Dois de Copas escrita por Edgar Varenberg


Capítulo 1
+ Roda da Fortuna


Notas iniciais do capítulo

"É normal que se tema o que não se conhece"(Shakira)



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Era tão estimável. Sinais sempre se implantavam na vida de Paulo como lapsos de visões óbvias sobre suas ações. Na verdade, ele mesmo reconhecia — e dizia, tranquilamente — que tais sinais nada mais eram que desculpas para não ter que explicar o porquê de tudo acontecer. E era assim que definia sorte, destino, acaso e todos esses substantivos derivados de ocasião, tudo obra de meras superstições.

Como um aguçar de intuição e despertar de espiritualidade, havia incenso de sândalo aromatizando movimentos; não era tão comum o oxigênio, mas, sim, os cheiros de ervas que nunca se ouviram falar. De perfeita organização consistia aquele baralho que, diferente do imaginável, era de uma idade tão precoce quanto a decisão daquela consulta espiritual. Tudo era novo, desde as paredes até as cadeiras de madeira — que Paulo não parou para pensar se eram maciças ou não —, desde o baralho até a caixa de incensos. Tudo, o cálice decorativo, a pintura de um anjo que mais parecia que tinha sido desenhada naquele momento; o conjunto de penas, o cigano.

Assim como ontem, Paulo estava lá fissurado por visões turvas do futuro que ansiava tanto que nem sabia viver. Fora ontem que o folheto misteriosamente voou sobre a sua face — nem passou para pensar que pudesse ter sido culpa do outono — e ele percebeu que um novo cigano estava trabalhando na cidade. “Não trago o amor, mas trago algomelhor em três dias”, era o grande anúncio e, mesmo que Paulo se considerasse um tanto descrente em qualquer campo fora da mais exata realidade, sua curiosidade — também atendida como desespero — fez um rever de ideias encaixar como uma luva. Não era opção, mas, sim, necessidade.

O jovem cigano puxou a primeira carta do baralho e a olhou sem esboçar reações, ajeitou seu manto e capuz, que só deixavam à mostra um par de olhos verdes tão mortos quanto o orgulho de Paulo ao sucumbir-se àquelas consultas e, com um cuidado interessante de se ver, posicionou a carta em cima da mesa, apontando para o nome do objeto.

— Que tu voltarias eu sabia — O cigano referiu-se ao fato de que, no dia anterior, ele ter preferido não realizar, de cara, uma consulta, pois sabia que o seu cliente retornaria — Tem um desespero notável, seu espírito, por saber do futuro; de tão instável chega a ser contagioso.

Paulo apenas ficou encarando a carta, esperando, provavelmente, que o seu consultor dissesse sobre a carta.

— O que, com tantas informações, pretendes fazer? — perguntou o cigano, enquanto contornava a carta recém-vista com os dedos — A tua pessoa virou meu conhecimento no nosso longo diálogo de ontem, meu jovem. E, por mais que dos teus problemas eu já tenha noção, do teu próprio horizonte é importante que tudo parta.

— Eu só quero um rumo — Paulo então decidiu falar — Não quero me entender, nem nada dessas crises existenciais, eu só quero saber se o que ando fazendo está certo.

— “Acho que sou viciado em amar” — citou o cigano, tentando, de forma quase que perfeita, imitar a voz do seu cliente, que era tão rouca quanto a dele, a diferença era que a voz do cigano era um rouco mais voltado para um cansaço natural, enquanto que Paulo mais parecia que precisava de umas balas de gengibre. — Tu achas vício o amor porque incompletamente dele vives. No entanto — O cartomante voltou sua atenção para a carta —, a “Roda da Fortuna” na tua vida revelou-se. O sorte ou revés, de dois ápices um extremo. Tua instabilidade aos ciclos da roda é explicável. Mas queres rumo — ele então puxou outra carta — e aqui a resposta está.

— Dois de copas. — Paulo leu numa reação automática — E o que tem de mais nessa carta?

— Variabilidade aponta a roda — o cigano suspirou — Específica mente funciona o duplo copas. Provam que és escravo do amor as cartas. Tu não me contaste da moça que te cativas, meu jovem. Achei que dinamismo o ponto-chave fosse tua lógica.

— Alexandre... — murmurou Paulo, apenas ignorando toda a confusão com gêneros, toda e qualquer pergunta no vazio.

As velas pareceram ganhar um fervor diferente naquele momento, assim como um vento imaginário gelou o coração do menino Paulo; seu olhar concentrado no par de cartas, no par de copas, vidrados na solução que era o próprio questionamento. Arrancaria os cabelos se não fosse tão fraco contra machucar-se. Mas sentia todos os abalos e sofria aos silêncios, como facadas embaixo d’água.

O cigano simplesmente captava tudo como o ódio era absorvido pelo tempo. E o silêncio — em conjunção com tempo —, os segundos em que só o som inaudível das velas o cercavam, era como se conhecimento fosse trocado, aos mínimos, microscopicamente espiritual.

— Tens ideia do porquê de tanta necessidade em amar?

Paulo apenas sorriu.

— Se eu sorrio hoje, é por causa do amor.

— Entendo — o cigano prosseguiu — E o que, de relacionar-te com o Alexandre, te impedes?

— São motivos que não entram em questão pelo que eu vim saber — Paulo retrucou — Eu me conheço um pouco, sei que ficarei me apaixonando de forma instantânea até que finalmente encontre reciprocidade. Mas sou dependente, apressado. Isso já conversamos.

— A primeira pergunta que te fiz, ontem, lembra-te?

— Você me perguntou se eu tinha certeza do que eu estava fazendo ao entrar no seu estabelecimento.

— E tens certeza hoje?

— Eu não sei bem se essa consulta está me ajudando.

Uma das velas se apagou. O cigano calmamente a acendeu usando o fogo de outra que estava acesa. E aqueles olhos verdes intactos tentavam ler tudo de superliminar que Paulo escondia em lugares de fácil encontro, até parecendo proposital. A idade fazia efeito inversamente também, enquanto a sabedoria retirava a memória, a memória retirava sabedoria; por isso mentes jovens são as mais ingênuas.

— Tu amas em demasia, porém desprezas quem a ti te dar amor — concluiu o cigano, sem deixa nenhuma para conclusões; devia fazer parte do trabalho.

— Isso não faz sentido — Paulo retrucou, colocando a mão sobre o queixo, tentando ressuscitar lembranças que pudessem ser convertidas em argumentos — Se eu amo demais, por que eu desprezaria o amor?

— Tu és tão egoísta quanto a tua sina que ao vício te incentivas.

De repente, Paulo suspirou mais fundo, como se os exemplos decorrentes e frequentes tivessem estancado o ar. Um sorrisinho de vitória não foi feito por parte do cigano, em vez disso, ele apenas assentiu com a cabeça, concordava, mesmo sem saber os pensamentos, o significado dos gestos, era uma maestria questionável assim por dizer. Tudo naquele lugar era questionável, desde as janelas mal fechadas até as moedas de um real de 1990 espalhadas. Provavelmente nenhum dos dois era nascido na época.

— De farsas tem vivido, entendes? — O rapaz não deu deixa para Paulo responder — Não, provavelmente, aqui estás por isso.

— Então...

— Sim, um emergencial refúgio — completou o cigano, fitando mais um pouco a combinação “Roda da Fortuna + 2 de Copas”. — Não percebes de tão óbvio.

— Então o Alexandre não é a pessoa certa pra mim?

— Tu não és a pessoa certa para o Alexandre.

E outro silêncio chicoteou as máscaras.

— Não se decepcionarás com o mal, meu jovem — disse o cigano, guardando o seu baralho e entregando um cubo pequeno e totalmente preto, tipo uma caixa de sorteio — Para o que procuras terá a mensagem certa esta caixa.

Paulo então colocou a mão dentro da caixa, sentiu papéis de todos os tipos, uns maiores que os outros, pareciam de texturas diferentes, era como se um universo de respostas — ou de mais perguntas — estivesse beirando entre seus dedos, infectando moneramente as passagens de sua decisão, encarnando em suas unhas toda a espécie de bem e mal dizer.

De repente, sentiu uma textura diferente, era como um imã de celulose entre pele, como se faltasse uma placa colorida com a mensagem “me escolha”, sem sombras de dúvida, a mente toda fora conectada àquele papel, não só a mente, como as dúvidas e até suas sombras. E ao escolhê-lo, de forma macabramente automática, Paulo lembrou-se do dia de ontem, de sua consulta no dia anterior, as perguntas pareciam ter outros significados.

“— Do que estás fazendo, ao entrar no meu estabelecimento, tens certezas? — E lembrou-se de que não lembrara mais como era a vida fora daquela porta.

— Não muito.

— Senta-te aqui, jovem.

— Em que você poderá me ajudar?

— Diga-me teus problemas — o cigano deu uma pausa — E, portanto, da cura saberás. De fácil presença surgirão efeitos colaterais, é claro.

— Não entendi — Paulo disse.

— A sensação deste encontro — o cigano então se sentou também — Que o final o início guarda mais respostas.”

Então Paulo puxou o papel com um desespero preocupante, como se na caixa houvesse fogo e ele tivesse que resgatar uma chave ainda em brasas. Abriu o papel, sentindo-se cada vez mais ofegante por dentro, e leu a mensagem umas três vezes em poucos segundos, muito poucos, quase que suspeitando as barreiras da veracidade.

— “De mudar a capacidade enfrente, de você a mudança não fuja” — Paulo repetiu aquela frase em voz alta numa quantidade desnecessária de vezes.

— Da nossa consulta o real propósito entenderás — o jovem cartomante se levantou e começou a arrumar algumas coisas numa prateleira, como se estivesse em casa e sem clientes, como se estivesse à toa — Serás o último e terceiro dia; trarei o prometido. Até amanhã, cliente cujo nome ainda não me fora apresentado.

— Paulo — ele respondeu, mas como uma estranheza — Achei que tivesse lhe dito ontem. Aliás, eu podia jurar que disse.

E outro silêncio chicoteou as cicatrizes.

A mente explodia em pensamentos, o vão entre a porta era caminho o suficiente para um espectro filosofal, um caminho de indecisões e exemplos de falsas promessas, de verdadeiras conquistas, dos altos e baixos que a vida não demonstrava em gráficos, porém guardavam marcas. Fissurado sempre pela turva visão da impossibilidade de saber o dia de amanhã, entregue vítima de um não saber rotativo que trazia erudição e contradição divididas meio a meio, como cola artística.

Abandonou o estabelecimento e o sininho nostálgico da porta tocou. Ontem não sentira tal magia, porém hoje se descobriu como num loop de mensagens já ditas, porém modificadas; não modificadas diretamente, mas como aquela dose maldita e capacitiva humana de interpretação, isto é, dizer a mesma coisa para uma pessoa, com a mente em momentos diferentes, como forma de cair e cair e cair e cair... Cair, novamente, na estaca zero.

“— Achas que ódio ou amor carregas? — lembrou-se de uma das perguntas do dia anterior — És maligno ou benigno?

— Provavelmente um pouco de cada. Eu tenho momentos e momentos.

— Entendo. — lembrou-se do cigano — Gostas de baralho?

Paulo apenas assentiu com a cabeça e o cigano rapidamente pegou um baralho de cartas. Embaralhou-o impecavelmente, utilizando algumas manobras que eram muito interessantes de observar, a habilidade com aquele tipo de talento era ludibriante.

— Vinte e um és o número da vitória — disse o cigano — Este jogo eu nunca perco.

E ele tirou um dez de espadas.

— Não sou muito competitivo — alegou Paulo, retirando um quatro de ouros — Mas fiquei curioso.

— Diga-me, da tua mente, a primeira coisa — O pedido do cigano foi acompanhado de um cinco de espadas.

— Acho que sou viciado em amar — Paulo confessou e retirou um nove de paus.

— Não vejo isso como anormal — Ele retirou um seis de copas — Marquei um vinte e um.

— Às vezes eu me pergunto se eu preciso mesmo estar amando o tempo todo — Paulo suspirou, olhou para os lados sem um motivo específico e pegou uma carta, que era um seis de espadas — Por enquanto tenho dezenove pontos.

— Não precisas, meu jovem. E podes, se quiseres, desistir.

— Dois de copas. — anunciou Paulo, com um sorriso fraco e intensamente efêmero — Parece que deu empate.”

Os pensamentos foram martelando, como se cada problema fosse um prego fora do lugar. E daí vinha o questionamento do que era preciso se trocar: a madeira, os pregos ou o martelo? A mente, os problemas ou o pensar. “De você a mudança não fuja”. “De mudar a capacidade enfrente”.

E quando nenhuma consulta é capaz de mudar ideias, quando a tolice humana dá meia volta e retorna ao zero de forma anti-horária, são absurdos que nos cercam e visam nossa capacidade de acertar, às vezes sem querer. Tudo na vida acaba sendo sem querer. Ninguém escolhe nascer, ninguém escolhe morrer. E os que escolhem morrer foram porque tiveram um motivo que não puderam escolher. E aos que não tiveram motivos para isso simplesmente não escolheram a simples razão de viver.

Mas Paulo preferia escolher seus erros.

E o dia virou noite e virou dia mais rápido que o comum, na verdade o comum é imutável, porém perceptível de maneiras distintas, tom capacitivo humano de tornar tudo distinto e passível de interpretação. O último — e terceiro — dia era esperado. Porque da natureza vem a fome de obter o que preencher nas linhas de nossos questionamentos, e tudo que se ignora tem efeito futuramente, mas só no futuramente que é aplicável o efeito, o vulgo tarde demais.

Fechado.

“— Qual é a razão mesmo de todo esse contato inicial?

— Não descobrimos o futuro, elas não captam que escorre nelas este algo.

— Eu não tenho muita paciência para essas coisas — disse Paulo, olhando para o jogo empatado de vinte e um e mergulhando-se em pequenas constatações da tentativa de entendimento do porquê de ele estar ali.

— Há só, no futuro, uma razão única, meu jovem: de hoje ser o que vem depois. Porque o que ontem chega pode amanhã simplesmente ir.

— E qual o sentido das coisas chegarem para terem que ir depois?

— Destino.

Paulo estremeceu-se como se tivesse visto o Diabo.”

Fechado.

Simplesmente continuou seu caminho como se nem soubesse o porquê de estar naquela parte da rua, nem era perto da sua casa, muito menos de onde estudava, mas sabia o caminho de volta. Mesmo que tivesse um tanto complexado, era como se tudo tivesse sido relaxado, como se a dilatação finalmente tivesse um fim, e os pulmões tivessem sido descarregados de todo o carbono e não estavam nem um pouco apressados para iniciarem outro ciclo.

Continuou seu trajeto. Pensava em coisas simples, naquela música que não desgrudava da sua mente, no bolo de chocolate que seu tio fizera, até na essência das flores que nunca se importou em regar na sexta-feira da primavera passada. Continuou levemente, como cartas ao vento, baralhos intensos, e as previsões ainda sem respostas. Mas não sem respostas como antes. Sem resposta porque não havia pergunta. E ele erraria sempre e sempre e sempre. A diferença é que reparou que não tinha cura. Não porque era intensamente incurável. Simplesmente porque não era doença. E que doença? Que distúrbio? Não sabia mais de nada.

E agora o futuro nada mais era do que o ontem.

Os dois rapazes se cruzaram na rua.

Cada um com seu trajeto.

Dois corações pensando menos que nenhum.


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Notas finais do capítulo

Algumas considerações:
*"Moneramente" é um neologismo. "Monera" vem do Reino Monera, em Biologia, das bactérias; o sufixo "mente" é sinônimo de "de forma", ou seja, "de forma bacteriana" seria o significado mais próximo de "moneramente";
*Acho interessante a pesquisa das duas cartas "Dois de Copas" e "Roda da Fortuna" no tarot. Então deixarei link para os interessados:
2 de Copas - http://www.mundodotaro.com/2009/09/dois-de-copas.html
Roda da Fortuna - http://www.mundodotaro.com/2012/01/roda-da-fortuna.html



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