We Are Young escrita por Mad


Capítulo 7
Olhar Insano




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/615330/chapter/7

O resto do trajeto foi tão silencioso que quase não percebi que Irian estava comigo.

Mentira.

Eu poderia sentir de longe o calor que aquele garoto exalava. Todos aqueles conflitos internos que pareciam soar em meus ouvidos concretadas como o chocar de duas lâminas afiadas de espadas medievais. O silêncio era extremamente barulhento dentro do carro. Mantinha minhas mãos fixas no volante e meu olhar grudado no asfalto a minha frente, rígido.
O que estava acontecendo? Como havíamos chegado àquele ponto?
Enquanto dirigia, deixei meus pensamentos avoados tomarem conta de minha mente nebulosa. Onde Irian dormiria quando chegasse? O que ele comeria? Como reagiria? Será que conversaria comigo, diria o que está acontecendo? Não, não, duvido muito. Ele era tão... Acorrentado em si mesmo, tão preso e reservado, como se muralhadas o separassem do mundo. Nós não possuíamos intimidade suficiente para que ele se sentisse a vontade de contar-me o que se passa. E bem, em um mundo paralelo, se tivéssemos uma espécie de afeto, de fato, o que adiantaria? Não é como se eu fosse um psicólogo, ou pelo menos um bom conselheiro. Provavelmente tudo o que eu faria seria coçar meu queixo e murmurar um “Ah, bem, que pena”, pois é tudo o que me vem à cabeça na hora. Desde pequeno, nunca soube reagir ao lamentar de segundos, nunca soube opinar ou ajudar com palavras. Esse seria um defeito em mim? Ser tão de... Tão de exatas?

– Ahm... Max?

Virei-me rapidamente para Irian, que estava sentado ao meu lado, no banco do carona, encarando-me com desconfiança. De fato, apenas ali percebi que já havia estacionado o carro na vaga da garagem, e estava encarando o nada, mergulhado em minhas próprias reflexões.
Cocei a nuca e por fim abri a porta para sair, Irian me imitou. O garoto abraçava o próprio corpo, vez que outra esfregando o próprio braço furiosamente.

– Não fique tão nervoso. – Murmurei, ouvindo o “click” que indicava que as portas do carro haviam sido trancadas.
– Como eu devo ficar? – Irian perguntou em tom irônico.
– Agradecido? Farto? – Não evitei dar um sorriso debochado.
Irian bufou enquanto subíamos as escadas mal iluminadas. O prédio tinha apenas cinco andares, e para melhorar o meu apartamento era no quinto andar, ou seja, cinco lances de escadas para subir. O corredor era estreito e as escadas subiam em sentido caracol, o que me era um pouco claustrofóbico. Havia poucas luzes fracas em um tom amarelado, deixando o ar ainda mais pesado.
– Vai jogar na cara, é? – Irian respondeu.
Eu havia pegado a dianteira e citava com meus movimentos os lugares onde Irian deveria ir. Não sei se naquele momento eu estava imaginando coisas ou poderia jurar ter ouvido um sorriso em seus lábios acompanhando da sua última frase.

~~~

Irian estava sentado no sofá de apenas dois lugares, abraçando as próprias pernas e enrolado em um cobertor, tendo apenas seu rosto e mãos amostra. Segurava uma xícara de café, seu olhar estava distante e pensativo, vez que outra o via cheirando o vapor do líquido borbulhante e amargo que subia para a atmosfera antes de ingerir um gole. Já eu permanecia sentado de forma rígida na poltrona velha no lado oposto do sofá em que Irian se encontrava.
O único som do apartamento inteiro vinha da televisão ligada a nossa frente, a qual ninguém realmente assistia. Havia uma massa de tensão sobrevoando o ambiente, me causando tamanho estresse e cansaço físico que meu vício em nicotina havia sido atiçado. Desde que Irian havia entrado no meu apartamento, estava se comunicando apenas por gesticulações e monossílabos, mais um tópico que me deixava extremamente nervoso. Finalmente havia decidido enfurnar-me no quarto e fumar cinco maços de cigarro de uma vez só, quando o garoto escolheu aquele momento para finalmente se manifestar.

– Tudo bem. Vejamos; - Enquanto falava o garoto massageava as próprias têmporas, deixando a xícara de café equilibrada perigosamente entre seus joelhos dobrados – Meu pai pirou, eu fugi e me preparava para passar a noite em claro no banco de uma praça. Meu professor de Física chegou, me agarrou, me deu um sermão e agora eu estou no apartamento dele tomando uma xícara de café. – Irian finalmente abriu os olhos, encarando-me. Seu olhar brilhava no escuro da sala, as imagens da televisão refletiam em suas íris, dando uma impressão de que seu olhar havia um brilho próprio, como o avistar de um gato. – O mundo é realmente tão estranho e confuso ou é a minha vida que está de cabeça para baixo?
Pigarreei, cruzando meus braços e fitando o chão. Ainda me negava a encarar Irian por mais de alguns segundos.
– Pense pelo meu lado também. Um dos meus alunos mais implicantes chora após uma prova – O garoto me interrompe, começando com um “Ah, não venha falar novamente sobre iss...” – Eu me preocupo o suficiente com ele para conversar – continuo como se ele nunca tivesse dito nada – e então quando eu penso que estamos entendidos, ele some. Eu saio do trabalho para uma caminhada, encontro o mesmo garoto cabisbaixo em uma praça no meio do nada, dizendo para mim que vai passar a noite ali. E então de repente eu estou com esse garoto no sofá da minha sala, tomando uma xícara de café, me questionando com perguntas ilógicas e um olhar insano.
– Eu não estou com um olhar insano. – Ele contestou.
– Ah, está sim. – Murmurei, estralando as juntas dos meus dedos.

Irian suspirou e inclinou-se para frente, pousando a xícara, agora vazia, sobre a mesa de centro da sala. Voltou a encolher-se no canto do sofá e cobrir-se com o cobertor, dessa vez deixando apenas o rosto amostra.
– Olha, não pense que vai ter de mim gratidão por isso. Eu te disse que ficaria na praça, e o teria feito se você não tivesse berrado comigo daquele jeito.
– Ah, então quer dizer que eu obriguei você a escolher a opção de teto, cobertor e café ao invés de frio, praça e estupradores? – Bufei, com escárnio.
– É. É exatamente isso que estou dizendo. – Irian concordou, como se fosse algo lógico.
Revirei meus olhos, levantando-me da poltrona com um chiado, dando poucos passos até alcançar a cozinha, que não passava de um cubículo ocupado de um fogão, geladeira, armário com pia e uma mesa dobrável embutida na parede. Escararei a geladeira e ora, o que temos? Um galão de leite, ovos. Salsicha.
Não havia percebido que Irian havia me seguido até ele exclamar por debaixo de meu braço erguido.
– Caramba, cara. Que geladeira mais infeliz.
Me virei com cara feia. Quem ele pensava que era para falar da minha geladeira?
– Ninguém nunca te disse que é falta de educação abrir a geladeira na casa dos outros?
– Tecnicamente eu não abri a geladeira, você fez esse trabalho por mim. Eu só observei. – Ele murmurou com um muxoxo.
Revirei os olhos.
– Mas enfim, maninho, sua geladeira é realmente terrível. Sem verduras e vegetais você não vai longe. É a típica geladeira de um solteirão. Bem, até um tempo atrás eu poderia jurar que você era casado, e continuaria pensando se não tivesse me arrastado para cá – mesmo percebendo que você não usa aliança, mas isso é apenas um detalhe -, mas vi que sua situação não está muito legal, não é? Aposto que o freezer está recheado de comidas congeladas.
Encarei-o com meus olhos semicerrados.
Era melhor eu não abrir o freezer e evitar que ele se gabasse todo.
– Irian, deixe que da minha comida eu cuido, tá legal? Vá se sentar que eu vou fazer algo para...
– Não, não, espere ai. Eu não vou comer qualquer gororoba que você vá fazer. Vai lavar as mãos antes, não é? Vai saber onde você enfiou essas mãos e...
Aquele garoto estava conseguindo me irritar, mas não de uma maneira ruim, na verdade, de uma maneira terrível. Ele estava conseguindo me fazer querer rir, e eu não poderia rir, porque seria muito estranho. Fechei a geladeira e me virei em sua direção, Irian estava encostado na parede, de forma que impedi sua saída ao fincar meu braço no espaço entre seu pescoço e ombro, encarando-o bem no rosto ao pronunciar minhas palavras.
– Irian. – Dizia lentamente cada sílaba, como se estivesse falando com um deficiente mental – Eu vou fazer algo comestível o suficiente para forrar seu estômago. Por favor, retire-se da cozinha minúscula e vá para o sofá entreter-se com a televisão mágica.
Os olhos do garoto arregalaram-se com meu feito, ouvi-o engolir em seco. Em poucos segundos sua pele dourada tornou-se vermelha como um pimentão, o que fora suficiente para me fazer retirar o braço e liberar sua passagem. Irian encarou-me nos olhos por mais algum tempo antes de começar a se retirar, gaguejando sílabas sem sentido, totalmente sem graça. O vendo daquela forma, me fora impossível não ruborizar também. Assim que me vi livre de seu olhar, fechei a porta da cozinha e me inclinei sobre a pia, jogando água gelada no meu rosto quente, a impressão que eu tinha era de que o líquido em contato com minha pele fervente iria vaporizar imediatamente.
O que diabos havia sido aquilo?
Agarrei-me novamente a porta da geladeira, escancarando-a e pegando itens aleatórios. Ovos, manteiga, salsicha... Meu Deus, o que eu faria com aquelas coisas?
Mas afinal, por que eu me importava tanto?
“É só uma criança, Max”, lembrei a mim mesmo. “Não é como se você estivesse em um encontro”.

~~~

– E então, está suficientemente comestível para você? – Murmurei entre uma garfada e outra.
Irian engoliu o que mastigava, seguidamente enfiando mais um pouco da massa em sua boca e olhando para o nada, como se estivesse pensando, tamborilando os dedos no braço do sofá. Como antes, ele estava encolhido no sofá e eu na poltrona, já que não seria muito propício nós dois dentro daquele cubículo de cozinha dividindo meio centímetro de mesa.
– É, dá pra comer. – Ele murmurou enfim.
Concordei com a cabeça, mais ou menos orgulhoso. Voltei a comer, pensando que poderia ter o resto da minha refeição de forma tranquila, até que o prato de massa com molho vermelho desequilibrou-se entre os joelhos de Irie.
Me engasguei e joguei-me para frente, afim de evitar a desgraça alheia e um tapete cheio de massa e salsicha para limpar, não percebendo que Irian pensou a mesma coisa. Apenas senti o choque de nossas testas se batendo, com violência suficiente para que eu visse luzes brancas manchando minha visão. Caí para trás, sentindo algo quente e grudento em meu peito.
Após alguns minutos em que deixei meus olhos fechados, esperando a tontura passar, finalmente abri-os. Irian estava jogado no sofá, me encarando com um olhar temeroso. Eu estava deitado de costas sobre o tapete, e em meu peito seu prato de massa estava virado para baixo, de forma que a comida havia grudado em minha camiseta branca.
Ah, legal, Irian. Maravilha.
Me levantei devagar, tomando cuidado para não deixar o molho vermelho escorrer para o chão. De repente meu humor ficou tão negro quanto meus cabelos, tudo o que eu queria era socar uma vidraça. Joguei o prato de porcelana sobre a mesa de centro e encarei Irian com minha melhor máscara de homicida.
– Vá pegar algo para que eu possa me limpar. – Minha voz soou tão autoritária que o garoto sequer pensou em hesitar.
Irian correu para a cozinha, voltando com alguns trapos que sabe Deus onde ele havia retirado, pulando de forma frenética e nervosa. Estiquei minha mão para pegar o pano, porém, antes disso, Irie já estava ajoelhado ao meu lado, limpando meu rosto quase que agressivamente devido a sua velocidade, seu rosto cheio de culpa.
– Desculpe, desculpe, eu juro que eu vou limpar, eu sou realmente um idiota, eu...
Revirei os olhos e segurei seu pulso.
– Irie, está tudo bem. Apenas me dê o pano. – Murmurei, dessa vez, sincero, comovido ao perceber que ele realmente havia se arrependido, ao menos.
Irian pareceu regredir; Seu rosto ruborizou violentamente, suas palavras soaram gaguejadas. O garoto começou a recuar lentamente, concordando com a cabeça, enquanto eu soltava seu pulso de forma cautelosa. Por fim, ele voltou a se encolher.
Não antes que eu visse.
Não antes que eu tivesse certeza.

~~~
Algumas longas semanas atrás, antes de tudo aquilo, havia me pego uma ou duas vezes encarando Irian enquanto meu olhar vagava aleatoriamente pela sala. Em uma dessas vezes, como que movido pela inércia, meus olhos pousaram-se sobre a faixa de couro que envolvia seu pulso fino.
E eu vi, porém, inicialmente me neguei a acreditar.
Finos, retos, traçados cuidadosamente.
Eu fui egoísta, me neguei a acreditar por um longo tempo, antes de perceber que eu de fato me importava. Mas, ao longo do tempo, minhas memórias se tornaram confusas a cada lua, e eu deixei de ter completa nitidez daquela observação fraca e repentina, confirmando o fato de que minha memória já não funcionava mais como antigamente, meus ombros sobrecarregados evitando mais uma preocupação.
Mas ali, naquele momento, as lembranças me atingiram com a delicadeza de um tiro.
Os pulsos de Irian eram marcados vez ou outra, a pele morena manchada de vermelho. O menino do sorriso debochado pensava que escondia de mim aquelas marcas com a tira de couro negro sobre elas. Não escondia.

Ele, pobre criança, não podia esconder nada de mim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "We Are Young" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.