Abismo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 5
Carta, fraqueza e conversões.


Notas iniciais do capítulo

Mais dois personagens novos. András: http://38.media.tumblr.com/868d0a808cd943ceae4a94b957a70f08/tumblr_inline_nmjo4oU04s1t6x4e6_500.gif - Rafael: https://33.media.tumblr.com/84526042eb5ae1fe305389dcbb4473f1/tumblr_nchxoyXixH1tcbhsqo1_250.gif - (Eu seeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei, eu sei, "András? Que porra de nome é esse?", gente, é norueguês djhbfjsdvhfh, eu pesquisei). Espero que gostem.
Para os que shippam Josélie: shippem a vontade, tem muito pra shippar nesse capítulo
Para os que não gostam de yaoi: VAI TER VIADO SIM, E SE RECLAMAR EU FAÇO O JOE SER BI, BJOS DE LUZ



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Joseph estirou-se, suspenso como sempre, e apoiou a cabeça nas mãos, olhando para o chão, que estava coberto de névoa. Ficava daquele jeito na maioria das noites, especialmente no frio. Tudo era coberto por névoa: uma névoa espessa. A respiração tanto de Joseph quanto de Adélie podia se ver no escuro.

Adélie deitou-se a alguns centímetros de Joseph, em cima do casaco. Respirou fundo o ar úmido e gelado.

–- Está com frio? – ela perguntou para Joseph, em voz relativamente baixa. – Porque eu estou congelando.

–- Sim – respondeu Joseph, no mesmo tom. – Sabe, toda noite eu me pergunto se a Jac está com frio. Tipo, ela tá sozinha. Completamente sozinha – Joseph virou a cabeça para Adélie. – E você? Se preocupa com alguém?

–- Meu pai – confidenciou Adélie. – Eu não tenho ideia de onde ele está.

–- Quando ele foi levado?

–- Há um tempo. Eu perdi a conta dos meus dias.

–- Eu também – admitiu Joseph. Os dois ficaram em silêncio. Não conseguiam ouvir nada além de suas próprias respirações. Tudo era silencioso e escuro, úmido e frio. As noites sempre foram daquela maneira, mas nunca tão assustadoras.

* * *

–- Eles vão chegar de manhã – disse Häns, satisfeito, desligando o walkie-talkie. Jacques revirou os olhos.

–- Eu não vou conseguir dormir desse jeito. Sabe, eu preciso disso pra já – ela disse.

–- Amanhã de manhã, Jac – Häns encostou o aparelho na mesa, sentando-se num banco. – Eu nem te perguntei pra quê você precisa disso.

–- Pra ajudar o Joe, eu já disse – retrucou Jacques.

–- Como isso vai ajudar ele? Onde ele está?

–- Eu não sei. Mas eu logo vou saber se isso der certo.

Häns ficou em silêncio por um momento.

–- O que você está planejando, afinal? – ele perguntou, relaxando os ombros. – Como isso vai funcionar?

–- Eu deixei uma carta – começou Jacques. – Com um amigo meu. E daí ele... Vai encontrar o Joe. Ele consegue rastrear o Joe. Não me pergunte como, porque eu não perguntei. Eu não tenho como ir, afinal. O chip está desativado. Enfim. Ele vai entregar a carta. No verso, tem a localização exata de onde eu implantei uma árvore. Só que a árvore precisa de um complemento. Qualquer um.

Häns voltou a ficar em silêncio. Depois, assentiu.

–- Entendo perfeitamente – ele concluiu. – Já está tarde. Vamos dormir. Eu fico no sofá. Você sabe onde é o quarto.

Jacques despencou na cama assim que entrou no quarto, caindo profundamente num sono sem sonhos.

* * *

Adélie acordou com um barulho estranho em algum lugar atrás dela.

Não tinha certeza se era exatamente atrás dela, na frente ou dos lados, porque o som quase não se propagava. Mas ela ouviu mais uma vez e se sobressaltou. Sentou-se, esfregando os olhos e olhando para os lados, mesmo que fosse inútil, porque estava escuro.

O barulho se repetiu, dessa vez mais alto. Ela sacudiu Joseph pelo ombro. Ele emitiu um grunhido.

–- Ei – Adélie chamou, se levantando. – Eu ouvi alguma coisa.

–- Que bom pra você – murmurou Joseph, virando de lado. O barulho se repetiu mais uma vez, mais perto ainda, e Joseph abriu os olhos. – O que foi isso?

Adélie virava o rosto para os lados, mas tudo era uma imensidão de névoa. Girou até ficar tonta, e o barulho se repetia, se aproximando cada vez mais. Joseph fazia o mesmo, de olhos semicerrados.

Adélie balançou os braços a sua frente, na esperança de dispersar a névoa. Mas não conseguiu. Deu alguns passos pra frente, virou-se, e não conseguiu mais ver Joseph. Virou-se, agitando os braços em todas as direções. Ouviu novamente o barulho.

–- Joe? – ela chamou. Deu passos novamente na direção de que veio, mas Joseph não estava mais ali. – Joe?

O barulho estava ainda mais perto. Em algum lugar, ela ouviu murmúrios, mas não conseguiu diferir de quem eram nem o que diziam. Tentou ir na direção das vozes, mas elas pareciam distantes. Virou-se, cambaleou, virou-se de novo, caiu de joelhos, levantou-se, agitou os braços.

O pânico tomava conta dela. De repente, alguns metros à frente, ela viu uma pequena luz. Parecia uma luz de lanterna. Receosa, Adélie avançou. A luz que a lanterna emitia iluminava um pequeno papel, parecendo uma carta, e mãos ossudas que seguravam o papel.

–- Joe? – a voz de Adélie saiu sufocada. No momento que ela estava chegando perto da luz, tudo desapareceu e ela voltou a ficar no escuro. Só via a própria respiração condensando-se no ar pesado. – Joe?

–- Oi – a voz de Joe disse. Adélie sentiu uma mão no seu ombro e virou-se. Viu os traços de Joseph, ou traços que pareciam ser de Joseph. – Eu só... recebi uma carta.

–- Uma carta? – Adélie indagou. Joseph ergueu o papel.

–- Era um amigo da minha irmã – ele explicou. Olhou para Adélie e, mesmo no escuro, ela teve impressão de que os olhos dele brilharam. – Ela tá viva, entendeu? Ela tá viva.

Adélie arqueou as sobrancelhas. Era um jeito estranho de avisar, mas Adélie tentou ficar feliz, por mais que o frio, o sono e o pânico não ajudassem.

–- Bom – gaguejou Adélie. – Bom. Ótimo. Eu fiquei com medo.

–- Eu também – disse Joseph, voltando a sentar-se. Adélie despencou ao lado dele, se encolhendo em seu casaco. – Mas pelo menos eu tenho uma certeza. Pelo menos uma.

–- Isso é ótimo – disse Adélie. – Agora posso, por favor, voltar a dormir?

–- É claro, mon cher.

Adélie se virou, mas sabia que não ia conseguir dormir. O pânico ainda corria nas veias dela, e seus olhos simplesmente se recusavam a fechar. Ela virou a cabeça pra trás, e viu que Joseph ainda estava sentado.

–- Você não vai conseguir dormir também? – indagou Adélie, mantendo a voz baixa.

–- Não – respondeu Joseph, passando as mãos no cabelo desarrumado. – Não pelos próximos mil anos.

Adélie sentou-se, esfregando o rosto. Olhou para Joseph. Ele estava sério, com um rosto meio deprimido, pra falar a verdade. Tinha olheiras profundas e parecia mais pálido do que de costume.

–- Você está bem? – Adélie perguntou.

–- Nada está bem – ele retrucou, em voz baixa. Olhou para Adélie. – Mas tudo vai ficar bem, eu acho.

–- Você é otimista – observou Adélie. – O mundo vai te engolir, te triturar e te cuspir fora.

Joseph riu baixo.

–- Ele já fez isso – Joseph disse. – Várias vezes.

–- É – murmurou Adélie. – Comigo também.

Joseph suspirou, olhando pra frente.

–- Você vai achar seu pai – ele comentou. – Eu sei que vai.

–- Eu não tenho fé nisso, Joe – murmurou Adélie. – Eu não tenho fé em mais nada.

Joseph maneou a cabeça.

–- Deve ser difícil, mesmo. É difícil. Mas eu acho que isso é a única coisa que nós temos.

–- Nós não temos nada, então – Adélie disse, se deitando e fechando os olhos. Sentiu Joseph deitar-se ao lado dela novamente, provavelmente de olhos fechados também.

Somos patéticos, Adélie pensou.

* * *

Jacques se esticou debaixo dos cobertores, pensando no quanto era maravilhoso dormir em uma cama, não em um galho de árvore. Pulando para um galho, ela saltitou até a cozinha de Häns, que devorava um pacote de bolachas. Ele levantou o rosto e olhou para ela.

–- Olá, Jac – ele cumprimentou. Esticou a caixa. – Quer biscoito?

Jacques sentou-se numa cadeira, tomada pela vertigem. Abocanhou um biscoito e ouviu um grito.

–- Häns! – alguém berrou. – Seu norueguês de merda!

Häns riu alto e caminhou até a ponta da árvore.

–- Entra, Rafa – ele berrou de volta. Voltou-se para Jacques. – Eles chegaram.

O primeiro garoto era alto como Häns, só que mais jovem, com o cabelo louro mais descabelado. O segundo garoto era negro e igualmente alto, igualmente jovem, com cabelos pretos crespos e curtos.

Jacques gelou.

Eles estavam de mãos dadas.

–- Esse é meu filho – Häns apontou para o garoto louro.

–- Um dos – corrigiu o garoto, sorrindo. – Meu nome é András.

–- Esse é o namorado dele – Häns apontou para o garoto negro. – Rafael. Ele é brasileiro, não?

–- Eu sou brasileiro, não alienígena – disse Rafael.

Jacques não conseguiu emitir nenhum som. Não pelo fato do filho de Häns ser gay, mas pelo fato dela sempre achar que Häns era homofóbico. E racista. Achava que Häns não aceitaria um negro respirando o mesmo ar que ele. Não sabia porque tinha essa impressão, mas simplesmente piscou algumas vezes pra se recuperar.

–- Ah... Oi – Jacques disse. – Hum... Eu não vou poder levantar daqui pra cumprimentar vocês, senão eu meio que caio e morro. Vocês podem vir aqui, por favor? Não estou a fim de morrer hoje.

Rindo, os garotos se aproximaram. Depois que os apertos de mão acabaram, Jacques os seguiu, se segurando nos galhos, até a sala de trabalho de Häns. András se sentou num banco na frente de uma mesa lateral, enquanto Rafael começou a mexer no notebook de Häns como se fizesse isso há séculos.

Jacques se limitou a se sentar em cima da mesa e começar a falar.

–- O Häns falou pra vocês, não falou? – ela perguntou. – O que eu pedi e tal.

–- Sim – Rafael disse. – E eu sou ótimo com falsificações.

–- Ele falsificou um passaporte pra gente ir pra Bélgica antes da Ruptura – András riu. – Foi muito legal. A gente nadou na costa norte.

–- A Bélgica não é fria? – perguntou Jacques.

–- Não me lembro – admitiu András.

–- Ah, eu não me importei nem um pouco – disse Rafael, finalmente se virando pra Jacques. – Então você precisa de um complemento pra árvore?

–- Sim. Só de fachada. Eu fiz curso de Biotecnologia, mas não concluí o semestre de burocracia – Jacques revirou os olhos. Rafael riu.

–- Certo. Isso vai ser fácil. Mas onde você conseguiu uma Esfera?

–- Roubei, desativei o GPS e as Funções Externas, roubei uma autorização.

–- Tá aí – András bateu palmas. – Gostei dessa garota. Vamos trabalhar.

* * *

Adélie acordou com um cutucão de Joseph.

–- Ellie, temos que ir. Deve ser tarde.

Adélie se espreguiçou, levantando muito devagar. Os acontecimentos do dia anterior arrastavam-se lenta e dolorosamente pela sua cabeça. Sentia uma enxaqueca terrível. Joseph olhou para os lados.

–- Estamos exatamente no mesmo lugar de antes – ele concluiu. – Ah, isso é ótimo. Maravilhoso. Esplêndido. Temos que continuar.

Adélie arrastou os pés, andando ao lado dele. O frio da manhã ainda não havia dissipado totalmente a névoa, mas ela já conseguia ver as coisas com mais clareza. Olhou para Joseph, com as mesmas olheiras e a mesma cara de morto do dia anterior.

–- Onde fica esse esconderijo do seu grupo? É seguro? – Adélie perguntou.

–- Não muito, mas digamos que na carta dizia que a Jacques tinha um lugar novo – Joseph limitou-se a estender a carta para Adélie. – Quer dizer, não dizia exatamente isso, mas ela deu a entender.

–- E é pra lá que vamos? – perguntou Adélie.

–- Ah, é – Joseph parou na frente de Adélie, coçou a cabeça. – Eu nem falei com você sobre isso. Você quer vir?

–- Hã?

–- Tipo, eu te comprei, a gente conversou e você me seguiu, e foi isso aí. Mas eu não te perguntei se você quer. Tipo, você vai estar fudida por aí sozinha, mas se você quiser, eu sei lá... Morrer, pode ir. Não vou dizer que não me importo, porque eu me importo, mas você é você.

Adélie olhou para Joseph, depois para a carta, depois olhou pra baixo. Não tinha nenhum caminho, não tinha escolhas. Não tinha pra onde ir, uma vez que não sabia exatamente onde estava.

Olhou pra Joseph de novo.

–- Eu vou com você – ela concordou. – Nada pode ficar pior.

–- Não subestime a vida – Joseph alertou, voltando a andar. – Precisamos conversar pra passar o tempo, senão andar vai ficar insuportável.

–- Conversar? Sobre o quê? – Adélie perguntou.

–- Sua vida antes da Ruptura – explicou Joseph. – Quem você era.

Adélie pensou um pouco.

–- Eu gostava de andar de bicicleta e de ouvir música indie. Eu gostava da primavera, gostava de boinas e gostava de café. Eu ia a todos os lugares de bicicleta, e de noite eu deitava na cama e pensava em alguém.

–- Quem? – quis saber Joseph.

–- Depende de quem eu gostava – riu Adélie. – Era patético. Mas era uma vida. Eu tinha playlists pra tudo. Pra dormir, pra comer, pra acordar, pra tomar banho, pra ler, pra estudar. Eu era a rainha das playlists. Eu colocava as músicas no aleatório e mudava até chegar em uma que eu gostasse. Eu ouvia a mesma música mil vezes até enjoar.

–- Eu sinto falta de músicas – comentou Joseph. – Faz um tempo que eu não ouço nada.

–- Nem eu – concordou Adélie. – O que você ouvia?

–- O que você acha que eu ouvia?

–- Músicas tristes dos roqueiros observadores de sapatos.

–- Roqueiros observadores de sapatos?

–- É. Aqueles que tocam olhando pro chão.

Joseph riu.

–- Um pouco – ele concordou. – Eu gostava de indie. Mas eu preferia música boa, sabe? Não tem que ter gênero. O que viesse e eu gostasse, eu ouvia. Era isso.

Adélie pensou um pouco.

–- Se lembra de alguma que gostava?

Joseph fez força pra lembrar.

–- Drawing Board – ele disse. – George Ezra.

–- Eu gostava desse cara – murmurou Adélie. – Minhas amigas eram completamente apaixonadas.

Joseph riu.

–- Jacques também – Joseph comentou. – Acho que é uma das poucas músicas que eu ainda me lembro... I'll fill your pillow case up with snakes, the man eating kind, though you call your self a women, I doubt it they would mind...

–- Oh, mind , oh – continuou Adélie, em tom baixo. – Oh, mind – olhou para Joseph, que sorria. – Não, não vamos cantar. Isso não é High School Musical.

–- Você nem tem mais idade pra estar na High School – Joseph provocou.

–- Você nem sabe minha idade.

–- Então me conte.

–- 26.

–- Está brincando.

–- Não.

–- Eu sou três anos mais novo e dez centímetros mais velho.

–- Pois é. Merdas acontecem.

Joseph balançou a cabeça.

–- Então me fale você sobre a sua vida – disse Adélie.

–- Eu era um meio-termo – disse Joseph. – Eu ficava oscilando entre adolescente rebelde e adolescente estudioso.

–- Me explique isso.

–- Eu pulava o muro do colégio pra ir na biblioteca.

Adélie riu.

–- E Jacques? – ela perguntou.

–- Muito mais inteligente que eu. Muito mais popular – Joseph admitiu. – Acho que ela não deveria morrer nunca.

* * *

Jacques imergiu no trabalho, deixando todas as suas outras preocupações na superfície, bem longe.

Ela, Häns, András e Rafael pareciam formar uma harmonia no trabalho, o que deixou as coisas incrivelmente ágeis. Enquanto Jacques falava, András redigia, Rafael trabalhava no aperfeiçoamento da velha impressora que Häns salvara de um fim trágico.

–- Eu acho que eu dei um jeito no papel – András disse, finalmente. Estendeu para Häns. – Olhe. Eu acho que está bem parecido.

–- Acho que está um pouco grosso, na verdade – Häns examinou. – Talvez eu tenha um repartidor de fibras em algum lugar lá atrás.

–- Eles vão perceber se for um pouco mais grosso? – perguntou Jacques.

–- Eles percebem tudo – respondeu András, dando de ombros. – Isso até que é fácil. A parte mais difícil ficou com o Rafa.

Häns e András sumiram por outra porta, e Jacques olhou para o notebook em que Rafael trabalhava. Estava velho, meio sujo e meio grudento, com fiapos de lã grudados no teclado e adesivos velhos em cima da tela. Rafael trabalha freneticamente.

–- Como está indo? – perguntou Jacques.

–- Relativamente bem – Rafael respondeu, sem tirar os olhos da tela. – Eu não preciso quebrar firewalls, só copiar modelos. O problema é achar a fonte certa, o tamanho certo, o espaçamento, tudo.

–- Não dá pra simplesmente usar ctrl c, ctrl v?

–- Você sabe que as Esferas são mais do que Esferas, não sabe?

–- Sei.

–- Então. Um complemento não precisa ser autêntico, mas ele tem que parecer autêntico. As Esferas são muito mais minuciosas para examinar do que nós. Nenhum homem, mulher ou alienígena conseguiria perceber se a grossura do papel é tal, se o espaçamento é tal,. Só com uma máquina super capacitada. Mas as Esferas conseguem. Porque elas tem um scanner que examina de onde o papel veio, o terminal que o complemento foi feito, tudo o que nós, mortais, não conseguimos.

–- Não seria mil vezes mais simples tirar o scanner da Esfera e usar como um scanner superinteligente?

Rafael suspirou, movendo os olhos do computador para Jacques.

–- Seria. Mas o scanner faz parte da Esfera. Seria como tirar neurônios de um cérebro – ele explicou.

–- As pessoas tiram neurônios de cérebros o tempo todo – argumentou Jacques.

–- Sim. Mas, pra nossa sorte, não conseguem tirar o scanner da Esfera sem que ela pare de funcionar.

–- Ela ia parar de Ramificar – murmurou Jacques. – Ela não ia produzir energia.

–- Ia virar uma bola de basquete inútil – Rafael confirmou, voltando sua atenção para o computador.

–- Tem algo que eu possa fazer? – perguntou Jacques.

–- Hã... Se o Häns tivesse outro notebook, talvez. Mas, por ora, só preciso da sua opinião. Vem cá – Rafael puxou a cadeira de Jacques pra mais perto. Na tela do notebook, duas janelas abertas simultaneamente, dividindo espaço na tela. Ele apontou para a direita. – Esse é complemento original. O padrão. Se nós imprimíssemos ele, a Esfera ia aceitar.

–- Por que não fazemos isso? – Jacques olhou para Rafael.

–- Porque não é o complemento certo. O complemento que precisamos é tipo uma justificativa. “Mas por que você precisa de uma árvore?”. É uma pergunta idiota que as Esferas fazem pra todo mundo. Mas essa aqui é só um modelo, não se preocupe com ela. Se preocupe com essa – Rafael apontou para a janela da esquerda. – Essa é a que eu estou montando. Vamos imprimi-la, depois apagar ela do computador do Häns pra não poderem rastreá-la.

–- E pra quê você precisa de mim? – perguntou Jacques.

–- Olhe de perto – sugeriu Rafael. Jacques aproximou o rosto da tela. – Vê alguma diferença?

–- Hum... Não sei. Tem alguma coisa estranha.

–- Estranha como?

–- Maior.

Rafael clicou algumas vezes.

–- E agora? – ele perguntou. – Eu diminuí o espaço entre as linhas.

–- Não, não é isso – negou Jacques. Apontou para as beiras. – Diminui o espaço de borda.

–- Mas é igual. 2, 9.

–- Faça isso, por favor.

Rafael clicou.

–- É isso – Jacques concordou. – Está pronto?

–- Não. Precisamos revisar. A Esfera é inteligente, se tiver um erro gramatical, ela vai perceber – Rafael foi até a primeira página, depois Jacques leu e releu tudo umas três vezes, até cada palavra estar praticamente tatuada dentro de seu cérebro.

* * *

Os membros de Adélie desabaram pela segunda vez.

Nunca pensou que poderia se sentir tão fraca. Sua cabeça girava e doía. Seu estômago parecia querer saltar pra fora, sua garganta ardia e seus pés formigavam. Até falta de ar ela sentia.

–- Meu Deus – murmurou Joseph. – Ai, meu Deus.

Adélie se encolheu, ou tentou se encolher. Tremia de frio e de fraqueza. Tudo a sua volta girava e, por vezes, sua visão escurecia. Joseph sentou-se ao lado dela, colocando as mãos em seus ombros.

–- Ei, Ellie – ele murmurou. – Tudo bem. Vamos dar um jeito, ok? Não caia.

Adélie assentiu. Ou tentou assentir. Joseph olhou pra baixo, franziu o cenho e voltou a olhar para Adélie.

–- Acha que consegue controlar sua estabilização? – ele perguntou.

–- Talvez – Adélie murmurou, em voz baixa.

–- Bom. Vamos ter que descer uns 15 metros. Acha que consegue?

Adélie balançou negativamente. Joseph enfiou a mão no bolso e tirou uma garrafinha pequena, com um líquido que tinha uma cor estranha. Estendeu para Adélie.

–- Talvez isso ajude – ele disse.

–- O que é? – Adélie grunhiu, pegando a garrafa com a mão trêmula.

–- Eu não tenho certeza, mas até que é gostoso.

Adélie abriu a garrafa e bebeu um gole. Era meio adocicado e meio amargo.

–- Isso é licor velho – ela murmurou, bebendo mais um gole. – É bom.

–- Licor? Ah, ótimo. Agora vamos. Eu te ajudo, certo? Se concentre – Joseph pediu. Adélie se sentiu momentaneamente melhor. Piscou duas vezes. – Pronta? Bom.

Joseph segurou no pulso de Adélie. Ela segurou no antebraço dele. Olhou pra baixo.

–- Um. Dois. Três.

O mundo começou a passar diante de seus olhos, na vertical, como se ela mergulhasse fundo nele. Formas giravam em frente aos seus olhos e cores se misturavam. Adélie lutou, e não se entregou a vertigem e a fraqueza. Manteve toda a sua concentração em não gritar.

–- Pare! – ouviu Joseph dizer.

Dobrou as pernas, encolheu o corpo e fechou os olhos. Sua mente ainda girava quando seu corpo parou, subitamente, suspenso no ar. Ela respirou fundo mais quatro vezes antes de levantar as pálpebras, devagar.

Olhou para seu braço direito. Joseph estava ao seu lado, com os cabelos armados por causa do vendo e o rosto pálido. Ela ainda estava encolhida, e ele também. Joseph olhou para os lados, depois levantou devagar, levando Adélie junto.

–- Conseguimos – ele murmurou, satisfeito. – Bom. Ótimo.

Adélie olhou para os lados. Pessoas andavam, falavam e gritavam. Algumas passavam os olhos por Joseph e Adélie, olhavam feio e desviavam o olhar. Adélie percebeu que ainda segurava forte a garrafa de licor.

–- Isso foi estranho – ela murmurou.

–- Certamente – Joseph concordou. – Mas vamos arranjar alguma coisa pra comer, eu sei lá.

–- Quanto você tem?

–- O suficiente.

Adélie andou ao lado de Joseph, ainda com as pernas trêmulas. Suas pálpebras pesavam, mas não de sono. Depois que Joseph deixou-a encostada em uma parede para ir procurar algum lugar em que tivesse algo para vender (era uma coisa meio rara naquela região), Adélie se segurou na beira de uma janela para se apoiar.

Adélie sentia-se desolada. Nunca estivera tão mal. Além da fraqueza, percebeu, de repente, que estava sozinha. Joseph era gentil, mas era um estranho. Sua mãe havia morrido há muito, seu pai havia desaparecido como que por mágica, e o resto de sua família... Bem, que família? Não conhecia direito a família por parte de mãe, e seu pai era filho único, com os pais separados e igualmente desaparecidos.

Fragilidade e vulnerabilidade nunca havia sido um problema para ela. Nunca fora fraca, magricela, insegura. Era uma garota, e aquilo bastava. Fazia as coisas certas, fazias coisas erradas, era ela. Nunca muito magra, nem muito gorda. Nem muito bonita, nem muito feia.

E ali estava ela, a visão completa da miséria.

* * *

Jacques estava equilibrando o papel na vertical, entre os dedos. Ele parecia perfeito.

–- Eu achei ótimo – ela concluiu.

–- Eu achei fino demais – comentou András, passando o dedo por cima.

–- Deixe disso – interrompeu Häns. – Vamos, me ajude a converter a impressora.

Jacques ajudou András e Häns a abrir a parte inferior da impressora velha, enquanto Rafael terminava o complemento. Quando a impressora abriu, poeira voou para os lados. Jacques espirrou e espiou.

–- Parece normal – ela comentou.

–- É normal – Häns explicou. – Esse é o problema.

–- Temos que converter, não é? Como vamos fazer isso? – perguntou András.

–- Jac, você fez especialização em Biotecnologia, não? – perguntou Häns, se virando para a garota.

–- A minha área era Energia e Ramificação – alertou Jacques. – Não impressoras.

–- Mesmo assim, venha cá – chamou András. Jacques aproximou o rosto. – Agora, veja. Está vendo aquela tela? Está escrita automatic. Significa que ela é apenas para coisas técnicas, digamos. Acho que você entendeu.

–- Sim.

–- Precisamos mudar para biotenic.

Jacques ergueu a coluna, passando a mão no rosto e apoiando o queixo no torso da mão. Apertou os olhos. Segundo a sua experiência com tecnologia, para mudar o modo de agir de um equipamento de fábrica, o sistema tinha que se converter por completo.

–- Vai levar umas duas horas – ela concluiu. – Isso, se tivermos os equipamentos corretos. Se confundirmos uma válvula com outra, essa impressora pode virar um aspirador de pó ou uma torradeira.

–- Está brincando – disse Rafael, tirando os olhos do notebook.

–- Não, não estou – negou Jacques. – Precisamos reconfigurar isso manualmente.

–- E se nós conectássemos no notebook ou fizéssemos remotamente? – sugeriu András.

–- O notebook não tem sistema pra isso – avisou Rafael. -- Não tem energia e nem um firewall adequado. Isso é de antes da Ruptura, não ia aguentar uma tarefa como conversão.

–- O máximo que podemos fazer – continuou Jacques. – É conectar a impressora ao notebook e acompanhar o próprio trabalho pela tela sem ter que reiniciar o equipamento. Mas vamos ter que mexer nos cabos de qualquer jeito.

–- Estou me sentindo como Steve Jobs no começo da Apple –- comemorou Häns. Todos olharam pra ele. – O que foi? É empolgante.

–- E perigoso – murmurou Jacques.


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Notas finais do capítulo

Q capítulo grande meu deus dkfnidsbuhfjklsdgbjfgsdukhgukhdg... Desculpe, eu PRECISAVA, NECESSITAVA DESESPERADAMENTE colocar yaoi. Vai ter yuri depois, ok? Ok.



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