Desvelo e gratidão. escrita por Janice Nagell


Capítulo 1
Capítulo 1 - Único.


Notas iniciais do capítulo

https://www.youtube.com/watch?v=Zp_ZvJeVNVM

A música que forneceu-me a inspiração e cujos versos, alguns, estarão cá epigrafados.
Boa leitura.



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DESVELO E GRATIDÃO.

"Sitting by and watching you fall away
Sudden fall, watched you for a day
You know I don't believe in death
Follow the sun, watch you flow [...]

Sitting here and watch the death
Looking for the sun and watch the death,

So long, so long
It's just a way to [...love...] you."

—Slowdive.

Meu companheiro sentava-se num pitoresco banquinho, absorvido nas ordenações de seu raciocínio, uma mão apoiava o queixo e outra repousava sobre o colo envolto no robe de chambre lavanda. Sherlock não imitava nenhum tipo específico europeu, nem que o procurasse nas coleções de belezas aristocráticas, embora fosse de uma natureza acertadamente fidalga. Nada havia que pudesse parelhar as proporções, dir-se-á que exatas, geométricas de seu semblante; O nariz orgulhoso, os olhos cinzentos, os lábios coraciformes, os zigomáticos angulosos como se esculpidos por lâminas habilidosíssimas, ainda, os cachos morenos que caíam-lhe por sobre a testa de alabastro. Tudo isto convergia para que meu juízo inserisse sua semelhança entre...Um general da Roma e uma fada shakespeariana.
Os pormenores dos ocorridos na Basiléia desolavam-no, supunha, e viera arejar suas conjecturas na quietude do pequeno jardim á julgar por sua postura reflexiva e elegante. Tão inveterado em si mesmo, permitia-se ora um dobrar de pernas, ora suspiros frustrados, o que averiguava o duelo de idéias culminando na mente desta interessante Urânia. Debatia comigo, agravado na sombra de alguma macieira que mantinha-me alheio á descoberta de Sherlock, que sorte de meditações caracterizavam tal comportamento nas horas matutinas.
Minha exploração, contudo, não perdurou por muito. Um gato que gostosamente brincava com algum ramo de flores, agitando-o, convocou sua atenção para as proximidades de onde eu me retera. Qual não foi o seu desasossego ao desvendar minhas atividades espionárias, que eu muito amaldiçoei-me por tê-lo extraído de seu pequeno mundo bucólico de racionalidade e logicismo.
"John, está tudo bem? Sentes alguma dor?" Veio ele em meu auxílio, elevando seu porte altivo, galhardo, para esquadrinhar-me as faixas do braço baleado.
"Perfeitamente, não se preocupe, não é nenhuma chaga. Eu estava apenas...Observando-lhe."
"Observando-me?" Riu-se.
"A sua óbvia beleza." Respondi-lhe, com ar de natural constatação.
Cerrou os punhos sobre a cintura e brindou-me com um gracejo adorável. Sua estatura elevada, e a esbeltez que tende a acentuar a primeira á uma nova potência, fomentariam, no homem ordinário, o ressentimento, todavia, estas em mim não serviam senão para inspirar a megalomania. Observava-o enquanto guiava-me para a copa, o seu perfil correto, cujo sustentáculo era um harmonioso pescoço como a torre do Líbano.
Fez-me sentar enquanto tornava á mesa com algumas provisões, verificando metodicamente o relógio de pulso para afiançar-se do horário. Ele mesmo não importava-se muito com os termos de uma alimentação prudente, no entanto, o hábito constituiu-lhe uma minúcia tão vasta pela regularidade de minhas refeições, que mesmo a um estranho não custaria identificar ali o elemento materno.
"Descansaste bem?"Perguntou, enquanto na manipulação dos talheres de prata. Era encantador, para não dizer miraculoso, como um banal manejo de uma geléia de frutas vermelhas ganhava ares graciosos se neste eram empregadas as suas falanges esguias e delicadas.
"Certamente." Disse-lhe, para então ganhar um sorriso honesto.
Sentávamos, cada um a um extremo da mesa rotunda, a ler jornal. Esta era a praxe. Enquanto Sherlock alinhava-se na cadeira para melhor prescrutar o diário das atividades citadinas, não puderam deixar de fugir-me á vista, cicatrizes desusuais que ora evidenciavam-se em sua tez mui clara quando destarte ele movera-se.
Veio-me, por conseguinte, a memória da qual tais ferimentos eram produtos.
Ele estava lacerado. Fora aquela a sentença por desejar todas as experiências no seu pináculo. O bem, o mal. Neste dia, eu sentira que a terra logo o subtrairia de mim, pois ele era belo demais para que vivesse muito tempo, de forma que talvez os anjos tivessem-no invejado. Porquanto, fora pactuado entre os querubins nos céus, vencidos de fúria, que Sherlock Holmes tivesse seu brilhantismo atado justamente á sua ruína.
Ilhado pela banheira cuja brancura porcelânica não parecia ser de sua pele senão a extensão, detinha os joelhos entre a circunferência braçal que criara para cerrar ali em vergonha as profanações de seu corpo. Me pus ao asseamento de suas feridas com uma esponja, mas o faria, decerto, com minhas lágrimas se ele pois o desejasse.
Arrancando, uma a uma, as agulhas cravadas em seu braço zelosamente, estudei-lhe o rosto de um livor vidracento. Não era aquela palidez de lírio que lustrava-lhe tão viçosamente as faces, mas uma alvura mortícia, que remete ás estátuas frias que calcam os mausoléus.
"John, John..."Fizera com a língua estalidos de reprovação."Lavando os ferimentos de seu amigo debilitado e desnudo em uma banheira. Esta situação seria uma dádiva áqueles que têm gosto pela especulação sobre a vida privada."
Ri-me com seu manifesto de humor miserável, sem, contudo, deter-me dos cuidados dedicados á figura consternada de Holmes que eu estimara tanto. Ele ficara a convalescer na banheira e, neste ínterim, aproveitei para lançar as seringas de heroína ás flamas da lareira, a qual devorou com muita glutonaria o algoz sintético entre os seus ardores.
"Deve sempre o forte gênio ser acompanhado de complicações? Não poderias ser como...Como os epicuristas, sábios e tranquilos?" Murmurei um tanto quanto desiludido.
"Sabeis a minha opinião acerca dessas suas firulas filosóficas."
"Mas heroína, Sherlock? Heroína?"
Fora árduo descrever o olhar com que ele retribuiu-me. Parecia absorver em si, á um só tempo, algo dos cães abandonados e das senhoras viúvas. Era o olhar daqueles para quem o desespero viera sem consolo. Sherlock estava desesperado. Mas quem o creria por trás de seu semblante razoavelmente gélido e analítico? Estupefacto com as influências geradas pela rigidez de minhas palavras, pus-me ao pé do seu leito de porcelana e lá vigilhei, até que ele adormecesse, velando-o, servindo-o como em todos os dias, sem pensamentos vis, apenas pelo afã de vê-lo sempre são e bem acarinhado.
"John, meu fiel escudeiro." Disse, fracamente compreendendo minha mão entre seus dedos, antes de dobrarem-se as suas pálpebras.
"E um amigo para lhe servir."
Embora Londres fervilhasse de fantasias homoeróticas sobre nossa relação, a verdade era que nunca nas plagas britânicas alguém representara tão efetivamente o arquétipo de vassalagem amorosa. Eu o amo, e isto é tão irrevogável quanto as configurações de nosso Sistema Solar que ele ignora; Oh, não sucede que nenhuma alegria se abisme mais em minha alma do que a de hoje ver restituir-se-lhe a saúde, o seu sorriso que triunfa, os gentis olhos que se apertam.
Enquanto Holmes deitava o bule de leite sobre minha xícara com tanto donaire e engenho, capturei mansamente os braços marmóreos que escapavam ao diáfano tecido de seu robe, e os fiquei analisando.
"Sherlock, podeis dizer a necessidade de todo esse aparato?" Interrompi-o ao passo que ele levantou afim de prover-me de outro prato de madeleines.
Depositando a louça sobre a mesa defronte a mim, respondeu-me, convicto:
"É patente que o seu braço precisa de cuidados, eu estaria perdido com a invalidez do meu médico."
Com um movimento tímido, arrebatara-se ás proximidades de minha testa e ali depositou um beijo, tão breve quanto o encantador atrevimento de tê-lo tencionado.
"Obrigado, Watson." a impressão era a de que ele falava mais para consigo mesmo.
Foi ter com seu microscópio e seus utensílios de alquimista, deixando-me á sós e desorientado com a travessa resolução de que em singulares casos, há braços que carecem de meses de cuidado.


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Notas finais do capítulo

Sua opinião é muito importante. :)



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