Mesmo Que Não Venha Mais Ninguém escrita por Leoh Ekko


Capítulo 13
Afogado em uísque e queimado com cigarro


Notas iniciais do capítulo

Novo capítulo nesse sábado lindo



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O relógio marcava cinco minutos para as sete. O destino de Artie dependia do quão Andrew seria pontual, pois sua mãe nunca saía um minuto a mais ou um a menos para ir à reunião do Clube Livro. Ela iria trancar a porta depois de sair, por isso se Andrew se atrasasse, Artie não poderia sair até ela voltar para casa. Ele estava sentado na escada, atento a qualquer movimento no andar debaixo. Ele já estava vestido com a roupa que usaria no show: sua calça jeans com um rasgo no joelho, uma camiseta do David Bowie, sua jaqueta jeans tingida de verde e o seu vans azul marinho. Até usava suas lentes de contato que ele tanto odiava para se assegurar de que não perderia os óculos.

Um minuto depois, a campainha tocou. Seu sangue gelou e seu coração começou a bater mais rápido, em parte pela expectativa da fuga e em outra por saber que veria Andrew pela primeira vez desde … o beijo.

Ouviu o clack clack do salto da mãe sair da cozinha e ir até a porta.

— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou sua mãe, com a voz que ela usava quando flertava com alguém.

Que vadia.

— Sim! Ah, o meu carro morreu perto daqui e eu preciso estar em York antes das nove — respondeu uma voz grossa e um sotaque acentuado do norte da Bretanha. Uma voz que Artie sabia reconhecer muito bem. — Será que eu posso usar seu telefone para ligar para um amigo, por favor?

— Claro! Fique a vontade, vou te levar até a sala.

Artie esperou o clack clack ir até a sala, seguido por um outro andar, depois começou a descer as escadas o mais silenciosamente possível. A risada da sua mãe o assustou quando ele atingiu primeiro degrau, ele então se agachou e engatinhou até a saída. Depois que estava de fora ele começou a correr até o carro de Andrew, entrou e se sentou no banco do carona.

Quinze minutos depois, Andrew saiu da sua casa e caminhou até o carro, acenando para a mãe de Artie. Depois voltou até o carro e ficou escorado nele como se estivesse esperando por alguém. Ele só pôde entrar depois que a mãe de Artie finalmente saiu de casa.

— Você tem uma mãe encantadora — brincou Andrew, dando partida no carro.

Artie o matou com o olhar como resposta. Abriu a janela do carro para ver se o calor que ele sentia diminuía um pouco, só que aquele calor não parecia ter algo a ver com o clima. Além disso, seu estômago estava se remexendo como se borboletas tivessem decidido dar uma festa lá. Borboletas idiotas.

— Onde vamos encontrar os outros?

— Em New Geiman.

— Vai dar tempo de chegarmos em Londres antes do show?

— Se corrermos, sim.

— Não sei se gosto da ideia de estar em um carro em alta velocidade com você dirigindo.

Andrew riu.

— Que bobeira. Morrer ao seu lado vai ser todo um privilégio para mim.

* * *

Eles estacionaram no posto de gasolina para abastecer. Como prometido, Andrew havia quase voado com o carro e eles conseguiram chegar lá em menos de vinte minutos. Artie desceu do carro e caminhou até a van colorida onde estava o resto dos seus amigos. Foi como respirar depois de passar uma hora debaixo d'água, tamanha foi a tensão dentro do carro. Ele e Andrew quase não haviam conversado, ambos temendo que qualquer papo descontraído pudesse acabar se encaminhando para assuntos mais sérios que queriam evitar.

— Ei, olhem só quem apareceu — disse Stanley.

Ele se adiantou e deu um abraço em Artie, que ficou atento para ver se sentiria borboletas voado em seu estômago. Não sentiu nada. O que era bom, um sinal de que já poderia investir em uma amizade com Stanley sem ter o perigo de misturar as coisas. Instintivamente, ele olhou para trás e viu Andrew, que estava colocando gasolina no carro, olhando para os dois com a uma expressão assassina. Ele se afastou de Stanley imediatamente, sem nem mesmo notar.

— Como você está? — perguntou Stanley.

— Fodidamente animado, não é todo dia que se vai em um show dos Smiths. Eu curti os desenhos da van — apontou para as ondas de cor que pareciam terem sido feitas por spray. Havia várias caricaturas de diversos cantores e vocalistas de bandas: John Lennon, Bob Dylan, Elvis.

— É do Vince, mas foi o Andrew que pintou.

— Mesmo? Eu não sabia que ele fazia essas coisas.

— Artie! Venha aqui — chamou Lynn.

Ele foi, e notou no modo como ela estava abraçada a uma Nora sorridente. Os olhos alheios poderiam enxergar apenas duas amigas se abraçando, mas graças à revelação que Lynn lhe fizera dias atrás, ele conseguia enxergar além. Sorriu, feliz por perceber que elas ficavam bem juntas. Elas o abraçaram e o convidaram para ir na van com eles pelo resto do percurso, mas ele negou.

— Eu vou fazer companhia para o Andrew — justificou. — Graças a ele que consegui escapar.

Lynn ergueu a sobrancelha, desconfiada.

— Vocês têm passado bastante tempo juntos, hein. Tem alguma coisa rolando entre vocês?

— Como assim? Somos apenas amigos, não seja boba.

— Sei, vou fingir que acredito.

Artie revirou os olhos e voltou correndo para o carro. Andrew fez uma cara de surpresa ao vê-lo chegar.

— Você não vai na van com eles? — perguntou.

— Não. Por que? Que que eu vá com eles? — não conseguiu evitar usar aquele tom passivo-agressivo.

— Não! Eu só estou surpreso.

E com razão, até Artie surpreendeu-se com aquela atitude. O esperado era que ele queresse ficar longe de Andrew, na segurança daquela van. Contudo, tudo o que ele queria era estar perto daquele garoto. Então, sem dizer mais nada, entrou no carro.

A viagem voltou para o silêncio mortal de antes, com Andrew encarando Artie pelo espelho retrovisor, que fingia não perceber. Uma música tocava baixinho, mas o som era abafado pelo barulho do vento batendo contra o carro. Artie sentia-se sufocado por aquela tensão, por isso resolveu quebrar o silêncio.

— Eu não sabia que você desenhava — as palavras saíram hesitantes, como alguém tentado falar um idioma desconhecido.

— Perdão?

— O Stanley falou que a pintura da van foi feita por você.

— Ah, é um hobby meu. Eu faço grafite, foi através disso que consegui o emprego no estúdio de tatuagem.

Era estranho o quão pouco eles sabiam sobre o outro, levando em conta por tudo que já haviam passado. Artie ficou incomodado com aquilo, era como se apaixonar por um embalagem de cereal e não abri-la para saber se o cereal era gostoso. Ele queria desvendar Andrew, conhecer a verdade por trás daquela máscara. Talvez ele não fosse gostar do que descobriria, mas era melhor saber.

— Acho que devemos fazer uma entrevista — sugeriu Artie.

— Entrevista?

— Sim. Para nos conhecermos melhor, podemos começar do básico, tipo, qual é o seu filme preferido.

— O Poderoso Chefão. E o seu?

— Laranja Mecânica.

Andrew o olhou com uma expressão de deboche.

— Kubrik? Eu achava que Woody Allen fazia mais o seu estilo.

— Viu? É por isso que essa entrevista é necessária. Qual seu pintor favorito?

— Dali, às vezes é como se eu vivesse em um dos quadros dele.

— Verso de poema favorito?

— “Tem um pássaro azul no meu peito que quer sair” — Andrew fez uma imitação perfeito do sotaque americano.

Artie quis agarrá-lo bem ali, nem se importaria se provocasse um acidente que os matasse. Pois ele já estava morto de excitação. Sempre sonhara com o momento em que um cara citasse Bukowski para ele. Seu sonho incluía uma transa sob o luar em uma praia deserta, depois que tivessem recitado vários poemas eróticos um para o outro.

— No meu também — disse Artie. — Mas ele não está afogado em uísque e queimado com cigarro, ele só está dormindo, esperando que eu o acorde para a vida.

— E você quer que ele acorde?

— Sim, mas ele tem um sono pesado. O que você mais gosta sobre desenhar?

Andrew ficou calado por um minuto, parecia estar pensando. Artie encarou o perfil dele, começando pela proeminência do seu queixo ao seu topete alto. Ele estava com um novo corte de cabelo, com os lados raspados, que o fazia parecer mais sexy e mais perigoso.

— Acho que sinto uma liberdade nova quando estou desenhando. Fico livre para desvendar várias ideias e sentimentos que ficam presos bem aqui e aqui — ele apontou para a própria cabeça e depois para o peito, onde batia o seu coração. — Na maioria das vezes, eu só entendo esses pensamentos meus depois que estão desenhados no muro.

Ele conseguiu imaginar bem Andrew na escuridão de uma noite qualquer, parado em frente a um muro qualquer, pronto para desenhar suas ideias ali. O sentimento de solidão que acompanhava essa imagem na sua cabeça era tão grande que apertou seu coração. Lembrou-se de quando estava na cozinha da casa de Lynn quando pensou de Andrew também era uma alma solitária, teve a total certeza daquilo ali naquele carro. Seu coração se apertou novamente.

— Eu sei como é — sussurrou Artie. — Sinto isso também quando estou escrevendo.

— Você escreve?

— Sim. A máquina de escrever foi a única coisa útil que meu pai deixou para mim.

— O que você escreve?

— É como um diário, mas com mais poesia. Espero um dia juntar tudo e lançar um livro.

Na maioria do tempo, Artie não se permitia ficar desejando coisas ou fazendo planos para o futuro. Era melhor não criar altas expectativas para não acabar caindo em altas decepções. Porém, Andrew e lançar um livro eram as únicas exceções. Artie se imaginava morando em alguma casa de praia, algum lugar mais frio, sentado em uma mesa no terraço, buscando inspiração no céu cinza para seu próximo romance.

— Andrew, me fale sobre a sua família.

— Achei que era um entrevista mais superficial.

— Você não precisa falar de verdade, só...

— Não, está tudo bem. Meus pais morreram quando eu tinha seis, eles eram HIV positivo e naquela época era sinonimo de morte. Meu irmão mais velho, o Josh, cuidou de mim por uns anos mas era difícil para ele cuidar de todas as contas, então ele acabou fazendo algumas besteiras para ganhar mais dinheiro... ele ainda está cumprindo a pena.

Artie engoliu em seco, de repente entendeu o porque de Andrew ter dito que só causava problemas para as pessoas ao seu redor. Quis dizer que sentia muito, e que ele não devia se sentir culpado por aquilo tudo, que a vida realmente era uma droga na maior parte do tempo do tempo. Mas as palavras ficaram entaladas na garganta. Então, sem pensar muito no que estava fazendo, estendeu a mão e a colocou por cima da de Andrew, que estava sobre a coxa. Andrew virou a palma para cima e entrelaçou os dedos nos de Artie, que deu um aperto consolador na mão dele.

Aquele gesto disse mais do que mil palavras, dizia: não se preocupe, eu estou aqui.

* * *

Londres era linda durante a noite, quando as luzes da cidade se tornavam palco para as várias tribos urbanas saírem da toca e irem de divertir. Eles passaram por vários grupos diferentes enquanto seguiam para o show, hipsters, hippies, punks, havia de tudo ali. E apesar de existir uma clara disputa entre as diferenças de estilos de vidas, cada um respeitava espaço do outro, cada um com a sua espécie de rebeldia. O show aconteceria em uma pavilhão na área norte da cidade, Andrew ficou dando voltas pelo estacionamento até encontrar a van amarela de Vincent. Para falar a verdade, ele não estava muito animado para o show, preferia mil vezes ficar dentro do carro com Artie.

— Vamos nessa! — gritou Artie, descendo do carro.

Eles se juntaram aos outros e entraram no pavilhão. Lá dentro estava cheio, mas nada muito insuportável. Aquele era um show “não oficial”, que não ganhava propagadas nas rádios e somente aqueles que conheciam alguém da organização do evento conseguia um ingresso para ir, aquilo beirava a ilegalidade. Isso garantia que chamasse pouca atenção das autoridades para o evento, já que as drogas rolavam soltas durante as apresentações.

No caminho, ele tentou ficar perto de Artie, mas Stanley havia chegado primeiro com aqueles seus papos nerds idiotas. Andrew o encarava com um olhar assassino, mas o garoto parecia não notar. Ele só conseguiu realmente se aproximar quando eles fizeram uma corrente humana para se esgueirarem na multidão sem se perderem uns dos outros, Andrew se adiantou para pegar a mão de Artie. Eles só pararam quando alcançaram um bom lugar para assistirem o show.

Stanley tirou bebidas de dentro da mochila e começou a distribuir entre eles. Quando chegou a vez de Artie pegar a dele, ele recusou:

— Obrigado, mas quero me lembrar desta noite com totalidade.

Andrew bebeu apenas uma garrafa de cerveja, mas recusou mais depois.

O show teve início e o ambiente foi invadido por uma onda de gritos. A atenção de Andrew se dividia entre Morrisey cantando no palco e Artie dançando ao seu lado. Nunca havia visto o garoto tão... animado. Ele pulava, dançava e cantava alto, mesmo quando o ritmo da música era lento. E o sorriso no rosto dele era a coisa mais linda que Andrew já tinha visto na vida. Pelo visto, o pássaro azul no peito de Artie tinha finalmente acordado.

— Ei, Arty? — gritou no ouvido dele. — Quer subir nas minhas costas?

Artie o olhou por um momento e depois concordou com a cabeça. Andrew se agachou um pouco para que ele subisse ali. Ele era tão magro e pequeno, que nem causava muito desconforto. Andrew o ergueu e eles passaram o resto do show naquela posição, desta vez Artie ficava balançando os braços como um louco.

Aquela cena despertou uma ideia para um desenho na mente de Andrew, algo como uma multidão pintada de preto, com uma pessoa brilhando no meio dela, com os braços levantados como se quisesse se unir às estrelas no céu.

— Tem certeza de que não bebeu nada? — perguntou para Artie após o término do show.

Artie riu.

— Nem eu sei de onde veio essa animação toda.

Quando eles estavam começando a voltar para a saída, ouviram Morrisey voltar para o palco anunciar um bis. A multidão foi ao delírio, inclusive Artie, que pirou quando viu que a música seria Asleep.

— É a minha música! — gritou.

Andrew não soube se foi a letra da música, se foi o seu ritmo que acalmava e inquietava, se foi o sorriso de Artie misturado a uma lágrima solitária caindo na bochecha dele ou se foi simplesmente ele chegando ao limite da prudência. Tudo o que soube foi que ele se aproximou de Artie e fez algo que queria ter feito desde que o vira pela primeira vez naquela noite. Ele o beijou. Ali, na frente daquela multidão toda. Um beijo desesperado e crescente, que transcendia o limite dos lábios deles e percorria pele suada, mãos explorando o corpo um do outro e dois corações batendo em um único ritmo. Andrew soltou um gemido rouco quando Artie deslizou aos mãos por debaixo de sua camisa e se apertou mais contra o seu corpo. De repente toda aquela gente e aquelas vozes cantando juntas desapareceram e tudo o que restava era o beijo, que dividia entre beijos mais longos e selinhos, e olhares profundos e sorrisos.

Artie se afastou e apoiou a cabeça no pescoço de Andrew. Eles se encaixavam tão bem quanto duas peças lego. Andrew o abraçou com força e o começou a balançar no ritmo da música.

— Ei, vocês dois — chamou Lynn, que não parecia nem um pouco surpresa com aquela cena. — Nós estamos indo para uma festa no Lounge, vocês vêm?

— Não, nós temos outros planos — respondeu Andrew, ficando feliz quando Artie não o contradisse.

Lynn deu-lhes um sorriso bêbado e irônico.

— Tudo bem, divirtam-se então.

Andrew pegou a mão de Artie e o guiou até a saída. Seu rosto não cansava de sorrir. Eles seguiram em silêncio até o carro, ambos ainda tentando entender o que havia acabado de acontecer. Andrew já estava pensando em algum lugar para onde eles poderiam ir e ficou indeciso. Sua única certeza era de que a noite só estava começando.


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