Terceira Lua escrita por Maria Capitu


Capítulo 5
Capítulo V - Salazar


Notas iniciais do capítulo

Neste capítulo conheceremos um pouco mais do Garoto Pesadelo. Boa leitura :3



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Agnes tocou a campainha esperando que o dono estivesse em casa.
 Ela havia escapado por pouco do alcance dos seguranças e torcia bravamente para que Artur não a tivesse denunciado. Caso contrário, ela estaria muito ferrada.
 Entregou o endereço ao taxista que custou a achar a casa isolada da civilização agitada do centro. Já passava da metade da tarde quando encontrou.
A porta se abriu. O Garoto Pesadelo usava apenas uma calça moletom cinza. Vê-lo descalço e sem camisa, tão informal, incomodou-a um pouco. Ela só não sabia dizer o porquê.
— Ora, ora, uma visita tão agradável no meio da tarde? Só poderia ficar melhor se fosse no meio da noite - ele abriu o típico sorriso.
 Agnes revirou os olhos.
— Posso entrar ou não?
— Por favor, meu anjo - Ele abriu a porta completamente e deu passagem à garota.
 Agnes passou pela porta tentando desviar o olhar o máximo do rapaz. Não funcionou muito bem, mas ela conseguiu disfarçar se virando para analisar o interior do cômodo.
 Era uma sala ampla e de muito bom gosto. A decoração moderna combinava perfeitamente com o dono.
— Não quer sentar? - perguntou ele obrigando Agnes a se virar em sua direção.
Ela não pôde evitar olhar para algumas pintas que se espalhavam pelos seus ombros, peito, abdome...
 Agnes pigarreou e balançou a cabeça se sentando no enorme e único sofá no centro da sala. Ela sentiu um calor repentino, o ar começou a ficar denso. Então observou que não havia nenhuma janela por perto, ou pelo menos nenhuma à vista.
— Como respira aqui dentro? Eu achei que caras como você gostassem de casas de vidro cheias de janelas e cômodos arejados.
Ele riu.
— Você anda assistindo muitos filmes de vampiros - ele se apoiou no braço oposto do sofá e esticou os pés no tapete peludo - Olha, na realidade não é bem assim que funciona... Mas acredito que não tenha vindo aqui pra falar sobre a arquitetura da minha casa.
 Ele a lançou um olhar sarcástico cruzando os braços sobre o peito. Os bíceps se contraíram assim como os músculos das costas. Diabos, Agnes desejou que ele parasse com aquilo. Um sorrisinho de lado se mostrou em seus lábios como se adivinhasse os efeitos que estava provocando na garota.
— Eu, hã... - Agnes esfregou os olhos apertando a ponte do nariz - Será que dá pra você vestir uma roupa?
— Tem certeza que quer mesmo isso, anjo?
 Ela fez um careta pra ele.
Ele riu e saiu para o cômodo seguinte. Uma tela na parede ao lado capturou a atenção de Agnes. Ela se levantou para admirar melhor. Uma pintura perfeita quase real esboçava um homem trajando roupas do início do século XIX por baixo de um sobretudo com capuz que o cobria da cabeça aos pés. A única pele à vista era a das mãos. A esquerda possuía um anel arredondado de bronze no indicador com um desenho em azul que Agnes não conseguiu identificar. Ela procurou a assinatura. “Salazar”, leu no canto inferior do quadro.
O celular vibrou voltando a sua atenção para a tela do aparelho. Mensagem de Ana.

"O que aconteceu? onde você tá?”
"Desculpa Ana. Eu tinha uma consulta depois da aula. Mais tarde eu te explico tudinho, mas agora não posso falar com você”
"Agnes!”
"Eu juro! Ah, se alguém perguntar por mim, por favor, diga que estou com você. Te amo".

Agnes guardou o celular de volta quando escutou alguém voltando. O rapaz vinha vestido em um moletom azul.
— Então... A que devo a honra da visita? Imagino que tenha alguma história para me contar - e se jogou no sofá.
— Você prefere que eu comece pela parte que eu quase tentei matar minha empregada ou pelo meu médico que quase tentou me matar?
— Seu médico? - ele se endireitou - como aconteceu?
— Eu estava numa consulta quando ele me perguntou o que tinha acontecido e eu não quis falar, então ele ficou maluco e tentou me furar com uma espécie de seringa que...
— Seringa? Em que área, exatamente, ele atua na medicina?
— Psiquiatria.
— É jovem? Quantos anos ele tem?
Será que todo mundo havia invocado com idade de repente?
— Eu sei lá, acho que uns vinte e cinco... Olha aqui, se você quer o número dele, pede de uma vez.
— Droga! - ele praguejou e se levantou até a estante pegando um celular - Um psiquiatra... Eu já deveria imaginar.
— Quê? O que foi?
— Ele é um Caçador - soltou ainda digitando no celular.
— Oi?
— O cara bonzinho que protege os humanos dos perigosos noturnos— ele disse com escarnio - São anjos criados para caçar e aniquilar os amaldiçoados.
— Mas ele é o meu psiquiatra há dois anos, como...?
— Isso só confirma ainda mais o que eu falei - interrompeu-a finalmente largando o celular - Você provavelmente não cedeu à sua hipnose como de costume e ele percebeu. Só há uma explicação para quem não cede à hipnose de um Caçador. Ser semelhante a ele.
— Como assim, hipnose? - perguntou confusa.
— Ah é, me esqueci de falar, você pode manipular humanos através da sua voz - ele contou - imagino que a tenha usado para se livrar do psiquiatra.
— Bom, isso explica porque o taxista aceitou me trazer até aqui, mas na verdade... - Ela puxou a adaga do quadril - Eu usei isso.
Ele ergueu uma sobrancelha intrigado.
— Olha só... Isso sim é surpreendente.
— Como isso — ela ergueu a arma - machucou um cara como ele? Achei que criaturas sobrenaturais não cedessem tão facilmente a coisas mundanas.
— Isso não é tão mundano assim. É um cobre especial, ponto fraco dos caçadores - explicou - Aliás, você deve evitar prata a partir de agora, isso pode lhe ferir.
Ele se aproximou e removeu com cuidado o broche de prata preso à pulseira de couro no pulso dela.
Um anel no dedo do rapaz prendeu sua atenção. Era uma exata réplica do anel da figura do quadro. Agora ela podia ver que o desenho em azul era na verdade uma letra "M".
— É o mesmo anel? - Agnes perguntou indicando a pintura com a cabeça.
Ele pareceu desconfortável tentando disfarçar o anel no dedo.
— É, eu... - ele pigarreou - Esse anel é uma herança de família, meu pai me deu.
— Por que seu pai está usando aquelas roupas? - ela perguntou sobre o homem do quadro.
— Aquele não é meu pai, é Martim Salazar. O pai dele pintou aquele quadro antes de... Morrer. Martim é o filho do Anjo da história que eu te contei. Minha família paterna é descendente dele.
— O amaldiçoado do sol?
— Sim.
Então era Salazar o seu sobrenome.
Ele ficou sério e baixou o olhar para as mãos. O silêncio dominou o cômodo.
— Tudo bem... Eu preciso ir agora, minha amiga deve estar maluca e, além disso, eu estou morrendo de fome.
— Você não pode! - ele gritou tão repentinamente que Agnes se encolheu.
— Digo... - continuou recuperando a postura - Você não deve sair sozinha assim com um Caçador atrás de você. Eu preparo alguma coisa pra você comer e depois eu te levo.
Ele se apressou casa adentro, provavelmente se dirigindo à cozinha.
— Tá bom - ela respondeu para o nada e o seguiu.



 Salazar ofereceu praticamente um banquete, mas Agnes optou por fazer apenas um sanduíche bem farto de atum e pasta de cenoura com maionese.
— Porque eu estava com tanta sede por sangue ontem à noite? Pelo que eu entendi isso só acontece quando é lua cheia.
— Sim, quando você se torna um noturno.
— Achei que você tivesse dito que eu sou uma.
— Você é.
Agnes o encarou confusa mordendo um pedaço do seu sanduíche.
— Bom, quase – ele completou - está no estágio de transformação. Lembra-se da profecia? “Onde o sangue impera e a beleza engana, por um longo ano viverás”. Todas as noites, seja de lua cheia ou não, durante exatos trezentos e sessenta e cinco dias, todos os seus sentidos a trairá e confundirá os seus sentimentos levando-a a pensar que tem apenas um desejo: sangue. Se cair em tentação se tornará uma noturna completa e definitivamente.
— E caso eu consiga suportar a tentação por todos esses dias?
Ele se remexeu na cadeira parecendo não querer falar. Mas acabou soltando.
— Então você se torna uma humana pra valer e volta a viver normalmente, livre de qualquer maldição e diversão do meu mundo.
“Se suportares o martírio, estarás livre da eterna maldição”, Agnes se lembrou.
— Mas – ele continuou - é muito improvável que isso aconteça, já que a única pessoa do universo que eu conheci e conseguiu tal proeza, enlouqueceu.
— Por que está fazendo isso? - perguntou a garota repentinamente.
— Isso o quê? - ele questionou fingindo não entender.
— Me ajudando - respondeu impaciente - o que você ganha com isso?
Ele ficou extremamente sério e em seguida sorriu sinceramente sem olhar para a garota.
— Eu sou o seu anjo da guarda, esqueceu? Estou aqui para te proteger.
Agnes sentia que havia alguma coisa por trás daquilo tudo, mas ela decidiu não insistir. Apenas continuou encarando o rapaz com intenso interesse e vontade de conseguir ver o que se passava por aquela cabeça enigmática. Enigmática, porém não completamente ilegível.
— Bom, eu acho que vou - ele se levantou - vestir alguma coisa descente.
E saiu apressado.

Agnes terminou o seu sanduíche e esperou na sala. Ela quase não resistiu ao impulso de subir e descobrir mais sobre Salazar, mas os passos nas escadas a deteve.
— Vamos? - Perguntou ele ao descer.
— Vamos - respondeu a garota.
 Agnes não se surpreendeu com o caríssimo modelo do carro do garoto. Na verdade ela não se surpreenderia se ele tivesse mais de um carro na garagem.
— Vai precisar que eu dirija, seu Ma...? – a voz do rapaz falhou.
— Mateus - Salazar ajudou o jovem motorista - Mateus, Josué. Você andou bebendo? Está de folga por hoje.
Ele soltou um risinho desconcertado, mas o motorista pareceu preocupado com a sua aparência. Talvez verificando se ele estava realmente de ressaca. Os dois entraram no carro e se afastaram da casa.
— É sempre assim tão generoso, Mateus? - Ela pronunciou o nome do rapaz devagar, incerta de que era mesmo aquele.
— Só quando me convém.
Ele sorriu. Aquele sorriso malicioso. Foi inevitável um pequeno sorriso se formar nos lábios de Agnes.
Eles seguiram a viagem até a casa de Ana.
— Sã e salva - disse quando chegaram.
— É, valeu - A garota estava prestes a sair, mas ele a segurou pela cintura.
— Temos que testar suas habilidades com isso, alguma hora - e desceu a mão até o quadril com a adaga.
 Agnes empurrou sua mão, nada gentil.
— Eu praticava esgrima, sei todas as técnicas usadas com uma lâmina.
— Aposto que não sabe arremessar.
Agnes comprimiu os olhos e sorriu acusatoriamente.
— Você está tentando arrumar um jeito para nos encontrarmos novamente?
— Acontecerá de uma forma ou de outra, é inevitável, meu anjo.
Agnes riu e balançou a cabeça olhando para a janela do carro. Ana se aproximava dela interrogativa.
— Depois resolvemos isso - ela desceu do carro.
— Tudo bem, eu te ligo.
Foi o que ouviu da janela do carro antes de ele arrancar em alta velocidade. Mas como poderia? Ela não havia dado o seu número. Decidiu que havia entendido errado.
— Olha aqui, eu já cansei de fazer perguntas, se você quiser entrar e me contar tudo por livre e espontânea vontade, será bem aceita.
Agnes se virou para a amiga e sorriu feliz em ouvir sua voz.
— Boa noite pra você também, Ana.

As duas subiram para o quarto e Agnes logo se acomodou à familiar cama da amiga. Ana fez o mesmo.
— Eric ligou, eu disse que estava aqui. Provavelmente tem algumas ligações dele no seu celular.
Agnes verificou e havia nove chamadas. Tão exagerado.
— É, acertou - retrucou - Você viu o Marco hoje?
— Não. Provavelmente estava te evitando por causa de ontem, mas, ah é! Eu não posso falar nada porque você não me contou o que aconteceu, não é verdade?
Agnes suspirou.
— Você está certa – começou - Eu conheci um cara antes do meu aniversário, ou reencontrei, sei lá.
— Como assim? Que cara? Aquele do carro? De onde você o conhece? - Ana arregalou os olhos e abriu a boca - Agnes, o que estava fazendo com ele, porque te trouxe? Amiga, você ainda é virgem?
— Calma Ana, eu... O quê? É claro que eu sou! - Agnes a encarou incrédula - Ele é só um conhecido que estava tentando me ajudar.
— Te ajudar como? - Ana perguntou desconfiada.
— É que eu esfaqueei o meu psiquiatra - Agnes disse num sussurro quase inaudível.
— Não entendi.
— Eu... Eu enfiei uma faca no Dr. Bastos - Ela soltou de uma vez.
— Você o quê? - ela gritou.
— Shhhh, fala baixo! - Agnes sussurrou - Olha, foi autodefesa, ele tentou me matar!
— Ãhn? Por que ele faria isso?
— Porque... - Ela começou, mas se conteve rapidamente.
Era melhor que ninguém soubesse de nada por enquanto.
— Eu não sei, mas o Mateus me ajudou a me livrar dele - ela mentiu torcendo para que Ana não perguntasse como ela conseguiu uma faca.
— Aconteceu tudo isso em uma tarde?
Ela não sabia nem da missa à metade.
— Parece que sim - Agnes respondeu - Mas antes disso, o Marco tentou me beijar e eu fugi dele.
Ana arfou colocando o rosto entre as mãos.
— Você não fez isso.
— Sim, eu fiz. Foi mal - se desculpou fazendo uma careta.
— Não é a mim que você deve pedir desculpas.
— Eu sei - suspirou - Mas agora provavelmente ele não vai querer me ver.
— Agnes, antes mesmo de gostarem um do outro, éramos amigos. Ele te conhece há tanto tempo, não iria ficar com raiva por uma bobagem dessas, ele seria muito idiota. Talvez só tenha ficado constrangido - Ela pegou sua mão como consolo.
Agnes podia sentir as veias da garota pulsarem de acordo com as batidas do coração que bombeava sangue deliberadamente para todo o seu corpo como um convite quase irresistível.
Ela balançou a cabeça ligeiramente e se afastou das mãos de Ana. Em que monstro ela tinha se tornado? Queria matar a melhor amiga!
— Você tem toda razão – falou rapidamente - Eu vou falar com ele! Agora eu preciso ir, a gente se fala amanhã, tá?
Ela não quis se aproximar para beijar-lhe o rosto com medo de que não pudesse resistir se chegasse mais perto, então saiu do quarto o mais depressa, antes que ela desconfiasse, ou pelo menos antes que houvesse tempo de fazer perguntas.



"Olá, senhor Catalano. Como foi o dia? Espero que bem, porque, caso contrário, eu me sentiria um pouco culpada. Eu só quero pedir desculpas pelo que aconteceu, e perguntar se podemos nos ver para que eu possa, de alguma forma, me redimir. Durante o dia, de preferência.

Atenciosamente, srta. Alencar.”


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Notas finais do capítulo

Agnes conseguiu escapar de confusão só por um capítulo, mas ela não vai conseguir ficar muito longe dela por muito tempo. Espero que tenham gostado.



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