P.O.V. Karina

Abri os olhos devagar e pisquei algumas vezes antes de conseguir focá-los no relógio que ficava na cabeceira ao lado da cama. 6:35. Muito cedo para levantar em um domingo. Me virei para o outro lado, com a esperança que o sono viesse novamente, mas como Murphy era muito inteligente, sua Lei não deixou de falhar essa vez e, no único dia que eu poderia dormir até tarde, eu acordei cedo. Então melhor eu tratar de levantar logo e utilizar esse tempo ocioso pra treinar.

Sentei na cama e olhei para frente, pude ver que Bianca estava em dormindo profundamente em sua cama. Alguns raios de sol já entravam pela veneziana, permitindo que eu a observasse com clareza.

Minha irmã, querida irmã. Depois de toda raiva, dor e decepção eu consegui perdoá-la por ter pago o Pedro para me namorar.

Agora eu até acho que ela o fez em um ato impulsivo de inocência. Quando éramos crianças, prometemos que sempre ficaríamos unidas e que nossos namorados seriam melhores amigos para que pudéssemos sair todos juntos. Talvez, quando ela percebeu que amávamos o mesmo homem, ela tenha se assustado e se desesperado com a possibilidade dessa promessa infantil nunca se realizar.

Não que isso torne o que ela fez perdoável, mas dizem que não se pode culpar alguém pelo seu erro quando este é cometido na ignorância.

Ela foi tola em não pensar na possibilidade de que eu viveria um relacionamento baseado na mentira e que sendo assim, eu jamais poderia ser realmente feliz. Foi tola ao pensar que eu jamais descobriria a verdade, pensando que vivíamos em uma bolha onde as pessoas não são más e, que todos nós poderíamos ser uma família feliz.

Ela, uma artista que namora um lutador, e eu, uma lutadora que namora um artista. Pensando por esse lado, nós seriamos o grupo perfeito nos encontros. Enquanto Duca e eu conversássemos sobre luta, seriamos mais recatados e não demonstraríamos tanto nossos sentimentos, Bianca e Pedro fariam o papel de dois bobos apaixonados, cantando, dançando e encenando peças sobre o nosso amor.

Seria impossível eu não perdoar Bianca, ela é minha irmã, meu sangue, minha família. Nós crescemos juntas, desde pequenas tivemos que nos apoiar uma na outra devido a morte de mamãe. Contávamos histórias, brincávamos e ela me usava de cobaia quando fingia ser cabeleireira, me penteando e arrumando. Eu a amava desde antes de saber meu próprio nome e a perdoaria até mesmo se ela tivesse matado alguém.

Não foi fácil, não está sendo fácil. Estou aprendendo a confiar nela novamente, me atrevo até a dizer respeitá-la de novo. Respeitá-la sim, porque ela mostrou ser mais forte do que eu lhe dava crédito quando todas aquelas mentiras surgiram, desde o Lobão dizendo ser meu pai, até o Pedro.

Ela queria que meu pai contasse sobre a suspeita de minha mãe tê-lo traído, achava que eu merecia saber da verdade. Irônico pensar nisso quando, na época, ela própria queria manter escondido o fato de ter pago o Pedro para ser meu namorado.

Mas ela nunca desistiu de mim, mesmo quando eu tentava afastá-la ao lhe maltratar. Ela sempre voltava e insistia, até demais, em falar comigo, pedir meu perdão. Essa persistência dela me fez começar a perdoá-la, pois acredito que quem ama luta, corre atrás, mesmo com o outro lhe tratando tão mal. Se ela não me amasse, não se importaria comigo, me ignoraria e continuaria vivendo sua vida. Me fez pensar que 'se ela não desistiu de mim, então eu não vou desistir dela', sei lá se isso faz muito sentido, a questão é que não sei como é não amar a Bianca. Mesmo sendo mimada e egoísta as vezes, ela também sabe ser cuidadosa e amorosa.

Chega de pensar bobeira, Karina. De ficar perdendo tempo, lembrando de tudo o que já passou, não vai melhorar a sua vida.

Então, vou até o banheiro, tomo um banho, arrumo o cabelo e escovo os dentes. Não paro para tomar café da manhã. Já demorei demais em meus devaneios mais cedo, daqui uma hora o sol já vai estar extremamente forte e inviável para praticar exercícios físicos.

Escrevo um bilhete curto informando que saí e que volto no máximo em duas horas, deixando em um lugar visível para que o “Mestre Cruel” não derrube o bairro, caso não me veja em casa.

Antes de sair, pego uma barra de cereais e desço as escadas já a devorando no caminho. Ao chegar na rua começo a me aquecer e olho ao redor para a praça. Tudo está como sempre esteve, nem parece que minha vida mudou tanto nos últimos meses. Descobri a traição do Pedro, junto com os outros, e que o Lobão era meu pai. Com isso, tive que mudar para a casa da Nat, onde fiquei até ela ir embora, me aproximei mais do Cobra, mudei para a casa do Lobão e finalmente descobrir que ele havia mentido. Pelo menos uma das mentiras da minha vida acabou se tornando uma coisa boa, depois de comprovada a fraude no processo de paternidade, o Lobão foi preso e eu finalmente voltei para a minha casa e para minha família.

O sol já surgiu, o céu está claro e sem nuvens, Perfeitão está fechado, assim como o QG, e a academia nem abrir hoje vai. Queria poder treinar jabs e chutes, talvez mais tarde o Cobra deixe eu usar o saco de areia, se ele não for sair com a “dama” dele.

Não sei como ele suporta aquela garota que vive achando que é superior a todos, só sabe fazer mal as pessoas ao seu redor e não se importa em usar os outros como objetos para alcançar seus objetivos. Certeza que ele só está com ela, pois ela se joga em cima dele toda hora, só usa roupa curta e tem um corpo bom, afinal, o Cobra é homem, e como os caras da academia falam, a Jade é “gostosa” e pra eles é só isso que importa. Bando de idiotas.

Por que será que eles acham que usar roupas que podem ser encontradas na ala infantil é atraente? Não consigo nem olhar quando o Cobra e ela ficam se agarrando no meio da rua, ela começa beijando aqueles lábios carnudos dele e depois de um tempo ele explora o pescoço dela, roçando sua barba mal feita até que... Nada Karina! Não tem nada haver com você o que eles fazem quando estão juntos! Se o Cobra escolheu ficar com ela então felicidades para ele.

Chega de ficar pensando naquele projeto de ser humano, já me irritei mesmo, melhor ir correr logo pra ver se me acalmo e depois voltar para casa, a tarde eu e o Pedro vamos fazer “um programa de casal”, segundo ele. Vamos visitar um zoológico, só a criança do Pedro, que acompanha a mentalidade da Tomtom, pra querer ir lá ver o novo leão que chegou da África. O engraçado é que ele disse que vai se inspirar no animal para a nova música dele, tenho até medo de ouvir o que vai virar isso.