Genoma II escrita por Ariane Munhoz


Capítulo 1
Negação


Notas iniciais do capítulo

Essa fic é uma continuação da Genoma, e passa-se numa realidade um pouco diferente do final. Não muito, mas retratando como Quatro ficou depois de tudo.



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Tris está morta.

Essas palavras ecoam contra a minha mente como as batidas compassadas de uma bateria. Como o gotejar lento da chuva que se acumulou contra uma calha por tempo demais, ou como um chuveiro mal fechado.

Me sinto assim: como um eterno gotejar enquanto tento absorver essa informação.

Ela era imortal

A única capaz de sobreviver a todos os desafios impostos, a passar por simulações sem adquirir um mínimo de loucura, porque a cada novo medo que enfrentávamos, mesmo que fossem os mesmos no meu caso, um pequeno fragmento da alma ficava para trás. E, Deus, como eu era masoquista enfrentando os meus medos todas as noites.

Mas ela não.

Ela era imortal, imorrível, imatável. A cada paisagem do medo que enfrentava, não era terror que eu via em seus olhos, mas uma absoluta certeza de que nada daquilo poderia atingi-la.

(Acho que quando somos jovens e, sobretudo da Audácia, temos essa sensação de que nada pode nos matar. Podemos nos ferir, mas isso é um motivo de orgulho: cada golpe levado, cada hematoma, cada cicatriz. Sobreviver, para nós, é a maior alegria que pode existir. Eu tinha essa sensação por ela: nada poderia pará-la)

Ela não era imortal.

Mas isso não entra na minha cabeça, por mais que eu tente aceitar. Uma pessoa capaz de sobreviver ao soro da morte, jamais deveria morrer para uma bala do jeito que ela morreu. É ridículo, insano, inaceitável que alguém tão forte como ela, tão cheia de vida, simplesmente deixe de existir por algo tão banal assim.

Eu não aceito.

Não fui ao seu enterro simplesmente porque não podia encarar todas aquelas pessoas, falando todas as coisas que ela fez, dizendo o quão especial ela era e todas essas coisas que eu já sabia, porque ninguém a conheceu melhor do que eu.

Tris era luz, vida para os meus dias cinzentos, e os seus olhos, castanhos como uma tempestade de raios, sempre me mostravam que não havia barreira que não pudesse ser transposta.

(A cena ainda vem à minha mente. Ela se jogando na direção daquele homem que, de tão desprezível, não deve ser nomeado por mim. Eu consigo ouvir o estampido surdo da bala que escapou de sua arma. Consigo ver seu rosto se contorcendo em uma careta de ódio por ela ter conseguido sobreviver. Por ela ser tão imortal. Quase posso ouvir seus pensamentos tocarem a minha mente. Como pode? Como pode alguém ser tão forte assim?)

Estou de frente para o espelho, me encarando. Mesmo depois de deixar a Abnegação, nunca havia perdido o hábito de não me encarar no espelho a não ser que fosse estritamente necessário. Mas agora, naquele momento, eu me forçava a isso.

(Ela não pode estar morta)

Cerro os punhos com força, tanta força que os nós dos meus dedos ficam brancos. Não sei quanto tempo se passou, mas tenho certeza de que o enterro já deve estar chegando ao fim. Imagino as palavras de Cristina a seu respeito. Sua melhor amiga, ex-membro da Franqueza, mas que nunca perdeu sua língua afiada. Eu e ela nunca fomos muito próximos, mas ela agora era o meu único elo com Tris. Por isso quando alguém bate à minha porta, sei quem é. Mas não respondo.

(A bala atravessou facilmente a roupa que ela usava, sem fornecer qualquer proteção extra. As roupas da Audácia sempre foram feitos de uma fibra de carbono leve, assim poderíamos nos mover com mais facilidade, como se fossemos dançarinos das águas. Como se fossemos a própria água: maleável, suave, e ao mesmo tempo possuindo uma força destrutiva. O estampido continua ecoando em meus ouvidos, vejo o sangue verter de seu ferimento. Vejo seu sorriso. Me sinto um inútil. Geneticamente Danificado para sempre porque ela não estará lá para me completar)

- Quatro! Eu sei que você está aí! Abra essa porta! – a voz dela ecoa do outro lado, mas finjo não escutar enquanto encaro o espelho. Aquele reflexo patético do que me tornei—do que sempre fui.

(O que eu era antes dela? Um Careta? O cara de Quatro medos? Um desesperado em busca de atenção? Quem era eu? O que era eu? Por que era eu? Não me lembro. Não consigo me lembrar, porque esses genes falhos me impedem. É minha culpa)

Sem perceber os movimentos de meu corpo, soco o espelho. Ouço o barulho do estilhaçar e alguns cacos penetram o meu punho fechado. O sangue escorre pelo espelho quebrado e ouço a porta ser arrombada; eu não ligo nem um pouco para isso.

Pelos poucos cacos presos na parte superior do espelho eu enxergo Cristina se aproximando.

- Pelo amor de Deus, Quatro! – os seus olhos estão inchados, e as maçãs de seu rosto coradas. Provavelmente foi ela que fez o discurso que eu deveria ter feito por ser o namorado de Tris, mas não tive forças para isso porque

(sempre fui fraco)

aquela era a maior dor que eu já senti. A maior dor que provavelmente sentiria. E doía como o inferno.

Permaneço em silêncio enquanto ela se aproxima, rasgando um pedaço do vestido negro que usava. Ela poderia ter pegado qualquer pedaço de papel ou de pano, mas rasgou seu precioso vestido.

- Acha mesmo que ela ia gostar disso?! De te ver assim?! – eu consigo sentir a raiva em seu tom. Ela está mascarando o desejo de chorar, mas seus olhos estão vermelhos enquanto enrola o pedaço de pano em minha mão.

(Ela está morta, que diferença faz?)

Engulo essas palavras porque não consigo proferi-las em voz alta. Ainda acredito que, em algum ponto da minha mente, ela esteja viva. Que vai passar por aquela porta e me abraçar, encolhendo-se pequena em meus braços. Pequena e frágil como só eu a vi. Mas Tris era forte e vivaz. Tris era imortal.

- Sabe, você não é o único sofrendo aqui. – a voz de Cristina é embargada. Queria sentir muito por ela, mas não sinto. Sou suficientemente da Audácia para me permitir esse egoísmo, mesmo que não existam mais facções.

(Ela não pode estar morta. Ela não era um erro genético)

Cristina termina de amarrar o tecido sobre minha mão, apertando-a entre as suas, como se a dor pudesse me trazer de volta para a realidade. Ela não traz, e sinto que mereço senti-la.

- Todos sentiram sua falta lá. Você deveria ter prestado suas homenagens, Quatro.

A cada palavra dela, me sinto mais impotente, mas algo borbulha dentro de mim. Algo semelhante a raiva e ódio, mas de uma frieza tão intensa que chega a me surpreender. Sou frio, mas não a esse ponto. E parece que todo o inferno se congelou dentro de mim.

- Eu também perdi alguém. Não foi só a Tris. Ela era minha melhor amiga, e isso é tão difícil para mim quanto é para você. E, por Deus, Quatro, não faz tanto tempo assim que Will se foi!

É aí que me viro em sua direção. Sem perceber, seguro seu queixo com força, encarando-a com uma indiferença tão grande que vejo o pavor em seus olhos.

- Ela não está morta. – eu digo num sussurro muito baixo, frio como uma camada de gelo sobre a superfície. Agora não é medo, pavor, mas espanto que vejo em seu olhar.

- Quatro... – ela murmura baixinho e vejo uma trilha de lágrimas se formar sobre seus olhos. Ela não as segura. Correm pelo rosto, uma após a outra, e é com desconforto que vejo ela me abraçar.

Nunca me senti confortável com abraços a não ser com os de Tris, mas naquele momento não neguei o abraço dela e o correspondi de uma forma tão vivida que poderia ter partido suas costelas.

- É minha culpa, Cristina. – eu murmuro baixo, sem nem sequer saber se ela me ouviu ou não. – É minha culpa. – eu repito, agora mais alto. Como se dizer isso fosse um ato grande o suficiente para me castigar.

Ela engole em seco, mas não me responde. Ela sempre será Franqueza. Sei que pensa como eu.

- Precisa seguir em frente. – ela murmurou, erguendo o rosto para me encarar. Ela era mais alta do que Tris, mas naquele momento, seus olhos pareciam iguais.

- Estou quebrado. Eu era um todo e agora sou metade—talvez nem isso. Acabou.

Essas palavras parecem atingir ela como um tapa na cara, tamanha é a força com que ela se afasta.

- Você vai se destruir. – seus olhos refletem os seus pensamentos. Talvez eu queira me destruir. Talvez ela queira isso também, mas esteja se esforçando por Tris.

- Ela não está morta. – eu me limito a dizer. Cristina abana a cabeça negativamente.

- Eu prometi que cuidaria de você e não vou desistir. Precisa acordar, Quatro.

- ISSO NÃO É UMA PAISAGEM DO MEDO PRA EU ACORDAR, CRISTINA!

Meu grito deve ter surpreendido ela, porque ficou emudecida enquanto me encarava. Eu não era assim. Eu era calmo, eu era a chuva de verão. Eu não era a Tempestade.

(Ela era, mas agora está morta)

- Quatro... – consigo sentir a pena em sua voz, mas isso é tudo. Ela se afasta na direção da porta. – ela está morta. E um belo dia, algo vai pipocar em sua mente e te desacelerar. Não vai ser forçado, nem vai te causar dor. Simplesmente vai acontecer e você vai aceitar. E até lá, eu estarei do seu lado. Eu entendo a sua dor.

Eu queria dizer que ela não entendia. Queria gritar com ela, quiçá até soca-la. Mas eu sabia que não me sentiria melhor com isso. Sabia que Tris não se sentiria melhor com isso.

(Mas ela está morta, então que diferença faz? Não, ela não está morta. Pare de pensar assim. É a sua genética, o seu código errado que te faz acreditar nisso. Tris está viva e bem. Ela vai voltar para você)

- Vá embora. – é tudo o que consigo dizer.

- Mas Quatro...

- Vai...

- Eu posso te ajud..

- SAI DAQUI! – derrubei o vaso de flores que estava na minha frente, na mesinha de centro. Fiz isso para que não esmagasse sua cara contra a parede.

Cristina pareceu entender, porque recuou alguns passos.

- Eu volto. – ela murmurou. – Mas não adianta se martirizar, Quatro. Aconteceu, temos que aceitar isso. Mesmo que você a ame, precisa seguir em frente.

Eu não respondi, acompanhando-a com os olhos até que saiu.

Agachei-me para recolher os cacos do espelho e segurei um maior, vendo meu reflexo sobre eles. Meus olhos eram azuis como os de Marcus. Como os do meu pai. Vi refletido neles a chuva que se formava em meu peito, a eminência de uma tempestade sem fim.

Azul como as fitas de DNA que enxerguei naquele computador. Danificados como eu era.

Azul é a cor do medo. O medo que eu sentia agora por não tê-la comigo.

Mas Tris não está morta. Ela sempre viverá em mim. Ela vai voltar pra mim. Eu sei que vai.


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Notas finais do capítulo

Então, a minha ideia base para esta fic, na verdade, é demonstrar todos os estados do luto. Talvez, na verdade só parei pra pensar nisso agora. Vou pesquisar mais a fundo, mas eu acho que pode dar uma ideia legal. Como dá pra ver, a Cristina é uma das bases, um dos pilares de sustentação, porque é exatamente assim que vejo ela. Enfim, pretendo - mas não prometo - continuar em breve. Espero que gostem!



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