dei meu melhor e espero que apesar de tudo vocês gostem. A fic fez um ano no último dia 14, queria ter feito algo especial em comemoração, mas a falta de tempo não me permitiu. No mais, quero agradecer a todos que leem e deixam comentários sempre que podem. Muito obrigada, vocês são demais! ♥ Aproveitem a leitura e assim que possível retorno com o próximo capítulo!
(OBS.: Eu imaginei o Jared Gilmore como a Brisa Marítima e a Joanna Garcia como Janevra Jean, mas vocês imaginem como quiserem).



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— FERVAM ÁGUA PARA UM BANHO! DEPRESSA!

— Que aconteceu, Capitão?! – os olhos de Baiacu estão quase do tamanho de cebolas. Não é nenhum exagero. É que ele se encontra em estado de extremo horror e espanto.

— O que tu acha?! – cospe Davy para seu subalterno, ao mesmo tempo em que maceta o chão com força, em seu caminho até a cabine – Ela quase a matou!

Estão a atravessar o convés semi-iluminado. Homens-peixe se ocupam em acender as lamparinas; há no ar um cheiro nauseante e pestilento, que, à primeira vista (ou primeira cheirada), parece ser o tipo de odor que escapa de um cardume de peixes podres.

— Meu Deus do céu, que perigo! – num gesto quase involuntário, Smee bota as mãos no rosto espinhento, afastando-as um segundo depois, grunhindo pelas espetadas.

— É tudo o que tem a dizer?

— É-é-é que estou em estado de choque, Capitão. Que posso fazer pelo Senhor?

— VÁ APRESSAR AQUELES MOLENGAS! EU TENHO QUE DIZER TUDO?

— M-mas, Capitão... nosso estoque de água doce está quase pelo fim...

— NÃO ME INTERESSA! EU MANDEI FERVEREM A PORRA DA ÁGUA, ENTÃO MOVA TEU TRASEIRO CRAQUELENTO E VÁ APRESSAR AQUELAS LESMAS DE FOSSA!

(No vocabulário de Davy Jones, craquelento significa coberto por cracas).

Smee assente veementemente e sai numa corrida desembestada, cambaleando um pouco ao alcançar a escada de acesso ao andar inferior. Davy parou no meio do caminho. Está agora erguendo a senhorita Ruby acima da borda do navio. O vômito desce em queda livre, feito uma cascata amarelo-alaranjada-meio-esverdeada-com-traços-de-vermelho-e-branco. Ela arqueja, agonizando enquanto sufocada pelos próprios fluidos, que lhe escapam pela boca e narinas. Davy dá nela um chacoalhão tão forte que, pasmem, faz todos seus ossinhos estalarem.

— CESSEM O USO DO ÓLEO! – ordena aos quatros ventos – A SENHORITA LUCAS ESTÁ ENJOADA!

Ora, é que o tal cheiro nauseabundo, que parece vir de peixes podres, nada mais é do que o odor acre do óleo de baleia. Resumindo: aquele óleo de baleia foi retirado da cabeça de uma cachalote, morta por baleadores (também conhecidos como baleeiros). E você me pergunta: o que são, afinal, baleadores? E eu lhe respondo, meu caro: baleadores são aqueles que praticam a baleação. E baleação nada mais é do que a caça de baleias.

E como aprendemos no capítulo anterior, óleo de baleia serve (ou pelo menos servia) como, entre outras coisas, combustível para lamparinas. (Agradeça pela eletricidade que ilumina sua lâmpada. Imagine o quanto você vomitaria se necessitasse usar óleo de baleia todo santo dia.)

Em todo caso, isso não vem ao caso agora. Porque o caso que vem ao caso é outro caso.

Davy abre a porta da cabine com um mega chute que quase a arranca das dobradiças (é realmente uma sorte ele não ter aberto um buraco na madeira, visto a situação instável em que a mesma se encontra). Em seus braços, uma Ruby tremelicante ainda regurgita o que lhe foi tragado pela boca e narinas.

Pausa para poesia: O vômito multicolorido é uma asquerosa mistura de água de fossa e bacalhau não digerido. É um vômito quase infinito, muito fedido. Que serpenteia do estômago para o esôfago e bombardeia seus sentidos. Ah, meu olfato impregnado pelo fedor pútrido desse vômito. Oh, meu tato contaminado pela consistência maleável desse vômito. Ah, minha visão embaçada pelos espasmos que expulsam esse vômito. Oh meu paladar enojado pelo azedume desse vômito. Oh, ah, oh, minha audição está afetada: ouço vozes, ouço gritos, ouço o mar, ouço zumbidos. Meu pulmão está entupido. Oh meu senhor, sobreviverei?

Retomemos a narrativa...  

A pobre Ruby se contorce feito um guaxinim que se sentou no formigueiro de saúvas. A diferença é que não há saúvas, há bacalhau não digerido (e um ou outro grão de ervilha. É que nesse dia Ruby se fartou de bacalhau ao molho de ervilhas e acabou por engolir algumas sem mastigar). E como se as inúmeras poças de vômito multicolorido não fossem suficientes, há uma trilha pegajosa e fétida por todo o caminho da fossa até os aposentos do capitão.

Eu normalmente não narraria uma cena dessas. Principalmente quando tenho em mãos uma tigela de carne de porco assada e uma garrafa do melhor vinho da adaga privativa de Davy Jones (roubei quando ele não estava olhando, porque sou dessas). Mas temos de levar em conta, meus caros, que, afinal, Davy muito pouco se importa com os resquícios pútridos que deixou para trás. Convenhamos, não será ele a limpar aquelas tábuas.

Em todo caso, aconselho que fique fora do caminho de Jones, pelo menos enquanto ele se concentra na árdua tarefa de purificar a Senhorita Tremelique, digo, a Senhorita Lucas. Por mais que eu tenha ânsia de vômito por pensar nestas coisas ao me alimentar, devo lhe dizer que a coisa está feia para o lado de nossa querida protagonista. Imaginem vocês que a água de fossa lhe chegou a um pulmão. É por este motivo que a coitada tosse feito um porco com catarro na traquéia. (Eu não devia pensar em um porco engasgado enquanto me farto de carne de porco... Em todo caso, não pude evitar.)

Pobrezinha... Está a respirar por um pulmão só, que também não está lá muito bom, para falar a verdade. É de se esperar também, é claro, que uma quantidade considerável de água tenha lhe chegado ao estômago. É por esta razão que a coitadinha está a botar as tripas pra fora.

Eu não gostaria de dizer isso, mas... me parece que ela vai precisar de uma lavagem estomacal.

Agora eu lhe pergunto: como é que farão isso em pleno século XVIII?

— SMEEEEEEEEEE! SMEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!

(Sabe, eu aconselho que usem abafadores de orelhas, para protegerem seus pobres tímpanos)

— Sim, Cap? – Baiacu entra arfante.

— Por que é que demorou tanto, traste?

— E-e-eu estava cuidando da água quente, como o senhor mandou. Os rapazes já estão subindo com...

— Tá, tá, tá! Mova teu corpo gordo até aqui!

O até aqui ao qual Davy se refere é a mesa retangular no centro da cabine. A mesa em que Ruby está estirada de bruços, botando as tripas pra fora. A mesa que, mais tarde, servirá de maca operatória.

— Coitadinha! – faz Smee, consternado pela situação da moça – O senhor quer que eu a banhe, Capitão? Sinto que seria melhor se isto fosse feito por uma mulher, mas já que...

— Escute o pulmão dela! – interrompe o Capitão, agarrando seu subalterno pelo pescoço e forçando-o a abaixar-se de modo a apoiar um dos ouvidos às costas da moça. Smee se mantém um tanto distante, tanto para não correr o risco de espetar a garota com seus espinhos faciais quanto para evitar contaminar-se com a água de fossa que lhe encharcou o vestido.  

Ah, estão ouvindo? Notem esse estranho ruído... Parece o chiado distante de uma chaleira entupida... Uh! Que coisa mais estranha! Não parece um Darth Vader asmático da terceira idade? Ora, pois não há duvidas! O pulmão esquerdo está obstruído por 200 mililitros de água de fossa!

 Mas Smee não está apto a identificar pulmões obstruídos.

— Não sei dizer, Capitão... Me parece que a pobrezinha só está cansada pelo esforço de botar os bofes pra fora.

— Não, seu idiota, escute direito! Me parece que o pulmão esquerdo está entupido, mas não tenho certeza.

Smee leva um tempo tentando avaliar o tal som de pulmão entupido (que soa como um Darth Vader asmático da terceira idade). Tenta no outro ouvido. Nada. Tenta o outro. Nada. Tenta o outro. Nada. E nada. E nada. E nada.

Conclusão: Smee está meio surdo.

— Acho que minha capacidade auditiva não está lá muito boa, Capitão – desculpa-se ele, meio receoso, porque espera pela reação explosiva de seu superior. Todo encolhido, surpreende-se quando a resposta que vem é a seguinte:

— É a idade, Smee, é a idade... – ri-se o outro – Eu desconfiava, sabe... Tu só me escuta se berro pro navio inteiro ouvir.

Eu não estranharia se, de repente, toda a tripulação começasse a se queixar de ensurdecimento...

Em todo caso, o caso agora é outro caso.

— Receio não haver outro modo de fazer isso, senhorita Lucas – diz o Capitão, em voz baixa e calma – Receio não haver maneira melhor de salvá-la. Temos de desentupir o pulmão afogado!

— O QUÊ?

— Olhe a língua, senhor Baiacu! – ralha Davy, não muito zangado – Sou o único que tem a permissão de gritar a bordo deste navio.

O único com permissão para destruir tímpanos, você quer dizer.

— Como eu disse – continua ele, em postura ereta, metido a sabido e superior –, não há maneira melhor de salvarmos esta senhorita. E não vou permitir que morra sob minhas vistas. Ora essa, até parece que tu não me conhece, Baiacu.

— M-mas, Capitão... A coitadinha poderia morrer durante o processo de esvaziamento do pulmão entupido. Além do mais, como é que o senhor tornaria a enchê-lo?

Na falta de cabelos, Jones coçou a cabeça gelatinosa.

— Não tinha pensado nisso... Que vamos fazer, senhorita Lucas? A senhorita, que é tão estudada... Senhorita Lucas?

Ruby não pode responder, é claro, porque está semi-morta. Na verdade, ela está agora passando por uma experiência de quase-morte. Já brincou de cabo-de-guerra? Pois a Morte está sempre brincando disso. É a brincadeira favorita dela! E sabe por quê? Porque de um lado as pessoas tentam se agarrar à Vida, e do outro lado a Morte tenta arrastá-las consigo. É uma constante competição entre as duas oposições. Ainda bem que não sou a Vida, porque, em se tratando de cabos-de-guerra, não sou lá muito paciente.

Em todo caso...

Ora, pois imaginem vocês que Davy resolveu interferir nessa brincadeira! Uniu-se à Vida ao fazer a coisa mais idiota que passou por sua cabeça neste momento: virou Ruby de ponta cabeça, como se assim pudesse desobstruir o tal pulmão afetado. Ora essa, que ideia mais imbecil!

A Gravidade não está ajudando muito, sabem... Me parece que teremos de usar de outros modos para impedir que esta garota acabe cedendo ao edema pulmonar. E seria no mínimo trágico alguém morrer de edema pulmonar por água de fossa. Já pensou nisso? A coitada chegaria à Bonança dos Espectros e perguntariam: “Morreste de que mal?”. E ela responderia: “De edema pulmonar, pela água de fossa que me obstruiu o pulmão direito. Ou esquerdo. Não sei bem, morri sem ter conhecimento de qual pulmão foi afetado”.

Se bem que, se estiver certa, edema pulmonar não era algo de que se tivesse conhecimento naquela época. Mais fácil classificarem a morte como afogamento.

— Capitão! – guincha o Senhor Smee, aterrorizado (suas orbes estão do tamanho de laranjas maduras) – Capitão, pelo amor de Deus, não desta maneira!

— E o que sugere, então, seu energúmeno?! – grita Davy em resposta, chacoalhando Ruby com a facilidade de quem chacoalha um saleiro – Não estou vendo o senhor fazer nada para salvar a vida da garota!

Devo interceder em defesa de Davy: apesar de seus modos rudes, foi ele quem arrastou aquela garota de volta à Vida. A Morte estava perto de vencer o cabo-de-guerra.

Ruby solta mais uma enxurrada de vômito. O que não passa nem perto de ser o suficiente, pois o pulmão continua entupido. Em todo caso, tudo leva a crer que a coitada tem ainda alguns minutos de vida. Então, Senhor Jones, é melhor agir rápido!

— P-p-perdão, capitão, mas já lhe ocorreu que talvez o oceano possa salvá-la? D-d-digo, as oceânides...

— Por mil tubarões! Como não pensei nisso antes?! Saia do caminho, Baiacu! Vá apressar aqueles vermes pestilentos!

Smee hesita, dando uma olhada na direção da moça, que é depositada de volta na mesa. Depois, conforme Davy lhe lança um olhar perigosamente raivoso, assente e sai cambaleando porta afora.

— Certo, senhorita! – diz Davy gentilmente, tão logo a porta se fecha – Nos resta ainda uma esperança! Não ouse ceder à Morte!

Tum, tum, tum, tum. Ele para no centro da cabine, onde, então, se abaixa de modo a tocar o assoalho com o dedo de tentáculo. Do tentáculo, deixa escapar um fio d’água. E o fio d’água forma uma poça no chão. E à poça Davy ordena:

— Ó Poça D’Água, faça a conexão! De gota em gota, ó Água Salgada, penetre entre as tábuas e convoque o Atlântico-Sul!

E então a Poça vibra, produzindo pequenas ondas circulares, como as que a gente vê ao atirar uma pedra num lago. E a vibração trás uma breve resposta da Poça: “Sim, meu senhor, como deseja”, é o que ela diz. E então as Gotas Salgadas desaparecem entre os vãos das tábuas que formam o assoalho. E dos vãos, as Gotas caem no assoalho do andar inferior (uma delas caiu na cabeça de um marujo e se perdeu das outras). E penetrando entre as tábuas, vão descendo andar por andar até atingirem a fossa. E na fossa flutuam pela podridão e então afundam. E atravessando as últimas tábuas, acabam então por atingir o Atlântico-Sul. E ao Atlântico-Sul as Gotas informam: “Ó Atlântico-Sul, seu Senhor o convoca!”. E responde o Atlântico: “Pois não, ó Gotas, como desejam”.

E tudo isso leva apenas trinta segundos.

E vibrando e borbulhando, eis que o Atlântico-Sul penetra pelas tábuas do Holandês Voador. E atravessando andar por andar, eis que atinge por fim a cabine do capitão. E pelos vãos entre as tábuas, brotam jorros de água salgada. E a Água forma poças e mais poças pelo chão. E as Poças formam um lago. E o Lago então se expande em todas as direções, em ondas circulares. E eis então que estas Ondas circulares ganham força e logo não se trata mais de apenas um lago.

Em questão de segundos, o assoalho da cabine está invadido por um pedaço de Atlântico-Sul! Uma Ruby semi-consciente solta um suspiro de encantamento. As ondas revoltas lançam salpicos gelados em seu rosto, o aroma marinho penetrando suas narinas.

— Ó Atlântico-Sul – comanda Davy em voz alta, com água até a cintura -, invoque a Oceânide mais próxima!

E responde o Atlântico-Sul: “Pois não, ó meu Senhor, como desejas!”. E vibrando e borbulhando, eis que o Atlântico-Sul convoca a Oceânide Nerissa, que está a matraquear com uma moréia chamada Dulce Greise. E diz o Atlântico-Sul: “Ó Oceânide Nerissa, seu senhor a invoca!”. E diz Nerissa: “Lá vou eu, Dulce Greise!”.

E tudo isso leva apenas sessenta segundos.

E na cabine, já muitíssimo impaciente, Davy murmura consigo mesmo. E na falta de cabelos, coça a cabeça gelatinosa. É que Davy Jones não se dá bem com o Tempo e culpará os Segundos se a Senhorita Lucas vier a falecer. Mas a Senhorita Lucas, acreditem ou não, está muitíssimo entretida com um siri de nome Raymundo Ramey, que de ponta cabeça flutua pelo recinto.  

E eis então que o pedaço de Atlântico-Sul, que ondula calmamente pela cabine, começa a sofrer fortes vibrações em sua superfície. Dali a pouco uma coisa redonda e do tamanho de um coco se eleva da água. E esquecendo-se de Raymundo Ramey, Ruby solta uma exclamação de assombro, pois está a ver a figura de uma moça. Uma moça feita de mar.

E os lábios da moça feita de mar se movem quando ela se dirige ao Senhor dos Oceanos:

— Meu Senhor, em que posso servi-lo?

Davy assume um ar quase paternal. Quando responde, a voz sai feito um sopro amoroso.

— A Senhorita Lucas necessita de tua ajuda, minha querida. Está entre a Vida e a Morte. Receio que seja tarde demais, porém...

— Ora, então os boatos são verídicos! – exclama a outra, elevando-se das águas. Primeiro surge seu pescoço, então os ombros, o tronco e longos braços. A água lhe bate na cintura, ocultando seus membros inferiores – Depois de tantos anos, o Senhor finalmente fez um novo acordo!

— Ora, mas já estão todos sabendo? – Davy contorce o rosto numa careta irritada – Quem foi que espalhou a notícia?

— As Ondas contaram às Correntes Marítimas, e estas espalharam as novidades pelos Oceanos.

— Ah, eu devia ter imaginado! Aquelas fofoqueiras!

Ruby teria achado graça no modo como Davy fez aquela exclamação, mas não está mesmo em condições de achar graça em nadica de nada. Tudo o que ela faz é soltar um doloroso sopro de desespero. Um sopro que faz as atenções se voltarem para sua desgraça.

— Sem mais delongas! – exclama o capitão – Salve-a das garras da Morte!

E a Moça-Feita-de-Mar assente com veemência.

Antes que possamos continuar, devo descrever brevemente a aparência do que chamo de “Moça-Feita-de-Mar”.  Bem, como podem imaginar, ela é, literalmente, feita de água salgada. E não estou brincando! Seus olhos são reluzentes pérolas negras. Sua nudez é encoberta por um vestido multicolorido, feito das mais variadas conchas. Seus cabelos são compridas algas vermelhas. E no topo da cabeça ela porta uma delicada tiara feita de ossos.

Pelos Oceanos ela é conhecida como Nerissa, A Primogênita. É que ela foi a primeira de muitas irmãs e, sendo assim, é a mais velha das Ninfas Oceânicas.

E lá está Nerissa, A Primogênita, encarando Ruby com preocupação. Abaixa-se de modo a escutar os pulmões da moça e nota o chiado de chaleira distante, que mais parece um Darth Vader asmático da terceira idade. Volta-se para Davy Jones, anunciando:

— O pulmão esquerdo está entupido! Devo presumir que esta senhorita se afogou?

— Na água de fossa – confirma Jones, com um aceno de cabeça – Fiz de tudo para desobstruir o pulmão afetado. Chacoalhei a moça e tudo!

— QUÊ? MAS QUE BRUTALIDADE!

— Olhe a língua! Sou o único com permissão de gritar a bordo deste navio!

— Sei, sei! Pois não me importa, meu senhor! Diga-me, como foi que esta senhorita se afogou na fossa?

Davy se atrapalha um pouco, um tanto desconcertado pelo olhar desconfiado que a Oceânide lança em sua direção.

— Hum... foi enfeitiçada por Epílogo... Ora, não me olhe assim! Que culpa tenho se a moça cedeu à tentação de pôr um fim ao sofrimento? Ela é fraca! E sendo fraca é isca fácil.

Bem, é claro que ele jamais irá admitir, mas está aterrorizado pela possibilidade de perder Ruby. Todos devíamos estar aterrorizados. É óbvio, porém, que nossa protagonista não será levada pela Morte, do contrário, não haverá mais história

— Acha que ainda há tempo? Pode salvá-la? – questiona o capitão, engolindo de uma vez só meio litro de rum.

  - Ah sim! – responde Nerissa – Não te preocupes, papai, sei o que fazer!

Eu não sei você, mas Ruby arregalou os orbes verdes ao descobrir a ligação entre Davy e a palavra papai. É verdade que ele teria ficado muitíssimo constrangido se não estivessem em situação tão alarmante. Em todo caso...

Nerissa agora está enfiando um dos braços pelos vãos entre as tábuas. Braço este que se alonga até alcançar o Oceano abaixo do navio. Uma vez lá embaixo, o braço se mistura às águas do oceano. Em menos de trinta segundos, as águas que formam o braço da Moça-Feita-de-Mar encontram o que ela está procurando. Em voz de comando, as águas ordenam a um peixe-leão de nome Carmelo Alcala que pule na rede de pesca do navio (porque sendo um peixe, Carmelo Alcala não poderia passar pelos vãos entre as tábuas). E obedecendo a uma ordem da Primeira Oceânide, Carmelo assim o faz (pobre coitado... mal sabe o que o espera... ).

— Papai, faça o favor de apanhar Carmelo Alcala na rede de pesca – pede Nerissa, que em seguida berra pelo Senhor Smee e pede que o homem rasgue a parte traseira do vestido de Ruby. 

— Pobrezinha – murmura o Senhor Smee, fazendo o que lhe é pedido – Tu vais salvar a Ruby, não é, Princesinha Nerissa?

— Mas é claro, meu querido Smee. E para isso necessito mais um favor seu: convoque a Brisa Marítima. 

— Sim, Princesinha! – assente, enfiando a cabeça de baiacu pela escotilha circular mais próxima e berrando aos ares – Ó Brisa Marítima, a Primeira Oceânide a invoca!

Eis que Davy adentra a cabine em companhia de Carmelo Alcala, um peixe branco de tamanho mediano:

— Quer me dizer como um peixe-leão salvará a senhorita Lucas? – questiona, intrigado.

Devo explicar aos que nunca viram um peixe-leão: essa espécie possui espinhos externos que inoculam veneno. 

— Ah mas como a Princesinha é inteligente! – Smee bate palminhas de excitação – Em toda minha burrice, não tinha pensado nisto.

E enquanto Davy Jones franze a testa sem entender nadica de nada, Carmelo Alcala arregala os olhos, completamente aterrorizado. Ensaia um salto, mas não consegue escapar do dedo-tentáculo de Davy, que tem um aperto firme. Toda sorridente, Princesa Nerissa se aproxima do peixe e, sem dó nem piedade, lhe arranca um espinho da região peitoral.

Carmelo Alcala teria gritado se tivesse voz.  (No fim, sem receber agradecimento e aleijado pela falta de um espinho, é atirado de volta ao mar pela escotilha mais próxima).

Ruby também está aterrorizada, porque acaba de entender o que será feito. Antes, porém, que possa emitir qualquer ruído de desespero, é surpreendida pela chegada da Brisa Marítima, que entra pela porta entreaberta. Quando se dá conta, a Brisa, que antes era apenas uma sensação na pele, agora é uma figura em forma humana. Trata-se de um garoto vestindo um manto branco e flutuando graciosamente acima do pedaço de Atlântico-Sul que ainda ondula sobre o assoalho.

— Requisitaram minha presença? – pergunta, e sua voz é um sopro tão suave que faz os cabelos da garota esvoaçarem delicadamente.

— Ó Brisa, necessitamos de tua ajuda. Auxilie-me! – solicita Nerissa.

E quem é que poderia imaginar que, em pleno século XVIII, uma cirurgia de pulmão viria a ser realizada com um espinho de peixe-leão e um sopro de Brisa Marítima?

— Façam o favor de imobilizá-la! – ordena a Oceânide e Smee segura as pernas de Ruby com firmeza.

— Que pensa que está fazendo? – guincha Davy, finalmente entendendo as intenções da filha.

— Não se preocupe, papai, os espinhos peitorais não inoculam veneno, lembra-se?

— É claro que eu sei disso, ninfa, mas este realmente é o melhor procedimento? Vai causar imensa dor à garota!

— Capitão, não temos tempo! – guincha Smee – Ruby está desfalecendo!

De fato, a respiração de Ruby está por um fio. Notem como a pele dela está arroxeada...

Sem outra opção, Davy nada pode fazer além de concordar. Segura os braços de Ruby com uma força brutal, enquanto o cozinheiro Jefferson, cuja presença foi requisitada, tem a tarefa de abrir nas costas de Ruby um fino rasgo. Ora, sendo um cozinheiro, ele está muitíssimo acostumado a lidar com o corte de carnes. E, muito embora tenha movimentado o facão com maestria, não pôde evitar causar intensa agonia à Ruby, que por fim acaba por desfalecer após tremer violentamente em sofrimento.

— Perrrrdoa-me, senhorrita Rrruby! – murmura Jefferson, consternado.   

E é então que, pelo corte hemorrágico, Nerissa enfia o espinho de peixe-leão diretamente no pulmão afetado. Davy temia que a manobra o estourasse, mas, felizmente, tudo o que o espinho faz é abrir um furo tão minúsculo quanto a cabeça de um alfinete.

— Papai, enfie o dedo para larguear o furo.

E Davy assim o faz. Agora o furo tem o tamanho de uma moeda e por ele escapa a água de fossa, num jato que parece um esguicho de jardim. Sabe, até que é bem poético... um pulmão que é uma fonte de água pútrida... Não é uma coisa que se vê todo dia. Aliás, é uma coisa a qual nunca se viu!

E eis que, livre de toda a água que o entupia, o pulmão murcha completamente, feito uma bexiga que perdeu o ar. Fica parecendo uma uva passa gigante e asquerosa. Ruby agoniza, respirando por um pulmão só. É neste momento que a Brisa Marítima torna a encher o pulmão com um sopro e, feito um passe de mágica, Nerissa, A Primogênita, sela o furo com o toque do dedo indicador. E de repente Ruby Lucas está respirando novamente, sem chiados e sem Darths Vaders asmáticos da terceira idade.

  E como precaução, o procedimento é realizado no outro pulmão que, por sorte, só estava contaminado por cinco mililitros de água de fossa. Então os cortes feitos por Jefferson são selados pelo toque mágico do dedo indicador de Nerissa, a Primeira Oceânide. E Ruby é então virada de barriga para cima. Vejam como a pobre coitada está pálida! E incrivelmente fedida! Pobrezinha...

— Ela vai ficar bem – Nerissa tranqüiliza os outros – Agora só precisa passar pela descontaminação do estômago.

Eu disse que ela ia precisar de uma lavagem estomacal!

Eis que a Princesa arranca da cabeça de água uma das algas vermelhas que tem como cabelo. Força então a alga na boca de Ruby, que é obrigada a engolir aquela coisa gosmenta, áspera e amargosa. Passam-se exatos 120 segundos. Aí a pobre Senhorita Lucas vira a cabeça de lado e vomita tão furiosamente que quase expele as tripas pela boca.  

— Por mil tubarões! – exclama Davy Jones, incrivelmente impressionado, porque nunca se viu uma quantidade tão grande de vômito multicolorido (a alga vermelha sai completamente inteira).

E então 30 segundos de silêncio, em que todos contemplam os olhos verdes se abrindo e piscando repetidamente até que, incontroláveis, liberam uma abundante quantidade de lágrimas. Pobre Ruby Lucas! Ninguém a condena por chorar feito um bebezinho faminto. Qualquer um cairia em pranto nesta situação (menos Davy, é claro, porque Davy não tem coração).   

— Ela vai ficar bem! – anuncia uma sorridente Oceânide – Mas necessita de longo descanso.

— VAMOS! VAMOS! NÃO FIQUEM PARADOS AÍ, IDIOTAS! SMEE, VÁ BUSCAR A ÁGUA PARA O BANHO.

— Sim, senhor! – e Baiacu sai desembestado. Volta dez segundos depois – Hum... Capitão...

— O QUE FOI? NÃO VÁ DIZER QUE NÃO FERVERAM A ÁGUA AINDA!

— Ferveram sim, senhor. É que o navio está completamente inundado pelo Atlântico-Sul, Capitão, e a água doce se misturou à salgada...

— POIS ENTÃO TRAGAM BALDES E CONVOQUEM A CHUVA! EU TENHO QUE DIZER TUDO?

Agora Smee só tem 65 por cento de audição.

Ordenando aos marujos que tragam baldes, Smee implora pela Chuva, que se recusa a cair (porque, segundo ela, quer permanecer mais um tempo como Nuvem e não está nem um pouco disposta a reviver todo o ciclo da água). Berrando loucamente, Davy ameaça as Nuvens, que trovejam nomes feios em resposta. E é então que, irritadíssimo, louquíssimo e muitíssimo contrariado, o capitão se recolhe à cabine, berrando:

— POIS TRATEM DE SEPARAR A ÁGUA DOCE DA SALGADA, SEUS FILHOS DA PUTA INUTÉIS.

— Papai! Não pronuncie nomes feios perto de uma dama! – ralha Nerissa, com as mãos na cintura.

— E não venhas tu me censurar, menina! Que ainda faz aqui, Brisa Marítima? Vá convencer aquelas Nuvens atrevidas!

— E por que achas que elas me ouviriam? Tu sabes bem que elas só obedecem ao Senhor dos Ares!

— Pois vá dizer a ele que Davy Jones, o Soberano dos Oceanos, ordena que caia a chuva!

E assim fez a Brisa Marítima. E é claro que não acabou bem... Imaginem vocês que o Senhor dos Ares se zangou com Jones. Muitíssimo irritado com o arzinho autoritário e convencido do Capitão, acabou por ordenar que caísse a Tempestade e que viesse um Ciclone. E é por esta razão que agora o navio está a girar e sacudir violentamente, atirando os marujos de um lado para o outro.

E vocês acham que Davy está se importando? Na verdade, ele agora ri enlouquecidamente, agarrado ao mastro principal. Não fosse o retumbar ensurdecedor dos trovões, poderíamos ouvir perfeitamente aos berros de “TU NÃO É DE NADA, SEU DEUS FUDIDO!” e “EU SOU DAVY JONES, O SOBERANO DOS OCEANOS, E ESSA PORRA DE TEMPESTADE NÃO ME ASSUSTA!”.

(Não se espante, ele fica assim quando está bêbado. Ou seja, o tempo todo.)

— Não sei mais o que fazer com papai, Senhor Smee. Não achas que ele está mais desequilibrado do que nunca?

— Acho sim, Princesinha Nerissa. Ele não está bom da cabeça.

— Nunca foi, convenhamos!

— Só piorou ultimamente...

Nerissa está a auxiliar a Senhorita Soluço & Choramingo no banho. Smee está a lavar as vestes da Senhorita Soluço & Choramingo. E a Senhorita Soluço & Choramingo está a soluçar e choramingar feito um bebezinho faminto.

— Sabe do que mais, Senhor Smee?

— O quê, Princesinha Nerissa?

— Papai está a tanto tempo nessa vida de Soberano que já nem sequer se lembra de que sem maldição não passa de um babaca aleijado.

— Não fale assim, Princesinha! Ambos sabemos que teu pai passou por poucas e boas nos últimos séculos. Pobre coitado! Não o culpe por ter se agarrado ao poder. Ora, eu mesmo me transformaria num tirano bêbado, louco, escandaloso, mal educado, esnobe e boca suja se fosse um Deus.

A porta bate com tanta força que de um pulo Smee vai parar do outro lado da cabine. Não foi pelo estrondoso baque que ele se assustou. Foi por saber que aquele estrondoso baque só poderia ter sido produzido por uma pessoa...

— Quer dizer que tu me achas um tirano bêbado, louco, escandaloso, mal educado, esnobe e boca suja? Esqueceu de mencionar minha feiúra e reconhecida insensibilidade.

E Davy adentra a cabine caminhando tranquilamente, espalhando água do Atlântico-Sul conforme se move. Tem em mãos um balde amassado e cheio d’água, que deposita perto da tina de madeira em que Ruby se banha. Curiosamente, os outros três presentes na sala observam enquanto o Capitão enfia a mão no balde e tira de lá de dentro uma lagosta-bebê.

— Encontrei essa Palinurus elephas presa na rede de pesca – diz ele, erguendo a mão para Ruby – É sua agora.

Os outros três encaram Davy como débeis. Ruby lança ao Capitão um olhar intrigado (molhado) e questionador. Ele simplesmente revira os olhos e suspira:

— Tu tens sérios problemas emocionais, precisa desabafar com alguém!

Ruby e a lagosta-bebê se olham. A lagosta-bebê, emocionada, mexe as anteninhas e pergunta: “Mamãe?”. Mas é óbvio que Ruby não fala lagostês, então não se pode culpar sua visível falta de sentimentos para com a lagosta. Tudo o que ela faz é choramingar e soluçar mais alto, escondendo o rosto nas mãos. E Davy, que além de insensível é também sem noção, acaba por aterrorizar a garota ao atirar a lagostinha-bebê para dentro da tina. No segundo seguinte, Ruby está guinchando feito um porco e atirando longe a pobre lagostinha, que vai aterrissar bem em cima de Raymundo Ramey, o siri (e aí começa a fabulosa amizade entre um siri e uma lagosta). 

— Eu lhe dou um presente e tu o ignoras desta maneira?! – indigna-se Jones, zangado.

— Por que diabos o senhor escolheu uma lagosta? – pergunta Smee, esquecendo-se do perigo que está correndo ao questionar seu soberano.

— Porque é uma lagostinha órfã! Ficou presa na rede de pesca, já não disse?

— Lagostas são bichos assustadores e feios, em minha opinião.

— E eu por acaso perguntei sua opinião, Baiacu? Vá ver se estou no leme!

— Sim, senhor! – retira-se Baiacu.

— Francamente, Senhor Jones! – ralha Nerissa, tão indignada que seu corpo aquoso estremece em vibrações – Não vês que a pobre Ruby está traumatizada? E por que é que estás aqui? Eu disse que não devia espioná-la no banho.

— Estou aqui porque estes são meus aposentos e tu, atrevida, deve aprender a respeitar meus domínios. – Jones balança o dedo-tentáculo, em ar autoritário e repreensivo. Vai sentar-se ao órgão, bufando e murmurando consigo mesmo.

— Oh, lá vem ele de novo com aquele tormento! Por favor, eu lhe imploro, não toque aquela composição!

(“Aquela composição”, também conhecida como “a música que Davy Jones toca o tempo todo porque está indignado, deprimido e enraivecido por sua vidinha de merda”).

— Tocarei o que for de meu agrado e ninguém há de opinar quanto a isso!

Esta noite, porém, Davy não tocará “aquela composição”. Na verdade, em sua insanidade fomentada por rum e indiferença ao Senhor dos Ares, ele tocará sua mais recente composição: a Canção de Ninar do Kraken (também conhecida como “música de pôr o bicho pra dormir”).

A breve história da Canção de Ninar do Kraken:

Três meses antes, estava Davy ao convés contemplando a beleza trágica de um navio em chamas. Encantado pela oportunidade de colher tantas almas de uma vez só, observava avidamente os marujos que viravam churrasco humano. Eis então, que, inspirado pela cena, virou de um só gole a garrafa de rum e disse: “Sabe de uma coisa, Baiacu? Estou me sentindo tão inspirado que comporei uma nova música!”. E Smee assentiu alegremente (pois já não agüentava mais a mesma música depressiva de sempre): “É mesmo, Cap? Por que o senhor não compõe uma música de ninar para o Kraken? Assim não terá mais de cantarolar toda vez que o bichinho tiver insônia.”. E Davy, impressionado pela inteligência de seu subalterno: “Oh, mas que grande ideia, Baiacu! E eu achando que sua estupidez reprimisse sua criatividade!”.

E desde então o Kraken dorme feito pedra toda vez que ouve a tal música (da última vez ele dormiu tão profundamente que Davy podia jurar que o monstro estava mortinho da Silva).

— Perdoe a indiferença de meu pai, senhorita Lucas – está dizendo Nerissa, enquanto vira um balde de água de chuva na cabeça de Ruby – Em se tratando de sentimentos alheios ele não tem o mínimo de empatia. Não é, senhor Jones?

— Empatia... Essa palavra nem existe no meu dicionário! – e Davy afunda os dedos e tentáculos do rosto nas teclas do órgão, fazendo fumaça sair dos compridos tubos do instrumento conforme produz as notas musicais. 

Toca incansavelmente por longos minutos, enquanto gargalha em alto e bom som, berrando insultos ao Ciclone que sacode o navio. É óbvio que em outra situação Davy bem estaria assustado e orando por sua vida, mas sendo o Holandês Voador um navio da Morte, está imune à destruição por catástrofes naturais.

Enquanto isso, Ruby Lucas pouco a pouco vai se livrando do mau cheiro de fossa. Misturaram à água do banho uma infinidade de perfumes franceses (que Davy surrupiou de um navio que naufragou) e, alérgica ao cheiro forte, a coitada não para mais de espirrar. Em todo caso, a sessão contínua de espirros ainda é melhor do que o terrível cheiro de dejetos.

Após passar cerca de meia hora livrando o cabelo dos pedaços de bosta que nele se prenderam, Ruby finalmente se encontra perfumada o suficiente para deixar a banheira. Não o faz, porém, porque lhe faltam roupas (suas vestes, infelizmente, estavam fedidas demais para serem recuperadas). É então que a moça se lembra da capa vermelha, que graças aos céus deixara em segurança na cabine antes de se aventurar na fossa. Com a nudez decentemente coberta, vai sentar-se à úmida mesa, aguardando pacientemente a atenção de Davy, que, em toda sua loucura musical, sequer notou que a moça terminou o banho.

Uma Oceânide impaciente pigarreia alto. O que não é o bastante, já que Davy está muitíssimo absorto no que faz. Não importando-se com a bronca que irá receber se interrompê-lo, ela berra um “PAPAI!” tão alto que Ambrogino Alexandre, o polvo, capota da cadeira em que estava encarapitado.

— QUANTAS VEZES EU TENHO QUE DIZER QUE NÃO DEVO SER INTERROMPIDO? POR MIL BALAS DE CANHÃO, NERISSA!

— Poupe sua voz, pelo amor dos Oceanos! O pobre Smee está quase surdo com toda essa gritaria!

— POIS EU NÃO ME IMPORTO! JÁ DISSE UM MILHÃO DE VEZES QUE NÃO DEVO SER INTERROMPIDO QUANDO ESTOU CONCENTRADO! PRINCIPALMENTE EM SE TRATANDO DA CANÇÃO DE NINAR DO MEU BICHINHO!

— Que engraçado... tu nunca me ninou com uma canção...

— Hum... é que tu sempre foi uma boa ninfa e nunca teve insônia...

— Ah isso não importa! Ruby precisa de roupas quentes!

— O que aconteceu com as dela?

— Smee as jogou fora, estão não-usáveis depois do encontro com a fossa.

— E INTERROMPEU MEU CONCERTO NO ÓRGÃO PARA FALAR DE ROUPAS? COMO SE O ASSUNTO FOSSE URGENTE E DE RELEVANTE IMPORTÂNCIA.

— Bem, o senhor é quem sabe... Se eu fosse o senhor colocaria essa garota numa redoma de vidro. Nós dois sabemos que a morte dela seria também a morte de sua salvação.

Franzindo a testa, Davy Jones é obrigado a concordar. Ele simplesmente detesta admitir que as pessoas estão certas. Mas em se tratando de sua primogênita, a coisa é bem diferente.

— Ah você definitivamente está certa, criança! Sendo sangue do meu sangue, é óbvio que estaria! – espalhando água, caminha até um grande baú escondido nas sombras. Carrega-o facilmente até a luz e, abrindo-o sobre a mesa, retira de dentro algumas peças de roupa – Estão molhadas, terão de secar. CONVOQUEM A BRISA MARÍTIMA!

Smee escancara a porta um segundo depois.

— Capitão, o Senhor dos Ares proibiu as Correntes de Ar de lhe prestarem favores!

— Ora essa! – Davy produz um som oco e alto ao bater com força a perna de pau no assoalho – Pois lembre a ele que o curso natural dos Oceanos depende das Correntes e que interferir nisto causaria o desequilíbrio da natureza, além, é claro, de enquadrar-se como violação das leis naturais que regem o universo!

Smee assente e sai da cabine feito um raio. Retorna um minuto depois.

— Capitão, o Senhor dos Ares manda dizer que o fato de os Oceanos dependerem das Correntes de Ar não faz do senhor uma autoridade a qual as Correntes devam obedecer.

— Ora! Pois diga a ele que a Brisa Marítima deve obedecer tanto ao Senhor dos Ares quanto ao Senhor dos Oceanos, porque é marítima.

— Pelo amor de Dulce Greise! – exclama a impaciente Nerissa, que de braços cruzados apenas observa – Deixem de conversinha e encontrem outra maneira. A Brisa não é forte o bastante para secar as roupas rapidamente. Sequem-nas sobre o fogo.

— Impossível, Princesinha! – Smee balança a cabeça em negação – Todo o navio está inundado pelo Atlântico-Sul, não há onde acender fogo.

— Ah pelo amor do coral! Eu me esqueci!

— Convoque uma Ventania, Smee, diga ao Senhor dos Ares que é caso de vida ou morte!

— Já disse, Capitão, mas ele se manteve impassível. Está profundamente ofendido por seu comportamento inadequado e só mandou cessar a Tempestade e o Ciclone porque o senhor não pareceu se incomodar com nenhum dos dois.

— Papai, vá se redimir! Só assim o Senhor dos Ares perdoará seu comportamento infantil!  

— Me redimir?! Veja só como essa ninfa fala comigo, Smee. Não sei onde foi que falhei com a educação desta criança...

— O senhor que me perdoe, Capitão, mas ela herdou o seu gênio.

— E isso é bom ou ruim, Baiacu?

— É ótimo, papai! Só alguém igual ao senhor é capaz de domá-lo.

— QUÊ?!

Ruby é pega pela centésima sexta crise de espirros, o que interrompe a discussão.

— Pelo amor de Davy Jones! Vá logo se redimir antes que Ruby pegue pneumonia e bata as botas.

E ela nem tem botas, só mesmo uma capa vermelha.

— Vá, Capitão, a coitada já sofreu demais, não precisa também adoecer.

— Ah está bem! Está bem! Que inferno! É só essa ninfa aparecer pra eu perder os cabelos da cabeça. E nem tenho cabelos!

Tão logo Davy se retira, Smee dana a rir.

— Ainda vai enlouquecer teu pai, Princesinha. Só mesmo tu para infernizá-lo de tal maneira.

— Louco ele já é, Smee. Completamente desequilibrado! Leve as roupas lá pra fora, tenho certeza de que agora as Ventanias irão aparecer.

 E assim Smee o faz.

Ruby, que treme de frio agarrada à capa, é pega pela centésima sétima crise de espirros. Após o oitavo e último espirro, vira-se para Nerissa e diz:

— Ainda não lhe agradeci devidamente. Muito obrigada por me salvar a vida!

— Ora, não foi nada! – a outra se curva numa reverência – Para mim é uma honra, senhorita! Veja bem, é para isso que nós, ninfas, servimos.

Ruby franze a testa.

— Para salvar vidas humanas?

— Para zelar por todo tipo de vida existente no mundo. – Nerissa flutua pela cabine, embalada pelo ondular das águas – Ora, que cabeça a minha! Ainda não me apresentei devidamente. Eu sou a Oceânide Nerissa, a Primeira Oceânide, também conhecida como A Primogênita. Veja bem, minha querida, sou a primeiríssima cria de Davy Jones! Não é mesmo uma honra?

Ruby não está tão certa disso...

— Ah eu sei o que estás pensando! – continua Nerissa – Sei bem o que pensam de papai. Mas devo dizer, senhorita Lucas, estão todos enganados. Veja bem, minha querida, papai é apenas mal interpretado. Pobrezinho!

— Desculpe lhe perguntar, sei que não é educado me intrometer, mas... Como é que tu nasceste, afinal? Digo... é de meu conhecimento que os bebês nascem quando um homem e uma mulher se relacionam... romanticamente. Mas no teu caso...

A Primogênita arregala os olhos, pasma.

— Então não conheces a história de nascimento das Oceânides? Pelo amor do Atlântico-Sul, que tens aprendido nos últimos anos?

“Nada útil!”, pensa Ruby, mas se mantém em silêncio.

— Ora, esta é mesmo uma belíssima história, como é que podes não conhecê-la? Presumo que também não faça ideia do que são Oceânides.

— Filhas do Oceano, suponho.

— Exato! Filhas do Oceano! E como tu sabes, o Oceano é o próprio Davy Jones. Tu me perguntas como foi que nasci e foi exatamente assim: há quatrocentos anos, quando papai foi amaldiçoado por Epílogo e obrigado a reinar nos Oceanos, ele sequer sabia que a maldição podia ser quebrada. O pobre infeliz estava mesmo convicto de que reinaria por toda a eternidade, preso ao Holandês Voador e fadado a ver os que amava morrerem de velhice. Ora, é óbvio que a Morte não disse a ele que toda maldição pode ser quebrada. Mas foi então que, exatos oito meses após ter tornado-se um Deus, papai se deparou com o naufrágio de um navio pirata. Um navio nomeado Disgrace of the Ocean...

Eu sei, nome tosco para um navio. Mas era um baita navio. Um galeão, especificamente. Tão colossal e extravagante que era sinônimo de soberba. Ah eu me lembro muito bem daquele galeão...

O caso é que o Disgrace era capitaneado por Janevra Jean, uma ruiva que, nas palavras de Davy, “sabia acender o fogo dentro de um homem”. Ora, imaginem vocês que o Disgrace fora bombardeado por um navio mercantil. Quase não sobraram tábuas para contar história! Infelizmente, mais da metade da tripulação morreu no atentado e quando Jones foi buscar as almas caiu de amores por Janevra Jean, que, como eu disse, sabia acender o fogo dentro de um homem. Diz ele que bastou botar os olhos naquela mulher que sangrava agarrada a um barril para saber que era ela o amor da sua vida.  Ora, todo mundo sabe que Davy Jones não pode ver um rabo de saia, então não é de se surpreender que ele tenha içado a pobre coitada para o convés do navio, usando a rede de pesca. E não foi que Janevra também caiu de amores por ele? Ora, ela ficou completamente encantada por aquele belo espécime de homem que, segundo ela, fazia seu coração bater feito martelo de ferreiro.

Ruby está fazendo cara de Não-Tô-Crendo-Nisso. Nerissa percebe, é claro, e trata de explicar.

— Ah, sei muito bem o que estás a pensar, senhorita Lucas. A verdade é que papai nem sempre foi como é atualmente. À época, ele não era tão horrendo quanto agora, assemelhava-se ainda a um homem normal, embora carregasse traços do mar em seu corpo. Acredite ou não, ele já foi incrivelmente educado e diabolicamente lindo!

Ora se isso não é verdade! Cabelos mais negros do que a noite, tão macios quanto lençóis de seda. Olhos profundamente azuis e tão misteriosos quanto os oceanos. Barba cerrada, sorriso malicioso, perfume almiscarado, voz grave e melodiosa. (Sem falar na trilha de pelos escuros no peito e o formato da bunda nas calças justas). Oh como Davy Jones era irresistível! Para citar a falecida Janevra: “Que pedação de mau caminho!”. Isto sem mencionar sua cortesia e cavalheirismo. Dizem até que Jones costumava ensinar aos homens a maneira correta de falar a uma dama. Não é nenhuma mentira! Perguntem a Smee e ele confirmará a história.

Ruby está fazendo cara de Isso-É-Mesmo-Muito-Difícil-De-Imaginar.

Mas ora, como eu ia dizendo, Davy Jones fez o coração de Janevra Jean bater feito martelo de ferreiro. Como dizem nos dias de hoje, foi amor à primeira vista. (Afinal, quem é que não se apaixonaria instantaneamente pelo pedação de mau caminho? É verdade que até mesmo homens se sentiam atraídos por aquele deus grego). E foi então que, perdido nos olhos cor de avelã de Janevra Jean, Davy tomou a decisão que mudaria seu destino: tomou-a para si. Ah sim, ele a seqüestrou sem pestanejar (isto, é claro, após tratar as feridas da moça)! E ela, que não aceitava ser feita cativa, propôs a ele um acordo inegável: quebrar a maldição em troca de sua liberdade. Ora, e não é que o pacto foi selado com um beijo (porque Jones não era bobo nem nada)?

“E fiques tu sabendo que, não quebrando a maldição, envelhecerá e morrerá a bordo deste navio”, dissera Davy, sorrindo de lado, convicto de que teria Janevra a seu lado para sempre.

Ora, pois foi este o primeiríssimo acordo feito por Davy Jones! E vocês podem muito bem imaginar o que sucedeu a validação do mesmo. Enquanto a pobre e cativa Jane Jean procurava um meio de quebrar a maldição, o Capitão alternava entre encher a cara, dar ordens e tentar conquistar a moçoila. Deus sabe como ela era difícil! Na verdade, ainda que caidinha pelo Jones, ela fingia detestá-lo, por puro orgulho e raiva. Ora, como se ela fosse disponibilizar o corpo ao bel prazer do Capitão! (Todo mundo sabe que ela bem o faria, se não zelasse por sua dignidade como mulher).  Sabe-se que Davy não sossegou até conquistar a pirata, que não conseguiu disfarçar o desejo por muito tempo.

Numa noite fria de lascar, Jane deixou de lado a dignidade, perdeu a vergonha na cara, e se esgueirou até a cama quentinha do Capitão. (Sabe-se que a tripulação não dormiu a noite toda, entretida com os ruídos). Semanas depois, a notícia: em nove meses o Senhor dos Oceanos apresentaria ao mundo seu herdeiro.

— Papai ficou tão feliz que, por uma semana, o Holandês Voador ficou em festa – os olhos de pérolas de Nerissa estão brilhando fantasmagoricamente à luz bruxuleante das velas – Por mais que ele ame meus irmãos e irmãs, não pode negar que sou sua preferida. Ora, pois mamãe e eu trouxemos intensa alegria ao sofrimento dele. E como era de esperar, Epílogo não gostou nadinha quando descobriu a gravidez...

A Morte já vinha tentando se livrar da Capitã Jean há algum tempo. Sabia do risco que a maldição estava correndo com aquela moça inteligente se metendo no caminho de Jones. Ora, como se ela fosse permitir que uma ruiva intrometida libertasse um de seus servos!

Devo esclarecer a vocês, caros leitores: a Morte obedece às leis naturais que regem o universo. Sendo assim, só pode levar com ela as pessoas que morrem de velhice, por acidentes fatais ou suicídio. E então você me pergunta: como foi então que a Morte quase obteve sucesso ao agarrar Ruby na fossa, afogando-a? E a resposta é a seguinte: a verdade é que Ruby não sabe nadar. Nunca aprendeu. Por mais que ela ame o mar desde criança, sempre teve medo de sua imensidão. E como Davy disse uns parágrafos mais acima, nossa protagonista ainda é fraca e, sendo fraca, é isca fácil. Porque vou lhes dizer outra coisa: a Morte é uma vadia maliciosa.

Como dizia, ela jamais permitiria que uma ruiva intrometida libertasse um de seus servos. Bom, ela não mediu esforços para conseguir o que queria, e o que queria era dar cabo da Jane Jean. E Jane Jean não dava sinais de que morreria tão cedo, então a Morte tratou de fazer alianças com quem fosse capaz de entregar a alma da ruiva enxerida para ela. O Inverno e a Pneumonia uniram-se contra a Jean, mas esta foi mais esperta ao se esconder na cama do Capitão Jones nas noites e dias frios. A Desnutrição também tentou, mas Jane a venceu depois de lidar com a Anemia. Irada, a Morte subornou um dos marujos, prometendo-lhe imortalidade em troca de ele atear fogo no navio. Foi aí que a boboca descobriu que, sem intenção, criara um navio imune à destruição.

Nesse tempo a gravidez avançou até completar três meses. Janevra era incrivelmente forte e se agarrava à Vida. As doenças psicológicas também não conseguiram enfraquecê-la, nem mesmo depois que a Depressão se abateu sobre os tripulantes, quando Morte tornou a amaldiçoá-los, transformando-os em homens-peixe e privando-os da normalidade.

— Foi quando papai virou o que é hoje. Epílogo o castigou por se envolver romanticamente com uma mulher e pensou que mamãe o abandonaria, enojada por sua feiúra. Surpreendentemente, ela não o fez. O amor deles era tão verdadeiro e puro que a aparência não importava nem um pouco. Claro que papai já não era o mesmo, tendo se transformado num monstrengo, mas ainda assim ele a protegia de Epílogo. A verdade é que ele teria morrido no lugar dela se pudesse. Ah, senhorita Lucas... é isto que me corta o coração, ele sequer pode se juntar a ela na Bonança dos Espectros, porque é lá que a alma dela se encontra.

— Eu sinto muito... – Ruby ainda está agarrada à capa vermelha, mas já não sente tanto frio – Como foi que ela morreu?

— Levou um tiro. Lembra do marujo que a Morte subornou? Foi seduzido pela ambição de tornar-se imortal e não economizou esforços para conseguir o que queria. Papai nem sonhava que estava sendo traído por um amigo, só foi descobrir quando já era tarde. Imagine você que o maldito marujo pegou mamãe desprotegida e lhe atirou bem no coração. Ah, senhorita Lucas...

Nerissa se cala por uns instantes, entristecida. Ruby não conseguiu evitar emocionar-se; discretamente, enxuga a lágrima pousada na ponta de seu nariz.

— Bem – continua a Oceânide com o olhar perdido -, desde esse dia papai nunca mais foi o mesmo. Ele tentou manter a alma dela por perto, para poder ter pelo menos uma partezinha dela, mas Epílogo a tomou dele. Sabemos que mamãe foi parar na Bonança dos Espectros porque era uma alma boa e a Morte não tem autorização de enviar pessoas boas ao Abismo. Mas imagine a dor dele ao atirar o cadáver no mar... oh, pobre de papai, como ele tem sofrido desde aquele fatídico dia! A única coisa boa disso tudo foi meu nascimento. Quando o corpo de mamãe desceu às profundezas, eu, um feto malformado, me tornei um espírito aquático, porque fui concebida por um deus. Precisava ver a cara de papai quando eu apareci nesta forma, falando pelos cotovelos. Ele caiu da cadeira e chorou feito um bebê.

— Só não entendo uma coisa – diz Ruby, que, inocente, não notou uma falha no acordo que fez com Davy – Por que é que ele não fez nada para ressuscitá-la?

— Ora, porque é contra as leis naturais. Não se pode trazer mortos de volta à vida!

E esse é o momento em que Ruby, você e eu fazemos cara de Que-Porra-É-Essa-Que-Cê-Tá-Me-Dizendo?

Ora, meus queridos, o que é que vocês esperavam? Iam mesmo achando que depois de algum esforço Ruby quebraria a maldição e teria o pai de volta? Fácil assim? A verdade é que...

... Davy é um grandessíssimo filho da puta e enganou nossa protagonista.    

 — Você está bem? Ruby? – a voz de Nerissa é um eco distante.

Ruby subitamente empalideceu, acometida por uma forte tontura. Bem teria desmaiado, não fosse a chegada de Jefferson, que agora a ampara.

— Senhorrrita Rrrruby! Que te passas, minha querrrida?

— EU VOU MATAR AQUELE DESGRAÇADO!

Sim, esse berro foi de nossa protagonista.

Lá vem Davy espalhando água. Chap-chap-chap (esse é o som da água sendo revolvida pelas pernas fortes de Jones). E TUM (esse foi o soco que Ruby desferiu na mesa).

— SEU FILHO DA PUTA MENTIROSO!

E ninguém entende nada quando Ruby simplesmente atira um coco (que Jefferson trouxe para ela) em Davy. O coco acerta a testa gelatinosa de Jones com um PAF, arrancando lhe o chapéu tricórnio da cabeça. Zonzo e abismado, o Capitão leva alguns segundos tentando equilibrar-se, mas com um TIBUM cai no meio da cabine, levantando uma onda de água do Atlântico-Sul.

— DESGRAÇADO! FARSANTE! CONFIEI EM TUAS PALAVRAS E ME LUDIBRIASTE!

— Acalma-te, senhorrrita!

— Mas que é que está acontecendo? – esse é Smee, que veio correndo ao ouvir o alvoroço. – Ruby, pelo amor...

— ME LARGUEM! EU VOU MATAR ESSE VERME DE FOSSA! ESSE MENTIROSO DUMA FIGA!

— Levem-na para fora! – Nerissa tenta ajudar o pai, que está tonto demais para conseguir levantar-se.  

— NÃO GRITE COMIGO! SUA MALDITA, OLHE O QUE ME FEZ! CONVOQUEM O KRAKEN IMEDIATAMENTE!

— Não, papai! Ela não fez por mal!

— POR BEM É QUE NÃO FEZ! RAPARIGA DESGRAÇADA, QUASE ME RACHA A CABEÇA!

— Que aconteceu afinal, Capitão?

— ESSA RAPARIGA ME ATIROU UM COCO!

— TU MERECES MAIS QUE ISSO, SEU ALDRAVÃO!

(Pausa educativa: aldravão, do português arcaico, é o mesmo que trapaceiro, mentiroso, enganador.)

— Levem-na para fora! Acalmem-na!

— Vamos, vamos, menina! Não vês que o Capitão quer atirá-la ao Kraken?

— ALDRAVÃO, EMBUSTEIRO, LOROTEIRO, FARSANTE, TRAPACEIRO, MENTIROSO, RATAZANA DE FOSSA! TU MERECES QUEIMAR NO FOGO DO INFERNO!

Carregam Ruby para fora (com alguma dificuldade, porque ela não para quieta e soca o ar com os braços e pernas).

Enquanto isso, a massa corpulenta e arrogante (também conhecida como Davy Jones), é erguida pela força de cinco marujos.

— EU NÃO QUERO SABER! PARA O INFERNO COM O PACTO! QUERO A GAROTA MORTA! MORTA, ME OUVIRAM?

Com Ruby berrando de um lado e Davy berrando do outro, agora Smee só tem sessenta e quatro por cento de audição.

 

Três minutos depois...

— Que foi que aconteceu, menina? Perdeu a cabeça? Por que atirou um coco no Capitão?

— A garota é louca! – está dizendo August Booth, que fuma perto do leme – Acabou de assinar uma sentença de morte.

— Senhorita Lucas, quer se acalmar e nos dizer o que aconteceu? – Archibald Hopper lhe oferece uma caneca de rum – Tome, vai lhe fazer bem.

Ruby vira a caneca de um só gole, tossindo ao engasgar.

— POIS AQUELE TRAPACEIRO ME ENGANOU! ACABEI DE DESCOBRIR UMA FALHA NO PACTO! NÃO SE PODE TRAZER MORTOS DE VOLTA À VIDA!

Por que será que estão todos com expressão de culpa?

Silêncio no convés, até que...

— É CLARO! CLARO! TODOS SABIAM E NINGUÉM ME AVISOU! BANDO DE APROVEITADORES! VERMES DE FOSSA!

— E-e-entenda, senhorita Ruby, nós não podíamos...

— ATÉ TU, SMEE! TU QUE DESDE O INÍCIO ME TRATOU COMO A UMA FILHA! CONFIEI EM TI E ESTEVE O TEMPO TODO FINGINDO, NÃO É? NEM POSSO ACREDITAR QUE TIVE PENA POR ESTAREM NESSA SITUAÇÃO!

— E tu querias que fizéssemos o quê? – August se pronuncia, irritado e de cara fechada – Se sabíamos que não se pode burlar as leis naturais? Sabíamos! Mas dizer isso à senhorita nos traria imenso sofrimento. Que achas que o Capitão faria conosco se sequer cogitássemos impedir que o pacto fosse selado?

Ruby se cala, porque, ainda que contrariada, tem de admitir que o homem está certo. Antes que alguém possa dizer alguma coisa, o demônio surge.

A porta da cabine faz NHÉÉÉÉ (é preciso lubrificar as dobradiças). E dezenas de olhos se voltam para o assoalho, evitando contato visual.

Um silêncio fúnebre paira pelo convés. Respirações cessam. Ventos e Ondas aquietam (não porque tenham medo, mas porque assistem curiosos ao desenrolar dos fatos).

 Ele pisa com força, espalhando água a uma altura de um metro. TUM-TUM-TUM-TUM. Nerissa vem deslizando atrás, tentando se fazer ouvir, mas é ignorada.

Ruby, que foi pega por um intenso ímpeto de bravura, encara o homem com destemor, afrontando-o. Acreditem ou não, desata a rir.

É que a testa de Davy afundou no formato do coco.

Eu sei que é incrivelmente difícil manter seriedade, mas faça força. Não vai querer ir parar no estômago do Kraken. Ou pior, nas profundezas inexploradas do oceano.

— Acha engraçado? – ele rosna, a três metros de distância – ACHA ENGRAÇADO?

Ruby gargalha mais alto.

TUM-TUM-TUM. Davy diminui a distância, em apenas dois passos. É então que Smee entra na frente da moça, ousando enfrentar seu superior. No entanto, todos nós sabemos que Davy é mais forte.

Com um empurrão, Smee despenca sobre uma pilha de caixotes.

Ruby cessa o riso. Lágrimas escorrem por seu rosto. Ela mal tem tempo de se afastar da mão que se ergue em sua direção.

Davy a agarra com uma força descomunal, erguendo-a a meio metro do chão pelo pescoço.  

— PAPAI!

— NÃO OUSE TOCAR NELA! – Smee se ergue com surpreendente agilidade, ao mesmo tempo em que Jefferson corre em direção ao Capitão. Os dois partem para cima de Davy, que ainda assim é muito mais forte e muito mais rápido. Smee é nocauteado ao ser atirado contra o mastro principal; Jefferson cai de mau jeito e fica embolado perto de um canhão.

— PAPAI! VAI MATÁ-LA!

Certamente não conhecem a sensação de ter a garganta espremida por um tentáculo, ou o horror angustiante de ter a respiração interrompida. É centenas de vezes pior do que ter a testa deformada por um coco.

— Ela precisa de uma lição! – Davy rosna, atirando saliva pelo ar. No segundo seguinte, Ruby está dependurada na borda do navio, segura por apenas um calcanhar. Arfando sofregamente, puxa o ar com tanta força que suas narinas parecem em chamas. – Desgraçada, da próxima vez que ousares me agredir juro que a mato com minhas próprias mãos! Sou seu Capitão e devo ser tratado com devido respeito!

— PELO AMOR DOS OCEANOS, PAPAI! DEIXE-A!

— QUIETA, NINFA! ORDENO QUE RETORNE ÀS PROFUNDEZAS DO OCEANO!

E como que sugada por uma força invisível, a Primeira Oceânide desaparece pelo vão entre as tábuas, levando com ela as águas do Atlântico-Sul que inundavam o navio.

Ruby está sendo chacoalhada. De olhos fechados, sente a vertigem de quem está prestes a despencar no vazio. Está aguardando o momento em que seu corpo baterá na água, afundando, afogando-se. Sua única esperança é ser salva por Nerissa.

Banida do navio, a Oceânide ressurge, erguendo-se do Mar ondulante.

— Pelo amor de todas as ninfas! Que foi que tu foste fazer, minha pobre menina? Não sabes que o que está morto deve permanecer morto?

Nerissa arrasta consigo uma imensa onda. Em segundos, põe-se tão alta quanto a mais alta das velas. Ameaçadora, rosna com voz de onda agressiva:

— DEIXE-A! NÃO ME FAÇA INVOCAR AQUELE QUE TU MAIS ODEIA!

— NÃO TENHO MEDO DE TU! RETORNE À TUA MORADA NAS PROFUNDEZAS!

— NÃO ATÉ QUE SOLTE A MENINA!

Ruby está perto de desmaiar, tão tonta que está pela posição em que se encontra. A capa vermelha está segura, amarrada em volta de seu pescoço, mas parte dela escorrega por seu corpo, revelando sua nudez a Jones.

— POIS FAÇA O QUE TIVER VONTADE! VOU DESERDÁ-LA!

— PAPAI! NÃO ESTRAGUE SUA CHANCE DE LIBERTAÇÃO!

Jones leva longos segundos pensando. Sua mente está a matraquear consigo mesma.

“Davy, tua cria bem que está certa! Não estrague esta chance!”.

“Não ouça a menina, Davy! A senhorita Lucas merece punição, olhe o que fez conosco!”.

“Puna-a de outra forma! A garota acabou de ser salva da Morte!”.

“Atire-a nas profundezas, eu digo!”.

Eis que, por fim, Jones se dá por satisfeito e Ruby é içada de volta. Sem pronunciar uma palavra, Davy a arrasta até a cabine, largando-a com brutalidade sobre a mesa, bem em cima de uma travessa de ensopado (que derrama e mancha o chão).

— Cubra-se! – rosna, atirando lhe o vestido azul-marinho que secara ao Vento. É quando a moça nota que está seminua e enrubesce violentamente. – Eu devia matá-la! Mas não o farei, porque temos um contrato!

— VÁ A MERDA COM SEU CONTRATO! – retruca ela, incapaz de conter-se. É pega em meio ao ato de descer da mesa. Davy a agarra pelos braços, imobilizando-a sob seu corpanzil.

— NÃO ME DESAFIE! – cospe para ela – NÃO SABES DO QUE SOU CAPAZ! CALE-SE, VISTA-SE E DESAPAREÇA DE MINHAS VISTAS!

Ruby bem estaria botando os bofes para fora, não estivesse com o estômago completamente vazio. Ainda zonza e um tanto surda, cambaleia até um canto escuro, onde então se veste calmamente, com a certeza de que Davy não pode vê-la.

— E não ouse estragar esse vestido! – resmunga ele, que termina por forçá-la a sentar-se à mesa.

August traz para a moça uma nova travessa de ensopado, enquanto que de um soco o Capitão abre o maldito coco ao meio. Alimentando-se vorazmente, Ruby acaba por cair na gargalhada, não podendo conter o riso frouxo. É que Davy pediu a August para avaliar a deformidade em sua testa gelatinosa.

— Acha que ficará assim para sempre? – questiona, aterrorizado.

— Não, Capitão, não deve durar mais do que umas horas.

— Tudo culpa dessa...

— Não ouse me desmoralizar outra vez, seu energúmeno! – brada Ruby, entre o riso e a raiva – Tomara que fique assim pela eternidade!

— DOBRE TUA LÍNGUA! NÃO ME FAÇA CONVOCAR O KRAKEN!

— Duvido muito que aquele monstrengo venha a seu chamado. Que eu saiba está em sono profundo.

Davy olha para August, que confirma com a cabeça.

— É verdade, Capitão, o bicho parece até que morreu de tão quieto.

— Pode ir, Booth, seus serviços não são mais necessários. Oh e não te esqueças de reanimar Baiacu, não quero aquele gordo no meu caminho quando voltar ao convés.

August sai fechando a porta com um NHÉÉÉ. Ruby toma a última golada de água de coco e exige:

— Aquele maldito contrato, desfaça-o imediatamente!

Davy a encara com expressão de descrença.

— Não posso! Não há como desfazer, eu lhe disse! Tu te comprometeste a cumprir com o que foi acertado e assim o fez.

— Eu não sabia que havia uma falha no contrato! Aproveitaste de minha ingenuidade em prol de teu próprio benefício!

Jones abre a boca, mas acaba por não falar. Porque, simplesmente, não há nada a ser dito.

— Pois diga! Negue se não for verdade! – rosna Ruby, enfurecida.

— Não julgue! Tu faria o mesmo se estivesse em meu lugar! Quase oitenta anos esperando por um novo acordo! Não me culpe por ter me aproveitado da oportunidade que me caiu em mãos. Não me culpe por tua estupidez!

— Ora!

— É o que tu és, uma estúpida! Não sabes que o que está morto deve permanecer morto? Não achas que eu bem teria trago de volta minha Janevra se pudesse? Ora, sei muito bem que aquela ninfa andou falando demais! Pois te conformes, jamais terá teu pai de volta!

Nossa protagonista está em pranto.

De repente, toda a esperança se foi.

— E agora tu clamas ter sido enganada, mas devias era me agradecer! Eu atendi teu chamado, te acolhi em minha casa, lhe dei um lar! Não te esqueças que bem poderia estar jogada num lar para menores abandonados, sozinha e esquecida.

Ora, se ele não está certo! Apesar de tudo, somos obrigados a concordar.

O Holandês é um lar para Ruby. Um tanto instável, mas ainda assim um lar.

— Lhe dei alimento, roupas, proteção, boa música, até um recanto tranqüilo onde possa pensar. Dou-lhe tudo e como me trata? Atira-me um coco na testa!

— Tu mereces mais que isso! – soluça ela, entre lágrimas.

— Se mereço! Sei bem o que sou, senhorita, mas isso não lhe dá o direito de me desafiar. Por mil âncoras, sou a autoridade maior nesta embarcação! – Davy se limita a se afastar. Por uma das escotilhas, seu olhar se perde na escuridão da noite – Agora pare de drama e vá repousar!

Minutos se passam sem que Ruby se mova. Pensamentos entopem sua cabeça, girando em sua mente.

Ela, que se agarrara a uma pontinha de esperança, vê sua fé desaparecer bem em frente de seus olhos.

Relembra os últimos acontecimentos vividos. Como passou de desesperançosa a crente. Como deu um salto de fé e se agarrou a uma oportunidade que nem sonhava existir.

Não fosse Esperança, ela bem estaria nas garras de Sir Victor. E, bem, o Holandês Voador é, de longe, mais acolhedor do que o Solar Wade. Ora, vocês bem que se divertem a bordo deste navio. Ou estou errada?

Pelo amor dos Oceanos, quem é que não se diverte com os berros de Davy Jones, que pouco a pouco vai ensurdecendo a tripulação?

Quem é que não ama o Kraken, nosso bichinho de estimação favorito?

E quem é que não aprecia uma boa música tocada no órgão?

Tantas portas a Esperança abriu...

Ora, como é que se diz... a Esperança é a última que morre.

Lá está ela, empoeirada num dos tubos do órgão, na forma de um inseto verde. Ora, como se Ruby fosse desistir só por ter encontrado novos obstáculos! Pelo amor dos Oceanos, tudo aquilo só servira para torná-la mais forte!

— Por acaso leis naturais podem ser quebradas? – questiona Ruby, depois de minutos de reflexão.

O Capitão desvia o olhar das estrelas e passa a encarar a garota.

— Não está pensando...

— Podem ou não podem?

— Tire essa ideia da cabeça! Achas que não pensei nessa possibilidade? Que achas que aconteceria se ousássemos burlar leis universais?

— Então é possível...

Davy assente.

— Provavelmente! Não vá dizer que acredita na possibilidade de conseguir uma coisa dessas! Estamos falando de leis naturais! Como se uma garotinha estúpida pudesse corromper o equilíbrio natural das coisas...

— Não sabes do que sou capaz!

— Não seja boba! – Davy solta uma gargalhada – Mesmo que pudesse trazer teu pai de volta, não poderia recuperar o corpo dele. Sabes que uma alma precisa habitar uma casca, do contrário deve encontrar repouso no Inferno ou Paraíso.

— Não me importa o corpo. Só a essência! Pois anote o que estou lhe dizendo: eu vou conseguir!

— Boa sorte tentando!

E é verdade que mesmo sem coração, Davy sentiu uma lufada de esperança.


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Notas finais do capítulo

Para o caso de o Nyah ficar de palhaçada e o link da música não funcionar: https://www.youtube.com/watch?v=asC9ILODdhg (OBS.: Originalmente essa é a música que toca em Piratas do Caribe quando o Kraken sai matando todo mundo. Apenas adaptei como canção de ninar do bichinho, porque achei que fosse a cara de Davy kkkk).
Qualquer dúvida estou disponível por MP e nos comentários.
Próximo capítulo: Davy tem segredos expostos e Ruby descobre uma brecha que pode ser a chave para a quebra da maldição. Enquanto isso, as recém coletadas almas são levadas a julgamento e no Reino Áqueo começam os preparativos para a festa de aniversário do Capitão.
SPOILER:



Todo ano a Morte dá a Davy um presente de aniversário. O que será?



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