A Mesa escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Único




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Eu ainda era muito jovem quando conheci o quadro renascentista “A Última Ceia”. Meu professor explicou que era mais do que homens barbados em uma grande mesa. Que boa parte dos elementos perderiam o sentido sem as cores.

Sento em uma mesa também. Todos os dias. Mas não é colorida. É num ambiente neutro, cinzento, e de um cortante frio sintético. Onde não há nomes. Você é o “cara de vendas”, ou o “cara do TI”. O que você é fora do escritório, fora daquela mesa, não importa. E talvez seja porque ninguém é nada além disso.

Eu trabalho. Oito horas por dia. Cinco dias por semana. Não tiro férias. Nunca trabalhei em outro lugar. Nasci e cresci nessa mesma cidadezinha, e nunca vi motivos para sair. É algo paradoxal fazer o que eu faço, ou o que todo mundo no mundo faz. É tudo sempre uma cópia, da cópia, da cópia. E isso por si mesmo é uma cópia. Eu sequer faço parte de um clube da luta.

O ciclo vicioso da vida do homem pós-moderno. Trabalho, casa, compras, dívidas, mais trabalho, mais casa, mais compras, mais dívidas. Lentamente, o brilho se esvai dos olhos e se parece sempre cansado e infeliz. Lentamente, o seu emprego suga a sua essência até você não ser mais do que a sua mesa.

E a mesa é sempre limpa, cinzenta e lisa.

Mas a dela não.

Eu não soube dizer quando comecei a me incomodar com aquela mesa. No início foi com um brinquedinho, e dia após dia novas coisinhas apareciam para enfeitar. O que ela estava pensando? Que poderia ser diferente de nós? Que era melhor?

Ela não era a “moça de vendas” ou a “moça do TI”. Era Amanda. Tinha brilho nos olhos e trazia luminosidade com o seu caminhar. Tinha a habilidade de rir. E aproveitava o som da própria risada.

Eu odiava ela, a sua mesinha multicolorida e cheia de personalidade. Mas a sua risada me fez sorrir.

Estamos humanizando nossas máquinas, e robotizando os seres humanos. Um sistema operacional consegue fazer piada, mas a maioria das pessoas ri só por convenção. Eu sou assim. Meus colegas de trabalho são assim. Meus amigos são assim. Por que ela não é?

Eu odeio Amanda, e a sua mesinha multicolorida.

Por algum motivo, ela se aproxima. E transforma meu sólido ódio pela sua pessoa em algo líquido e abstrato. Com o seu toque, o frio sintético deixa de existir e aquele sentimento se transforma em outra coisa.

Eu gosto Amanda, e a sua mesinha multicolorida.

O escritório estava vazio, e o calor do primeiro beijo nos encontrou. Eu queria jogar todos aqueles brinquedos fora, e fazer com que tudo o que estivesse ali fosse ela. E eu. E que estivesse dentro dela até estarmos, finalmente, completos.

No meio de dezenas de mesas frias, cinzas e sem graça, a de Amanda é um oásis.

Quando eu me viro pra trás, vejo sua mesa e os brinquedos. Eu só quero ficar olhando. Decorando cada peça que foi cuidadosamente posta em seu devido espaço. Memorizando ternamente cada textura, cor e traço. Me apaixonando, lentamente, por cada pequena coisinha. Atrelando aqueles objetos infantis e miúdos à memória de seu sorriso.

Eu amo Amanda, e a sua mesinha multicolorida.

Silenciosamente, o inevitável nos alcança. O brilho nos olhos lentamente se esvai, sua risada se torna cada vez mais robótica e ela começa a odiar os seus brinquedos e cores. Depois de mais algumas semanas, não é mais Amanda. É a “garota da mesa colorida”.

E ela se vai.

Sim, ela se foi. Deixou os brinquedos para trás. Deixou o eco de sua risada, e o brilho dos seus olhos no reflexo do espelho.

Nas conversas sussurradas no canto dos bebedouros, eles falam sobre a garota da mesa colorida, e como ela era problemática. Como não se encaixava e que não encontraria felicidade por não fazer parte do mundo.

Outra pessoa toma a sua mesa. E ela volta a ser fria, cinza e limpa.

Eu olho para o meu reflexo, para minha mesa, para o meu crachá.

Eu odeio a mim mesmo, e a minha mesa descolorida.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ler.