In Nomine Dolor escrita por A Infame


Capítulo 4
Capítulo terceiro




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Foi decidido que, se nada contra minha vocação se manifestasse antes, eu tomaria os primeiros votos na penúltima semana de junho, no dia da festividade de São João Batista. Eu não tinha predileção por nenhum santo, mas Jutta possuía inexplicável devoção por ele, e sendo uma sugestão sua, aceitei com prazer. O dia da Visitação foi aventado e julgado pelas outras irmãs como mais apropriado ao início do noviciado de uma jovem, porém deram-me a liberdade de escolher, e após o proposto por minha mestra eu não quis outro. Tantos sermões sobre persistência e sinceridade de coração eu ouvira dela em meus primeiros meses no convento que pensei que enfrentaria uma espera interminável pelo noviciado, semana após semana, vendo resignada distanciar-se cada vez mais o dia em que pertenceria definitivamente a Deus. Assim deveria ser, mais ainda pelo Abade não depositar esperanças em mim, no entanto suspeitei que minha Magistra, receosa que se inventasse um impedimento qualquer, apressara o processo. Só muito mais tarde ela me contaria que, contrariando o acordo anterior, meu pai procurava um noivo para mim e entrara em pé de guerra com os Sponheim. Eu nada sabia, tampouco me interessava pelo que ocorria fora dos muros da Abadia; meu mundo era aquele, e que coisa curiosa, como era mais vasto que minha suposta liberdade mundana.

Tão logo comunicamos nossas intenções às demais, a vigilância sobre mim e meus modos foi redobrada, se é que era possível, à semelhança do zelo por uma jovem noiva às vésperas de suas bodas. Era justo, pois eu dava o primeiro passo para desposar a Cristo, e uma vez prometida a ele, não me seria mais lícito sair do mosteiro sem romper com a comunidade e quebrar minha promessa de obediência à Regra. Acima de todas as coisas que eu prometeria guardar e observar, encontrava-se a mais importante e difícil: renunciaria de todo à minha vontade, para que a vontade de Deus se cumprisse através de mim; sabe Ele, o que está acima de todas as coisas, o quão foi duro e quantas vezes teve de ser quebrantado o meu espírito para que eu o compreendesse, e, ora, não tinha eu um emissário para me admoestar? Ai, que quantidade infinda de vezes insisti no erro para que me viesse a doença como consequência dessa rebeldia! O orgulho sempre foi o maior dos meus defeitos, e não houve um tormento em minha vida, um espinho sequer, que não fosse por causa sua. Mea culpa, mea maxima culpa! Roguemos ao Senhor, Deus de imensurável misericórdia, piedade por nós, pecadores, e que nos proteja da ruína da morte.

Por termos mencionado o pecado, irmão, creio que possamos falar agora em penitência e relembrar minha primeira experiência com ela. Não, não foi uma penitência minha, embora creia que se fosse não teria deixado tão duradoura marca em minha memória. Sabes obviamente que buscamos a mortificação como expiação por nossos erros e modo de submeter nossos espíritos à disciplina, porém hás de concordar que a moderação em tudo deve reger as inclinações de um servo de Cristo, e assim como há o gozo advindo dos vícios conhecidos da carne, a luxúria, a soberba, e todos os seus primos, há também uma outra espécie de gozo proveniente da dor. A esse último raras vezes nos referimos, e fazemos mal; a alma humana é um poço obscuro e profundo, o qual só pode ser desvendado pela luz divina do entendimento. Os excessos são pecaminosos, sejam nascidos do orgulho ou da perversão.

Passei a refletir nisso após uma noite do inverno anterior ao juramento dos meus votos, quando o sono fugiu de mim e meus olhos despertaram alertas, em meio à escuridão do dormitório. Encarei o negror completo do cômodo: a lamparina que deveria estar acesa toda a noite, tanto para guiar nossos passos quando levantássemos quanto para denunciar alguma atrevida que ousasse se levantar antes do Ofício da Vigília, se apagara por completo. Forcei minha consciência para dentro de si mesma e procurei, forçando os olhos a fechar, pelo sono, que não veio e parecia caçoar da minha tentativa de voltar a dormir. Sem consegui-lo, recitei em silêncio uma prece, pedindo a Deus e a todos os santos que me guardassem dos males da noite, porém um ruído atípico, alto como o de duas macias superfícies que se chocavam uma contra a outra, soou muito próximo do dormitório. Os ouvidos sempre me foram mais precisos que qualquer outra parte do corpo, mas naquela madrugada eu lamentaria minha audição precisa. Um estalo se seguiu, e logo depois dele mais dois. Jamais escutara tal som, e ouvi-lo dentro do eremitério só o tornava mais estranho. O ofício de leitura da madrugada não havia sido ainda rezado, Jutta permanecera acordada para nos despertar na hora certa. Por que não reacendera a lamparina e dera fim àquele ruído anormal?

Mesmo que fosse proibido o levantar-se, a curiosidade imprudente – outro dos meus defeitos – puxou-me para fora do catre, acenando com seus dedos longos em direção ao desconhecido. Teria sido mais inteligente se tivesse permanecido na cama e ignorado os sons notívagos; a noite é destinada ao descanso, não é domínio da luz, tampouco dos filhos de Deus, nada de bom aparece aos que se aventuram nela. Sem um resto de chama sequer para me alumiar, não pude encontrar meus sapatos e tive que seguir descalça e com risco de ficar doente em minha teimosia. Pisei o chão frio e esbarrei o quadril na beira do catre, fazendo barulho; Elisabeth, que dormia ao meu lado, moveu-se em seu leito, contudo não acordou. Senti o ar gelado da noite me soprar o pescoço e as orelhas, atrevido, ao abrir a porta do dormitório, e esgueirei-me para o corredor com a bainha descosturada da túnica a me dançar na altura dos tornozelos. A passagem estaria mergulhada no mais profundo breu se não fosse a débil luz vinda de uma porta entreaberta, a cela de alguém que desobedecia como eu a ordem de deitar-se. A palma dos meus pés pisava o soalho de madeira velha com lentidão, quase sem fazê-lo ranger; a voz da minha consciência chamava-me de volta para a cama, desejava proteger meus olhos do ato de alguém que o praticava às ocultas, sem desejar ser visto. Quando minha vista amedrontada alcançou a fresta entre a porta e o batente, deu com as costas magras de uma mulher que, nua da cintura para cima, tinha a pele quase irreconhecível, de tão recortada pelas tiras do açoite com que agredia o próprio corpo. As tiras de couro, com um nó na ponta, estalavam-se sobre as costelas ensanguentadas, rasgando-a desapiedada. Os cabelos escuros e ondulados tinham sido afastados para um lado do pescoço, a fim de deixar-se desprotegida por completo, e seu sangue rubro aparecia em respingos por todo o quarto. A cada nova chibatada um ronco profundo vinha de dentro de si, e pensei que ela vacilaria. Quase já não tinha forças para manusear o instrumento da sua mortificação, e parecia que quanto mais estas lhe faltavam, com ânsia ainda maior se flagelava, como se tomada por uma mania do remorso. Estranho era que não se ouvisse gemido ou respiração entrecortada de choro, até que percebi que havia em torno de seu rosto uma tira de trapo, amarrada à maneira de mordaça.

— Jutta…

Ela prosseguia em sua pena até que os braços não suportaram mais o esforço, nem o corpo o castigo, e desabou. Queria ter corrido para ela e reanimá-la, fazê-la recuperar os sentidos, porém tudo o que pude fazer foi permanecer imóvel, paralisada, com lágrimas de horror a me escorrerem pela face. A curiosidade parecia ter saciado sua sede, e depois de sufocar meu coração, enviou o pesar para me guiar de volta à cama, antes que as irmãs fossem acordadas para a Vigília. Durante as orações da madrugada, Jutta recitava os Salmos sem dar por ninguém, envolta numa espécie de névoa penitente que a distanciava do mundo terreno, e mais lembrava a Virgem dolorosa que exibia o rosto triste num dos altares da igreja que a combatente Magistra que eu conhecia. Alquebrada, com o espírito partido, mal conseguia manter-se em pé durante a leitura, as mãos agarradas ao encosto do genuflexório. As outras não o notaram, ou fingiram não notar; podia ser até que soubessem e guardassem um silêncio voluntário. Prometi, engolindo a dor de vê-la exausta por tanto se ferir, que não o revelaria, nem na manhã seguinte nem em manhã alguma, encobrindo-o até da confissão. Deveras, só abri minha boca para contá-lo neste momento, com a certeza de que minha querida mestra agora encontra-se na presença do Pai, muito longe dos tormentos desse mundo, e que não se aborrecerá por eu revelar suas aflições. Indaguei por dias seguidos se o Cristo que derramara seu sangue pela redenção da humanidade exigiria a tortura de Jutta, quando cilício tão mais cruel comprimia seu coração, que pecado seria tão horrível para impeli-la a fazê-lo. Não coubera antes na minha mente que a Magistra sentisse alguma má disposição que pudesse levá-la a pecar contra seus votos, contudo agora que convivíamos verdadeiramente e eu via suas bruscas alterações de humor, que mesmo raras apresentavam-se violentas, e sua profunda necessidade de solidão, compreendia que dava-se em seu espírito a luta que o apóstolo tão bem descreveu: “Scio enim quia non habitat in me hoc est in carne mea bonum non velle adiacet mihi perficere autem bonum non invenio”. Irmã Jutta não me parecia por esse motivo má, só mais frágil, e talvez mais humana.

Cismava em todas essas amargas, cruéis e incompreensíveis coisas, e no que meu divino emissário me aconselharia a respeito delas se eu o questionasse, sendo que tão poucas vezes eu o tinha feito, enquanto decorava os verbos em latim na escura sala de estudos. Não queria expor minhas dúvidas a uma das minhas irmãs, e não havia livros sobre o assunto no eremitério. Se ao menos houvesse um manual de conduta em que eu pudesse procurar a resposta; a Regra quase nada falava a respeito de penitências pessoais, dedicava-se muito mais às penas para os irmãos que falhavam nisto ou naquilo. Para as faltas mais graves havia a excomunhão, em último caso, expulsava-se o monge, e para o alívio dos corações contritos, oferecia-se a confissão. Eu falava menos que de costume, então. Não me furtava se alguém desejasse me dizer algo, mas dava uma resposta breve e voltava aos meus pensamentos. As irmãs acostumavam-se com essas minhas maneiras, inquietações de donzela, diziam, e nos lábios das noviças eu via um riso mal disfarçado. No que viam graça eu não saberia dizer. Escondi a razão da minha cisma até de Richardis, que não mais hostil ou ciumenta, insistira a manhã toda que eu não estava agindo de modo normal; conversávamos sempre que possível, o que quer dizer quando as irmãs não estavam olhando. Devia estar mesmo um pouco aérea, não percebi os gestos que ela me fazia durante a lição de gramática, tentando falar comigo. Traçava a lição na tabuleta de cera de modo automático, sem pensar no que fazia, minha cabeça perdida em devaneios sanguinolentos e nem um pouco felizes. Voltei meus pensamentos à Terra quando ela pegou-me na mão com força por debaixo da mesa, cravando as unhas na pele da minha palma.

— Que tens? Perguntou ela.

— Nada, respondi eu.

— Tens alguma coisa.

Ela puxou-me uma mecha de cabelo. Não me machucara, e não fiz nada além de abafar o riso; ela se comportava de forma tanto infantil às vezes. Nesse instante tocou a hora Sexta, convocando-nos para as orações do meio-dia e dando sinal para o fim da aula da manhã. Irmão Volges, que ignorara nossas tolices sem nos censurar e apenas andara de um lado para o outro a passo lento (não que houvesse muito para andar na sala de estudo) fez um gesto chamando-me para junto de si. Me aproximei sem encará-lo, ficava mais acanhada na presença dele que na do Abade, embora o irmão sempre se mostrasse amável para comigo e para com todos os outros. Eu não conhecera muitos homens abertamente amistosos, nem mesmo na minha família, e como o recato e a formalidade marcavam o comportamento de todos os religiosos da nossa abadia, o tipo cordial do monge era uma novidade para mim. Até mesmo na hora da confissão, ouvida e absolvida pelo mesmo Volges, eu falava brevemente e evitava me aprofundar em qualquer questão. Eu possuía uma tendência natural à introversão, como boa parte dos que optam pela vida monástica; a timidez porém era um fardo, e custei a livrar-me dela.

Com as mãos ossudas sobre meus ombros, buscou meus olhos fugidios.

— Richardis, diz à Magistra que terei que reter Hildegard aqui por um momento e que preciso depois falar com ela.

Ela pôs-se na ponta dos pés e foi em direção ao corredor com uma expressão aborrecida, como que farta de alguém sempre precisar falar a mim em privado. Pode ser que imaginasse que ele se zangara com nossa conversa e quisesse me passar um corretivo, mas eu adivinhava que o que fosse que o bom Volges desejasse tratar comigo estava longe de ser repreensão. Vi-a sair, o seu monte de cachos louros a aureolar-lhe a cabeça, com uma ponta de inveja: era inegável que minha amiga tornava-se cada dia mais graciosa, e era adorável de se ver, andando aos saltos pelo eremitério. A puberdade dera-lhe um temperamento alegre, vibrante, e igualmente instável, sujeito a crises de irritação, o que não condizia com a gravidade exigida no convento. Como Richardis não fosse candidata ao noviciado, e nem tencionava seguir tal vida, Jutta e as outras desculpavam-lhe muita coisa; as suas crises de humor não duravam muito e nem causavam transtornos. Em resumo, era difícil não gostar dela, e eu admitia que sentiria sua falta quando a marquesa chamasse-lhe de volta; nunca tivera uma amiga da minha idade, ela fora a primeira.

— Agora vens cá. - Disse após Richardis sair e fechar a porta. - O que é que te tem perturbado, Hildegard?

Sentou-se ao meu lado no banco de madeira e envolveu meus ombros com o braço anormalmente longo. Era um gesto um tanto íntimo, mas sendo eu apenas uma criança e ele uma pessoa de disposição afetuosa, não havia indecência ou provocação da carne. Os olhos do irmão refletiam um azul tranquilo e pálido como o da claridade do alvorecer. Sua mão enorme e calosa me acariciava o ombro; pensei no estrago que faria caso fosse usada para esbofetear alguém ou algo, e lembrei do que Jutta dissera uma vez, que a natureza revelava sabedoria quando unia no mesmo ser elementos contrastantes. Por certo, era uma bênção que tamanha potência física fosse concedida a um homem de coração tão manso.

— Respondes?

Soltei um longo suspiro, sem encará-lo, enroscando os dedos nas franjas da túnica. Mais um pouco e eu adquiriria o hábito ridículo de torcer as mãos.

— Não consigo esconder, não é mesmo?

Ele sorriu.

— Não, não consegues.

Movi-me de lado, sem me desvencilhar do seu abraço, baixei a cabeça com humildade, repetindo sem notar a mesma postura de todos que passavam pelo confessionário, enquanto o monge oferecia à imundície do mundo e à confusão dos meus segredos o seu ouvido atento e paciente, pronto para absolver de todo pecado e me tornar tão pura quanto a neve. É a cruz de um confessor conhecer a sordidez dos homens em todas as suas múltiplas variações e calá-las em seu íntimo. Infeliz e bondoso Volges, que abomináveis horrores deve ter sido obrigado a saber, para que atos repulsivos serviu de ouvinte inocente! Enquanto vivemos juntos, eu perguntei a ele muitas vezes como fazia ao fim do dia para livrar seu coração de tão grande peso; ele escapava do assunto com evasivas e nunca me chegou a respondê-lo verdadeiramente. O fez, creio, para evitar algum constrangimento entre nós: foi ele conhecedor de todas as minhas faltas, assim como presenciei boa parte das dele; não ficaria bem revolvermos a multidão de pecados encoberta pelo Cristo.

— Sabe irmão, eu tenho meditado acerca de muitas coisas às quais não encontro resposta, e por elas têm se angustiado a minha alma. Tenho medo de que tantas dúvidas me possam enfraquecer a fé.

Ele suspirou, preparando-se para o que viria.

— Buscar a resposta em Nosso Senhor é o primeiro passo para fortalecer a fé, mas diz-me, o que é que pensas que tanto te aflige?

— A dor, irmão?

— Dor?

— Sim, as coisas que tenho pensado a respeito da dor. Sei que é punição e consequência dos atos de um espírito rebelde, mas também diz-se que através dela identificamo-nos com Cristo e unimo-nos à sua Paixão. Porém me pergunto: se buscada repetidas vezes, a ponto de adoecer o corpo e a alma, não se torna uma punição desmedida e além da razão, Padre? Como pode identificar-se com Nosso Senhor uma alma que renunciou ao uso da razão?

Desembestei a falar, sem me dar conta que meu raciocínio desordenado pudesse não fazer sentido. De certa forma, minha mente embaralhada era como água contida numa represa, e irmão Volges, com seu zelo espiritual, tinha sem intenção rebentado uma das comportas. Não que houvesse algo de tão terrível nisso, mas pobre dele que se oferecera para responder à miríade de indagações de uma menina de doze anos. É tarefa árdua ensinar um espírito jovem. O irmão, embora não fosse velho, era experiente, instruído, e com sua boa vontade aparentava ser um confidente melhor do que as monjas, sempre temerosas de falar algo que julgavam além da minha pouca maturidade. Seu rosto quadrado, de compleição vermelha, traduzia toda a confusão do que eu dissera.

— Ei, ei, espera, deixa-me entender. - Interrompeu, numa tentativa fraca de conter a minha interrogação ansiosa. - Falaste “se buscada repetidas vezes”?

— Sim.

— Então tu perguntas sobre a mortificação. Não é uma dor qualquer, nem a de Nosso Senhor.

Assenti timidamente. Confiar em Volges assim, de prontidão, podia não ter sido uma boa ideia. Em minutos eu falara mais do que devia, receei que ele estranhasse tal dúvida e questionasse desconfiado o motivo dela. Por prudência sua nos encontrávamos sós: irmã Bertha e irmã Aldegard, se nos tivessem ouvido, não hesitariam em me espremer como uma laranja, aferradas à ideia de que uma alma cheia de questões não está sedenta de respostas, e sim insubmissa e buscando por umas vergastadas com a vara, no entanto não era isso que me preocupava naquele momento. A possibilidade do castigo já não me assustava mais, revelar o que descobrira sim; não me importava ser espancada por vaguear à noite ou ter espiado a cela da Magistra. Por mais horrível que fosse o que a vira fazer, ainda que fosse um erro imperdoável, força alguma me faria denunciá-la. Há descomedimento nisso? Certamente, mas não me mofes dos meus exageros de adolescente. Por Jutta eu teria sido capaz de andar sobre brasas acesas.

Felizmente o irmão não via perguntas com maus olhos.

— Deixa-me explicar a ti. A mortificação, Hildegard, é uma espécie de sacrifício pessoal que oferecemos a Nosso Senhor Jesus Cristo, como forma de buscá-lo e modo de participar do sofrimento que tomou em lugar da humanidade, nós, pecadores. Pode implicar em muitas coisas, tanto como renúncia ao alimento, nos jejuns, como em castigo físico, mas não necessariamente esse último. Ela pode sim ser um meio de expiação de pecados, como também servir para… Desprender a alma das coisas terrenas.

— Creio que entendi, irmão, respondi em voz baixa.

— E já que, como todas as coisas, convém fazer com prudência, é desencorajada àqueles que não adquiriram sabedoria para praticá-la: os fracos de coração, os doentes, e os jovens em demasia como tu. É claro que, num instante de desatenção do prior, algum mais atrevido possa ser tentado a fazê-lo e deverá ser repreendido com severidade. Portanto não te dês disso cuidado, Hildegard, ainda não chegaste nesse estágio da tua vida, e quando chegares serás bastante sensata para te punires inutilmente.

Ele hesitara muitas vezes durante sua explanação, creio que por não estar acostumado a falar tanto e duma só vez, entretanto, tão logo a concluiu, vi surgir em seus olhos um lampejo brincalhão, meu bom e confidente professor.

— Não tencionavas te penitenciar, não é mesmo?

— Ah, não. - Contive um sorriso de alívio. - No entanto, irmão, uma alma experiente não está sujeita a cometer excessos?

— Somos humanos, Hildegard, estamos todos sujeitos a pecar pelo excesso. Eu diria ainda que, maus como somos, pode-se esperar qualquer coisa de nós.

A humildade de irmão Volges era uma bênção. Não houve uma ocasião que não tratasse dos erros dos outros e dos seus com grande discernimento. Ao mesmo tempo, nunca fez com que os que se confessavam com ele se sentirem indignos, sujos ou sem esperança de absolvição; insistia na imensurável misericórdia de Cristo, que não rejeita Suas ovelhas. Creio que ele, Volges, em nenhum momento se deu conta que nossa admiração por ele residia nesse aspecto muito humano, e ao mesmo tempo muito espiritual de sua pessoa.

Estava claro que, se ele me dera liberdade para questionar, eu não me daria por satisfeita:

— Mas suponha que um monge peque, e mesmo depois de confesso e punido, continue a se penitenciar em segredo. Estaria errado?

Ele ergueu os ombros, como quem não o soubesse.

— Depende da razão pela qual o faz. Se pratica a mortificação para a cura de um vício eu não o consideraria mais correto.

“Expedit enim tibi ut pereat unum membrorum tuorum quam totum corpus tuum mittatur in gehennam”?

— Exato.

— E se o faz por não conseguir perdoar-se?

O irmão respondeu com simplicidade:

— Então não crê em Deus. É a ele que cumpre perdoar, e não a nós.

— E não peca por orgulho? Não é o orgulho a raiz da intransigência? Insisti.

— É o orgulho a raiz de todos os males.

— E irmão…

— Sim, Hildegard?

— Uma alma submetida à penitência sem moderação não perde o medo ao castigo?

O irmão olhou-me condescendente. Eu era uma jovem alma curiosa, podia ser infantil, ansiosa e tola, mas por algum motivo, conquistara a estima dele.

— É muita reflexão para uma cabeça tão pequena. - Não soube se era um elogio ou uma censura. - Por hoje basta de perguntas. Apressa-te, também tenho eu que comparecer ao Ofício.

Ele não me deteve mais. Corri para o oratório, ciente da reprimenda que tomaria caso me atrasasse, e que o irmão podia ser repreendido por minha causa. Manda a Regra que se interrompa de imediato qualquer trabalho assim que dado o sinal para as orações, pois colocamos nosso tempo a serviço de Deus, e não o contrário; se é ele o Senhor de nossas vidas, seria rude e desrespeitoso fazê-lo esperar, e a pena para os que erram no oratório costuma ser bastante severa. Felizmente nossa conversa fora breve, e quando cheguei as monjas não tinham iniciado ainda o Ofício. Tomei meu lugar, sempre o último e mais próximo da porta, para acompanhar os hinos da tarde. Por ser postulante, era-me proibido cantar a salmodia e os demais cânticos, contudo o fazia em espírito, e nele minha voz entonava os mais inefáveis agudos, traduzindo em as graças divinas em música no meu interior. Encontrava-me inspirada de modo mui particular naquela hora; falar com o irmão confessor aliviara-me as preocupações, deixando meu coração de todo leve. Ergui os olhos em direção ao nosso altar e sorri inocente, cheia de gratidão por ter sido colocada em meio a justos e sábios que me pudessem guiar, e acrescentei o nome de Volges von Mainz às minhas orações.

Devo ter deixado algo transparecer em meu rosto. Tão logo saímos para retomar nossas tarefas, irmã Elisabeth, que caminhava junto de Clara, tocou seu ombro e falou-lhe ao ouvido, porém alto o suficiente para ser ouvida:

— Vês? - Disse com uma ponta de ironia. - Acho que a pequena encontrou a verdade divina.

O tom com que havia dito aquilo, como se eu tivesse feito algo de embaraçoso, me incomodara, não sei porquê. Eu ficara em silêncio durante todo o Ofício e sempre tomava o cuidado de não importunar as irmãs ou parecer tola. Seria mais comedida em minhas manifestações de sentimento; não tinha imaginado que parecessem ridículas. Talvez minhas inseguranças me fizessem interpretá-lo mal; apesar da língua viperina, Elisabeth, uma noviça de dezoito anos, não era má pessoa e não parecia nutrir qualquer espécie de antipatia por mim. O que ela havia dito quando aludira à “verdade divina” me fez lembrar de minhas visões, que eu fora incumbida de tornar públicas; como e quando fazê-lo era a questão. Meu mensageiro declarara que eu pregaria a Salvação aos homens, inspirada por aquilo que chamara de “Lux Vivens”, entretanto em nada mais me instruíra. Se eu o dissesse simplesmente, como fizera em casa quando pequena, pessoa alguma me daria crédito; precisava de alguém que confirmasse que aquilo que eu recebera em espírito era verdadeiro e santo, e que me desse apoio em meio aos nossos. Começara a confiar em nosso confessor, que se mostrara compreensivo, e cria que num futuro próximo, poderia falar a ele sem reserva sobre aquelas experiências, e havia Jutta, que mesmo passando a conhecer suas fraquezas, não caíra em meu conceito, e a quem eu sabia que poderia segredar qualquer coisa. Decidi que falaria a ambos após jurar meus votos de noviça, a fim de que não pensassem que estava a tentar impressioná-los. Se estivesse errada, haveria um sinal: minha desobediência me traria mais uma vez aquelas excruciantes dores de cabeça. Ao mesmo tempo desejava registrar tudo o que via e ouvia, mas tornava-se impossível com toda a vigilância a que eu era submetida. Eu não tinha permissão para manter um diário e cada palavra do que escrevia nas aulas era sumariamente lido e acompanhado por meus professores.

Terminado o Advento e o Tempo do Natal, em nosso calendário se iniciava o primeiro período do Tempo Comum, que dedicávamos à escuta das obras de Cristo na terra e à anunciação do Reino do Senhor, e duraria até a Quaresma. Preenchíamos nossos dias como sempre, com a diferença que, findo o inverno, nos debatíamos um pouco menos quando nos juntávamos para bordar próximas da lareira – ou destroçar as linhas, no meu caso –, sem ficar com os dedos duros de frio. Só aborrecia as irmãs, mesmo que raramente tocássemos no assunto, que nossas duas janelas dessem para os fundos da Abadia e não para o Nahe, cujo gelo devia estar se desfazendo, e devia proporcionar uma bela vista. Éramos monjas, sujeitávamos nossos espíritos para o confinamento do claustro, esperançosas que o isolar-nos das coisas mundanas nos aproximasse da vontade de Deus, porém, enfurnadas naquela casa que mal tinha espaço para nós dez, quão ansiavam por uma vista que não fosse a das nossas paredes sem graça. Admiro até hoje seu espírito de renúncia; a reclusão bastaria para tornar a qualquer um louco. Se fosse apenas por mim, não teria muito do que me queixar; os livros e as horas de estudo eram o suficiente para dar-me o que refletir durante todo o dia. Além disso, descobrira um prazer inteiramente novo.

Jutta passara um bom número de tardes, por meses, a nos ensinar as neumas da notação musical: virga, tractulus, gravis, punctum, tinha-nos feito decorar a todos, e agora parecia considerar suas duas alunas aptas a aprender a técnica. Ao me fazer sentar e beliscar as cordas da harpa desajeitadamente, minha mestra me fizera descobrir uma parte, a mais pura, da arte desenvolvida pelo ser humano, e por isso mesmo a mais deliciosa e fascinante, possuidora de um poder ainda maior que o das palavras, no qual eu me deleitava todos os dias. Creio que, por conta da Queda do Homem e da raiz de pecado proveniente dela, perdemos boa parte das delícias inocentes do Éden, e que pelo mesmo pecado, tornou-se obscuro o nosso entendimento de Deus, mas que ele deixou-nos a música por consolo, pois é ela que reúne de forma tão maravilhosa a alma e o corpo, e é a linguagem que traduz com maior pureza as harmonias celestes. Na música, a criação devolve para o Criador seu júbilo e dá graças por sua própria existência; ela expressa a unidade do mundo como era no princípio, a unidade que é restaurada através da penitência e da reconciliação.

Mesmo que sejam grandes colaboradores da canção e da beleza, era raro o uso de instrumentos nas atividades musicais do convento, tanto o nosso como o dos monges. Além da harpa, tínhamos no eremitério uma flauta e um par de címbalos de dedos, mas fazíamos pouco uso deles. Além da crença generalizada, que nunca compartilhei por achá-la sem sentido, de que floreios e instrumentação excessiva tornavam a música sensual e imprópria para o uso litúrgico, cria-se que a voz humana deveria ser o principal instrumento de adoração ao Senhor. Em todas as coisas me educariam para ser veículo de Sua vontade, inclusive no canto, ainda que esse último aspecto não me fosse lá muito agradável. Temia pela hora em que Jutta me faria cantar. A minha voz, em excesso grave para uma mulher, e ainda mais para uma criança, recebia quase tantos comentários infames quanto a cor de meu cabelo. As antífonas, quando as cantava na minha mente, soavam agudas e suaves, alcançavam as mais altas notas, mas sabia que quando abrisse a boca não seriam assim, tamanha era a distância entre meu desejo e o que era capaz de fazer. Envergonhar-me-ia mortalmente se, no meio da salmodia, minha voz destoasse da do resto como o grasnado dissonante de uma gralha. Todas as irmãs sabiam cantar, e se não posso dizer que rivalizariam com um coro de serafins, ao menos o faziam de forma razoável. Jutta, que a despeito do seu conhecimento teórico, era uma harpista medíocre, tinha uma voz aveludada e cheia, que se sustentava bem nos graves. Se ela esperava ouvir de mim mais que um desagradável guincho, teria uma triste surpresa.

Por fim, numa aula, ela mandou-me entoar os primeiros versos do Magnificat. Um suor frio me desceu pelas costas; estavam todas conosco na cela de Jutta, aprendendo com ela a compor, o meu vexame se daria diante delas. Eu não poderia simplesmente me negá-lo a fazer dizendo que não queria, era impensável desobedecê-la, mas não conseguia sequer abrir a boca, certa de que faria com a oração da Virgem o mesmo caos abominável que fizera com as linhas de costura. Não me entrava na cabeça que poderia com a garganta construir uma harmonia que meus dedos se negavam a fazer. Minha mestra esperava impaciente que eu desse início à canção, a ponta do sapato batendo sem parar no piso gasto de madeira, como quem perguntava o que eu estava esperando para começar. Minha timidez a irritava, porém não sabia o que fazer; abri a boca e nenhum som me saiu da garganta, tamanho era o meu nervosismo. Baixei a cabeça, mortificada de minha própria covardia. Minha mestra desistiu de mim por um momento, exasperada, e ordenou o mesmo a Richardis, que olhava para ela e para mim, sem entender o que se passava, os olhos azuis assustados.

Ela inspirou e entoou o cântico:

Magnificat anima mea Dominum

Et exultavit spiritus meus in Deo salutari meo

Quia respexit humilitatem ancilae suae: ecce enim

ex hoc beatam me dicent omnes generationes.

Quia fecit mihi magna qui potens est,

et sanctum nomem eius.

A melodia que usávamos para o cântico de Maria era muito simples, totalmente monódica, longe da polifonia que começava a tornar-se moda nas catedrais de Paris, ainda assim ela errou algumas vezes, creio que por medo. A voz de Richardis tinha o timbre característico que me agradava, puro, e alcançava os tais agudos angelicais de que falei. Não estava mal, o seu cantar possuía mesmo doçura, e nos deliciava, até nossa mestra a interromper.

— Certo, Richardis, muito bom. Hildegard, canta. - Ordenou com firmeza indiscutível. - Agora.

— Não posso.

Ela pegou da vara de marmelo que ficava aos seus pés, e acenou para mim, irritada.

— Estende as mãos e conta as lambadas. Te darei três em cada palma por tua teimosia.

Fiz conforme ela mandou. Era a primeira vez que eu recebia punição por alguma coisa, e a humilhação fez brotar lágrimas de meus olhos. Apesar de irmã Jutta pesar a mão na vara – e isso com qualquer um —, não senti raiva ou revolta, somente tristeza por merecer aquilo. Contei as pancadas, obediente, segurando um soluço que me chegara à garganta. A vara me acertou na parte carnosa das mãos, no centro da palma e, o pior de todos, na ponta dos dedos, mais sensível que qualquer outro pedaço do corpo. O fiz sem embargar a voz com choro e sem fechar os olhos nem uma vez. Recolhi as mãos assim que minha mestra terminou e dei um passo para trás, voltando para junto de uma atônita Richardis. Minhas outras companheiras olhavam-nos bestificadas, os olhos do tamanho da boca dum cálice. Imaginavam que a Magistra jamais chegaria a me punir fisicamente.

— Agora canta.

Concentrei-me na porção de sinais junto aos versos do hinário que ela me estendera; evitaria ao máximo falhar por não querer desapontá-la, já era o suficiente tê-la feito me castigar por uma bobagem. Abri meus lábios e quão grande foi a surpresa em perceber que, apesar do timbre estranho, tinha controle o bastante para fazer minha voz obedecer ao comando das neumas. Me atrapalhei um pouco nos melismas, aquele monte de sinais sobrepostos, mas de resto minha voz acompanhara a linha melódica sem dificuldade. Parecia ter me saído bem, a julgar a expressão satisfeita da Magistra. Aqueles seus olhos escuros, mais penetrantes do que eu havia visto em qualquer momento, encaravam-me desafiadores, como se estivessem certos todo o tempo do que eu era capaz. Convinha não vacilar, não mentir diante deles, oniscientes como eram.

— Então, por que é que hesitavas? - Perguntou ela com naturalidade. - Agora venha cá.

Ela pegou um punhado de neve pastosa da janela, que ainda restava no início da primavera, e a aplicou nas palmas de minhas mãos à guisa de bálsamo, esfregando-a com delicadeza. Independente se dor física ou da alma, irmã Jutta tinha à mão o remédio para consolar do castigo. Alternava rigor e complacência, sem jamais deixar de marcar na alma a lição. As outras assistiam mudas à nossa desavença breve, o que era sem sombra de dúvida constrangedor, todavia eu não tinha direito de me queixar. A maior parte das penas era dada em público e eu concordara com tal ao ingressar no mosteiro.

— Se tivéssemos um horto com ervas, – lamentou ela enquanto me cuidava das mãos, - eu fazia um unguento para sarar tua pele. Não podes culpar ninguém pelo teu castigo a não ser a ti mesma.

— Não nego, irmã.

— Quieta. Tu sabias como fazê-lo e teimou em me desobedecer por covardia. Vês bem, nenhuma bordoada irá curar-te desse vício, por mais que eu seja obrigada a dá-las em ti e não goste de fazê-lo. - Ela pegou-me pelo queixo e me fez olhar para seus o fundo de seus olhos castanhos. - O convento não é lugar para medo ou vergonha, estes não provém de Deus, e nenhuma das tuas irmãs será maldosa em caçoar de ti. Estou errada? - E se dirigiu às outras, que pelo que consegui enxergar, assentiram, Elisabeth com um leve rubor nas faces.

— És tão boa quanto qualquer uma de nós. Cantem ambas agora, Richardis e tu. Quero ver se conseguem acompanhar uma à outra.

Prosseguimos com o Magnificat, desconcertadas, eu porém com a certeza de que não era um completo desastre, ao menos quando se tratava de música. É verdade que a extensão da minha voz nunca seria o suficiente para alcançar os agudos com os quais sonhava, no entanto comecei a ver nela, com sua bizarria, uma tímida beleza, oculta como o nervo de vida do carvalho do jardim. Depois de encorajada, ainda que através de uma reprimenda um tanto agressiva de minha querida mestra, aquela passou a ser a minha hora favorita do dia, e tive muitas tardes felizes assim, a compor e a entoar cânticos de júbilo com elas. Nossa alegria residia em coisas tão simples, tão pequenas. Bem-aventuradas éramos, como o são todas as esposas de Cristo, afinal não diz o venerável monge Beda que o Cordeiro mais se apraz do louvor das virgens do que de todos os outros santos?

É leve o jugo dos que dedicam suas vidas a Deus, e doce o pesar de retirar-se do mundo. Quando nossos espíritos tornam-se em mínimo sábios, e compreendem por fim de quais e quantos perigos profanos estão guardados, o ímpeto de nos dá é o de beijar os muros do mosteiro e rezar preces intermináveis de gratidão por estar dentro deles, e não fora. Dizemo-nos lírios entre os espinhos, uma vez que tais deleites não vem sem preço; é preciso matar o Velho Homem em nós e destruir seus apetites carnais. É mui vergonhoso reconhecer que, neste estado de graça, portadores de tão grandes e imerecidas bênçãos, ainda estejamos sujeitos a nos corromper, tão insistente é a raiz do pecado em nós. De qualquer modo, não é por dedicarmo-nos à salvação de nossas almas que estamos menos presas ao invólucro de um corpo mortal e às suas necessidades. Somos suscetíveis à fome, ao frio, à doença – velha conhecida minha – e, por sermos mulheres, às dores multiplicadas de Eva, o sangue que corre todo mês.

Falei um pouco sobre a reação de Richardis e sua ignorância a respeito do funcionamento do próprio corpo. O desconhecimento dela não era incomum e nada tinha de extraordinário; eu diria que era regra entre as mulheres da época, mesmo entre as mais nobres e instruídas. Não era raro que uma jovem chegasse ao casamento sem saber coisa alguma do que se passava entre homens e mulheres, e o resultado… Bem, você deve imaginar. O pouco que minha mãe me contara não fora passado a ela por minha avó, e sim por uma criada, durante seu noivado, e creia, já era mais conhecimento que o da maior parte das moças. As monjas calavam esse assunto, evitavam mencionar suas dores mesmo nos piores dias, e nunca as vi ficarem prostradas ou perderem alguma hora do Ofício por esse motivo. Não era Jutta a responsável por esse comportamento, nem Bertha, com seu modo particular de fiscalizar a tudo e a todos. Pensei por algum tempo que o silêncio delas era involuntário, talvez guiado pela convicção de que o murmurar é pecado grave, “omnia autem facite sine murmuriatiomnibus et haesitatiomnibus”, até a ocasião em que, durante um almoço, irmã Ursula, uma noviça de baixa estatura que tinha o hábito de andar pelos cantos dando risadinhas, pareceu não sentir-se bem. Não sentir-se bem é um eufemismo barato, o rosto da moça quase não tinha cor e ela mordia os lábios sem parar. Sieglinde, que fazia a leitura daquela vez, se interrompeu ao ver que ela não colocara na boca nem um pedaço do pão que se ocupava em esmigalhar sobre o prato, e fez um aceno de cabeça para a Magistra. Minha mestra lançou-lhe um olhar significativo, como a dizer que entendia o que se passava ou que o percebera antes. As outras agiam com aparente tranquilidade, eu me concentrei em minha parte do pão, como se nada tivesse visto.

— Irmã, não chegamos ainda à Quaresma para jejuar. - Disse Jutta com brandura, remexendo sua sopa. - Come teu pão ou hás de desmaiar de fraqueza.

Encolhi meus ombros, em meu lugar no fim da mesa, evitando ser notada; havia no que ela dissera discreta menção a mim – irmã Jutta nunca se esqueceria do que acontecera na missa de Natal —, se bem que se fosse por isso, a preocupação era desnecessária: irmã Ursula tinha excelente saúde, de forma que só se poderia atribuir seu mal-estar à desconfortos de mulher. A pequena irmã bem que tentou comer, mui vagarosa, mas desconfio que estivesse, além de tudo, nauseada. Sieglinde pegou-lhe na mão, recebendo um olhar abatido e tímido como resposta.

— Te sentes bem? Se te dói o ventre, faremos uma beberagem para o aliviar.

Antes que a outra pudesse responder, ouvimos um estrondo e nossos pratos vibraram na mesa velha. A velha Aldegard batera a palma com força no tampo de madeira e dera início a um discurso que, bradejado daquela forma, faria inveja a qualquer pregador das seitas mais radicais. Penso que se a idosa irmã tivesse se aprofundado um pouco mais em Retórica, teria feito figura nos debates promovidos pelos nossos monges.

— Não vos queixeis, levianas, da carga que pesa sobre vós! É vosso corpo fonte e lembrança dos malefícios de que são causa todas as mulheres, do erro perverso de Eva. Acaso não sois cada uma de vós uma Eva? A sentença de Deus sobre nosso sexo persiste até agora: a culpa, necessariamente subsiste também. Vós sois a porta de entrada para o Diabo, vós sois a marca da árvore proibida, vós sois as primeiras desertoras da divina lei! Sois vós quem persuadiram o homem de que Satanás, o mais maldito dentre todos os malditos, não precisava ser atacado, e agora lamentam as míseras dores que Ele vos infligiu, quando merecíeis ser jogadas no vazio eterno da morte da alma!

Em latim, Aldegard misturava às próprias palavras um discurso de São Tertuliano que eu já havia ouvido muitas vezes, e com o qual entraria em confronto em breve, pois se através de uma mulher entrou o pecado no mundo, foi através de uma que Deus enviou seu Filho para nos redimir, símbolos do mundo caído e redimido, e se fora dada uma ordem a Adão, Eva não era mais culpada que ele por desobedecer, sendo que ele também o tinha feito. É cruel a Teologia com as mulheres, e incluo nessas palavras as obras de homens mui sábios e inspirados pelo Santo Espírito. Todavia, não culpo Aldegard por pensar de tal forma; somos frutos de nosso tempo, a despeito de nossos equívocos, e ela, em sua idade avançada, tinha enraizadas tais ideias em seu coração. No momento em que proferiu todo aquele palavrório eu não tinha conhecimento ou maturidade para me apiedar dela e me limitei a intimidar-me com seu tom categórico, beirando o violento. As outras conheciam-na melhor, e diferente de mim, suspiraram e demonstraram solicitude para com ela.

— Perdoa-nos, irmã Aldegard. Nenhuma de nós tencionava vos perturbar com essas falas lamurientas.

Irmã Alexandra, que sentava-se à sua esquerda e aparentava ser-lhe mais chegada, tentava apaziguar os ânimos da monja, envolvendo seus ombros com o braço. Os lábios da velha Aldegard tremiam, assim como suas mãos. Tinha ela gênio exaltado e forte temperamento, mas aquelas explosões lhe exauriam por demais, e todas, com o apreço e veneração que lhe tinham, esquivavam-se de dizer algo que a pusesse em desassossego.

— Deveis tomar as vossas cruzes com resignação, e não com o espírito obstinado que distingue os dessa abadia! Deus não mais habita essa casa de torpezas, e eu não o suporto…

Deu mais uma pancada na mesa, ao mesmo tempo que Alexandra a acarinhava e beijava sua outra mão.

— Estais correta, irmã, estais correta em todas as suas colocações, mas não se agite mais o vosso coração. Prometo que por hoje não ouvireis mais nenhuma queixa.

Jutta pousara as mãos de cada lado do prato, e aguardava em silêncio e com olhos baixos, como uma noviça obediente, a velha Aldegard terminar a fala para voltar à refeição. Notei como ela não se manifestara enquanto a irmã fazia seu brusco sermão e como não fizera um movimento enquanto as outras se esforçavam em fazê-la serenar, embora em ocasiões normais manter a ordem entre nós fosse dever exclusivamente seu. Não era uma demonstração de descaso ou arrogância, parecia mais um pudico respeito, como se irmã Aldegard pudesse inflamar-se mais se a Magistra intervisse. Até então eu não tinha notado que a anciã possuía tão grande autoridade sobre nós, a ponto de calar-se diante dela a própria irmã Jutta. Senti medo, afinal, quem era e do que seria capaz aquela idosa e inflexível mulher, que dava-se a liberdade de falar o que bem pensava, tencionando talvez impô-lo às suas irmãs? Quem proteger-me-ia dos seus excessos?

— Em Lorsch eu não teria tantos desgostos, prosseguiu a velha monja.

— Lorsch?!

Minha mestra lançou-me um olhar impaciente e rude, como se ordenasse que eu ficasse quieta, contudo a exclamação escapara sem querer, não tinha intenção de arranjar problemas. Mesmo eu, criança que era, ouvira falar no Mosteiro Lorsch. Era uma abadia antiquíssima, datava dos primeiros reis carolíngios, e rica, infinitamente mais que a nossa ***, senhora de uma das maiores, se não a maior biblioteca da cristandade, e de um amplo horto, provedor de ervas para o exercício da medicina. Nosso mosteiro, com os presentes de reis que nutriam a soberba do Abade, era um pobre grão de areia comparado à magnificência da famosa abadia de Hessen, mas até onde sabia, Lorsch era um convento masculino, a irmã ter estado ali era uma surpresa.

— Sim, Lorsch. Quem pergunta? - E virou a cabeça para todos os lados para reconhecer quem indagara pelo nome. Aldegard era cega do olho direito, como se podia ver pela membrana leitosa que lhe cobria completamente a íris, e justo naquele dia eu me sentara em posição que ficava além do alcance de sua vista. - Quem pergunta?

— É a menina nova, irmã. Não lhe deis atenção.

Após o repasto seguimos para o cômodo da lareira, para dar continuidade aos trabalhos de costura, mas alguém pegou-me pelo braço e interrompeu meus passos.

— Preciso falar contigo, disse Jutta, e puxou-me até sua cela.

A Magistra arrastou-me pelo corredor rápida e silenciosa, desejando sair das vistas de todos antes que tivesse que dar satisfação a alguma das irmãs. Mandou-me sentar antes de fechar a porta e nela recostar a testa, soltando um suspiro, depois colocou-se na cadeira à beira do catre, frente a mim. Perguntei-me que bobagem tinha feito dessa vez, se ralharia comigo somente por ter levantado a voz durante a refeição. Não parecia ser o caso. Jutta estava muito séria, mas não do modo que ficava ao aplicar uma punição. Seus olhos escuros, da cor da terra, pareciam menores, e sua respiração curta. Recolheu as saias em torno da cadeira com graça, um gesto que me lembrou sua mãe, a condessa Sophia, e por alguns instantes ficou a olhar para o nada, a expressão vazia, estática. Fiquei impaciente, afinal ela não se colocara comigo a portas fechadas à toa, e resolvi falar algo para tirá-la daquele “transe”.

— Cometi algum erro, irmã?

Ela voltou-se para mim sem surpresa. Devia estar atenta todo o tempo, esperando que eu chamasse sua atenção.

— Tens que cometer um erro para que eu queira falar a ti a sós?

— É só… Não é usual.

Irmã Jutta fechou os olhos após dar mais um suspiro e apoiou o lado da cabeça na mão, esperando que eu dissesse logo o que me incomodava.

— Hão de dizer que estamos a guardar segredos e que me colocastes acima das outras.

— Se distingo uma entre vós é por mérito, não cabe a elas contestar o que faço.

Disse isso mui tranquilamente. E, deveras, se era ela a Magistra, e a mim competia apenas obedecê-la humildemente, quanto mais às minhas irmãs. Reconheço, estava mais receosa do que ela me diria que preocupada com algum mexerico que nossa reunião pudesse gerar, e estava claro que ela o percebera, foi a desculpa mais esfarrapada que poderia ter dado. Imaginei que não seria uma conversa amigável e muito menos prazerosa. A ponta de meu pé começou a bater contra o piso ininterruptamente, uma mostra visível da minha inquietude.

— Estás me questionando muito hoje, Hildegard. O que houve?

— Nada irmã.

— Nada, soaria bem se eu não te conhecesse. De um modo ou de outro, não é isso que queria discutir. Quanto sabes a respeito de irmã Aldegard?

Irmã Jutta era direta, franca, sem sutileza nem rodeios, e em algumas ocasiões essa sua característica beirava o cruel. Foi uma das coisas que puxei a ela, se bem que não posso me orgulhar tanto quanto a boa mestra de disto fazer bom uso. Um pouco de discrição na juventude ter-me-ia caído bem.

— Sei que esteve em outro convento antes de vir para cá.

— Apenas? Ninguém contou-te mais?

Meneei a cabeça negativamente. Era raro que uma das monjas se dirigisse a mim, a menos que para dar ordens, e amizades ali, só as tinha com Richardis e ela mesma. Nenhuma das irmãs se ocuparia em contar-me, uma reles menina, algo sobre a vida da outra – e nisso faziam bem, pois a Escritura condena o muito falar e aconselha-nos a fugir dele —, logo, não havia como eu saber mais, a menos que Jutta acreditasse que eu ouvia as conversas das mais velhas às escondidas. Ficaria espantada se ela me supunha uma pequena bisbilhoteira, entretanto se o fizesse estaria me julgando por ela mesma. Ouvir atrás das portas fora um mau hábito seu quando moça.

— Mais uma vez, o que te digo fica entre nós, certo? Há dois tipos de pessoa, somente dois, a quem não se reprovam os atos: as crianças muito pequenas, que não tem ainda capacidade para distinguir entre bem e mal, e os muito avançados em idade, cuja decrepitude atrapalha o discernimento. Irmã Aldegard encontra-se entre os últimos. É uma santa mulher, e levarias uma vida para alcançar sua sabedoria e retidão de vida, porém seus pensamentos muitas vezes são confusos, e costuma ela falar de acontecimentos passados há muito como se ainda os vivesse. Em outras vezes ela alterna palavras de grande sensatez com outras de inclemência. Pouco basta para a provocar. Viste o que aconteceu hoje, a troco de coisa nenhuma, portanto acautela-te no falar. Não quero que ela faça uma cena por se aborrecer por tua causa, Hildegard.

— Irmã Ursula será repreendida?

— Ela não teve parte no que houve hoje no almoço, então não. Eu a aconselharei mais tarde.

— E quanto a Lorsch?

— Ai, Hildegard, para quê queres saber disso?

— Por favor.

Minha mestra não desejava falar sobre tal assunto e olhou-me um tanto quanto contrariada. Por fim decidiu contar-me, crendo que assim não fazia nenhum mal ou que eu a importunaria perguntando novamente.

— Ela veio de uma comunidade pequena de Bensheim, vizinha de Lorsch, e se correspondia com os monges de lá, interessada em aprender Medicina. Com aquela questão das investiduras e a guerra no período, houve muitas perdas, mesmo para a Abadia, e o convento dela foi destruído numa das revoltas. Um grupo de partidários do imperador o incendiou durante a celebração da missa de Páscoa. Ela, que já estava aqui quando cheguei, contava que escapou escondida na carroça de um mercador, mas suas irmãs não tiveram a mesma sorte.

Engoli em seco. Ouvira boatos das atrocidades cometidas contra conventos e mosteiros em tempos de guerra, da truculência dos infiéis da Terra Santa, que usavam freiras como escudo, contudo aquilo me parecera tão distante como se tivesse ocorrido em outra esfera de existência. Não imaginava que sobrevivesse alguém em tal situação, e lá estava ela, minha irmã espiritual, orando e trabalhando ao meu lado todos os dias. Jamais me passara pela mente que a irmã tivesse enfrentado todo aquele horror. Veio-me uma imagem do nosso eremitério em chamas, as monjas implorando por misericórdia em meio a gritos e salmos de socorro, choro e ranger de dentes, como os lançados para fora no Dia do Juízo, a própria imagem do Inferno. Era demais para mim, e se acontecera tal como eu imaginara, aquele Inferno caricato de iluminura, o gênio tão difícil de Aldegard não era à toa. Um espírito ferido por violência protege-se por qualquer meio, ainda que a nosso ver não faça sentido. Subestimar a dor de tais almas é de uma insensibilidade perversa.

Temi a resposta que receberia, e perguntei da mesma forma:

— Morreram todas?

Jutta desviou os olhos. Irmã Aldegard devia ter-lhe relatado episódios terríveis.

— Sorte pior lhes coube.

Não precisei que ela me explicasse, minha mente aterrorizada, com seu pouco conhecimento do tema, se encarregara de tal. Quando a vilania sórdida se apodera do espírito dos homens, nem as santas muralhas da casa de Deus os intimidam, cometem as suas abominações sem remorso, deixando uma trilha sanguinolenta por onde passam com seus cavalos e cavaleiros. Para cada santa da Antiguidade que por meio milagroso defendeu sua honradez, há cem jovens vitimadas pela mesma infâmia: mulheres como Jutta e Aldegard, meninas como eu, todas irmãs em seu sofrimento, e todas sob o mesmo jugo, pois esse gênero de crime, torpe como outro não poderia ser, não conhece distinção nem riqueza; ataca-se a camponesa na lida como ataca-se a senhora em seu castelo. Quantas desde o início dos tempos tem calado seu sofrimento, envergonhadas, por menos culpadas que são! Que o Senhor se compadeça de nós, suas filhas, moradoras deste estranho mundo vil. Preferi não saber se o mesmo tinha acontecido à nossa Aldegard, tinha me compadecido dela com aquele relato breve. Porém, por mais tenebroso que fosse seu passado, não descobrira a razão pela qual a Magistra me falara dela.

— Me contais essas cousas, minha senhora, somente para que eu não a aborreça?

— Como disse, irmã Aldegard é sábia, e merecedora de nossa consideração. Pode parecer austera em demasia e intransigente, mas se precisares em alguma ocasião de conselho, não conheço quem te o dará com maior juízo e temor a Deus. Em minha juventude, estive uma vez muito próxima de desviar-me do caminho de Cristo, e foi ela quem me trouxe de volta à razão.

Permanecendo em silêncio por um instante, minha mestra passou os dedos por entre meu cabelo alaranjado, afagando-me, e reuniu os fios com habilidade de tecelã para trançá-los, sem muito sucesso. Meu cabelo era escorrido e difícil de prender; nenhum penteado durava nele, nenhum ornamento ficava sem cair. Tentou fazer dois pares de tranças e cruzá-los no alto da minha cabeça, apenas para vê-las desmancharem-se, teimando em desobedecê-la. Algo naquilo lembrou-me de casa, não o mosteiro, mas o castelo Bockeheim, com meus pais e irmão, a criada que ficava fora de si ao ver o intrincado nó que inventara em meus cabelos desfazer-se sozinho. Jutta sorria, quase maternal, tirando prazer das tranças feitas em vão: ela falava de suas falhas, de seus desvios de tal forma, sem se vexar de suas fraquezas, como se nada tivesse a esconder de mim. Quem era eu, humilde coisinha, para que mulher de tamanha força me abrisse o oculto dos seus pensamentos, e da maneira que o fazia, pouco a pouco, a esperar pelo momento em que eu pudesse compreender? Que misteriosa e fascinante foste para mim, querida Jutta, e quanto de ti, passados tantos anos, ainda não compreendo. Do Paraíso onde estás, gozando indescritíveis delícias, podes-me ver? E se podes, o que dirias?

— Tens razão, Hildegard, tu e eu guardamos muitos segredos.

Mal sabia, infeliz mestra, que espécie de segredo dela eu trancara em minha alma. Escolhi continuar a guardá-lo, mesmo entre nós, e foi uma atitude muito prudente, como eu descobriria mais tarde.

— Ainda assim, mui me apraz que sejas depositária das minhas confidências. A ti não?

Quão me julguei ingrata naquela hora, e mentirosa! Meu coração dentro do peito pesou como chumbo, ao lembrar das mensagens e visões que medrosamente escondera dela, e quase chorei de vergonha por não ser merecedora de sua confiança, como se minha mestra fosse Deus, e eu Israel pecador, indigno de ser chamado Seu povo. Era um momento propício para revelá-lo: estávamos a sós e a Magistra parecia aberta a qualquer coisa que eu precisasse dizer. Todavia me calei, menina tola que era. Jutta, mui mansa, desistira de trançar meu cabelo e afastou-o do meu rosto. Se olhasse em seus olhos, mergulharia em um pranto convulso e não poderia dizer a ela o porquê.

— A mim agrada também.

Ela sorriu e levou-me de volta para a sala da lareira, com a mão unida à minha, sob os olhares intrigados das demais irmãs. Para mostrar a irmã Jutta que não lhe era indiferente, apliquei-me um pouco mais ao trabalho de bordado que tinha que preencher, um motivo de flores e galhos retorcidos sobre fundo verde, e não saíram tão disformes quanto de costume. Mais tarde, naquele mesmo dia, vi irmã Aldegard e Ursula juntas, a última lendo o Apologeticum de São Tertuliano para a primeira. Nossas desavenças duravam pouco, o sol não se punha sobre nossa ira, e a aquele círculo de doze pessoas (incluíamos o Cristo e sua santa mãe) se mostrava mais complexo que antes, com suas pequenas diferenças, virtudes, vícios. Não fosse pelas visitas frequentes de irmão Volges e as missas de domingo na igreja abacial, julgaríamo-nos por completo apartadas do mundo, e como acontece com pessoas nessas condições, apegávamo-nos umas às outras. As três noviças, por sua condição e idades próximas, eram muito chegadas, e coisa semelhante se dava com Richardis e eu. A camaradagem de que falo estava longe das afeições exclusivas e antinaturais, tão comuns entre nos nossos quanto condenadas; Jutta, cuja relação comigo, e também com sua pequena prima, era um caso à parte, tornara-se próxima de Sieglinde nos anos que antecederam minha entrada, e em uma ocasião ou outra, Alexandra lhe servira de secretária. A mesma Alexandra seguia irmã Aldegard a toda parte, a pretexto de amparar seus passos, e Bertha se achegara a ambas por admirar-lhes a rigidez das ideias.

Conto isso tão-somente para afirmar que a amizade florescia também em nosso meio, e que a perspectiva longínqua de perder uma delas tomava cores sombrias, assim como fora com mamãe em minha infância. Algo, a convivência creio, junto com o costume, criou raízes em mim, e não conseguia mais pensar em como tinha sido minha vida fora do eremitério. As lembranças lá estavam, conservadas em um canto de minha mente, mas os sentimentos, ah, esses desvaneciam-se como fumaça, distanciavam-se como a memória de um sonho. Estava claro que eu mudara e jamais voltaria a ser a mesma de antes de ingressar no mosteiro. Lembro-me de um momento em que estava ocupada a lavar pratos, os pensamentos perdidos em um devaneio qualquer, quando Richardis me tocou no braço e disse qualquer coisa que não escutei. Estava longe, mui longe, e fiquei a olhar para ela como boba até ouvir um estalo em minha mente. O tempo transcorria de modo diferente para nós, as horas sucedendo uma à outra: ora se arrastavam como boi a puxar o arado, ora corriam, célere como lebre nas campinas, porém Richardis, que naquela hora me dizia alegremente não-sei-quê, um dia nos deixaria, e não podia mais tolerar tal ideia. Eu cismara nisso em algumas ocasiões, quando éramos menos íntimas, e agora que aquilo me ocorrera de forma tão abrupta, eu não queria que se fosse. O eremitério não seria o mesmo sem sua presença. Não que eu pretendesse desistir da vida monacal por sua causa, no entanto ela tornava-se aos poucos tão cara ao meu coração quanto era Jutta.

— Por que não dizes nada?

— Eu estava a pensar.

— Pensar o quê?

— Que ficarei triste quando te fores.

Os cantos de seus lábios decaíram e seu sorriso desapareceu, encoberto por uma nuvem de decepção. Vinha tão feliz, na sua alegria de passarinho, me dizer uma novidade e eu respondia-lhe fazendo-a lembrar que não só teria que se ir, como também que não era realmente uma de nós. Ela tomou o prato que eu tinha nas mãos e pôs-se a enxugá-lo. A condescendência que as irmãs tinham por ela, suas pequenas regalias, no fim a marcavam como alguém que não pertencia àquele lugar. Não que a excluíssemos, pelo contrário, porém quando se pensava na comunidade, Richardis não estava inclusa, e não pensei que fosse tão apegada a nós para magoar-se por esta razão. Perguntara a ela uma única vez se não desejava tornar-se monja, e ela não tivera sequer oportunidade de responder. Eu sabia muito pouco a respeito de seus sentimentos.

— Isso vai levar muito tempo.

Nem tanto quanto ela imaginava.

— Perdão. O que vinhas me contar?

Ela voltou a sorrir e passou a falar baixo, não sem antes olhar para os lados, a certificar-se que ninguém a ouviria. Minha companheira tinha certo gosto em contar pequenas anedotas às escondidas e, boba que eu era, gostava de as ouvir. Decerto era algo ridículo a fim de fazer rir ou tolice desaprovada pelas irmãs. Daquela vez Richardis conseguiu me surpreender.

— Consegues escapar do quarto à noite?

Cravei os olhos nela, perplexa, sem entender porque raios me perguntara aquilo. Richardis propor algo do tipo era absurdo, despropositado. É certo, eu dera uma escapulida noturna, que se limitou a alguns passos fora da cama e de que me arrependera por completo. A traquinagem que ela desejava fazer parecia ser bem mais ousada que uma volta pelo corredor do dormitório. Eu era medrosa; se fosse para bulir com alguém, não me arriscaria por razão nenhuma, por mais que ela insistisse. Havia ainda o castigo por ter desobedecido à Regra, a que eu preferia não me sujeitar.

— É proibido falar e andar após as Completas.

— Para de repetir a Regra, acha que não sei? É por isso que pergunto. Consegues ou tens medo de seres apanhada?

Fosse o que ela desejava fazer, e por certo não devia ser boa coisa, estava tão segura de si que só pude ter uma ideia daquilo.

— Já fizeste isso?

Ela voltou-se para mim, envaidecida.

— Várias vezes.

— Também eu.

— O quê?

Foi a vez dela ficar surpresa. Provavelmente se considerava muito esperta para outra pessoa fazer o mesmo, porém, embora reprovável, não era muito interessante perambular pelo eremitério enquanto todos dormiam. Era, a bem dizer a verdade, bastante estúpido, uma estultice de criança feita sem razão e que poderia me custar muito. Ela seria repreendida e talvez recebesse algumas pancadas com vara de marmelo, eu porém seria julgada em demasia imatura para o noviciado, e perderia a pouca boa vontade das irmãs, que conquistara com tanto esforço e que ainda não me parecia muito firme. Fazer os votos em junho daquele ano seria apenas sonho, então.

— Foi uma vez só, e não fui longe do quarto. Mas por que me perguntas isso?

Chegou-se ao meu ouvido para segredar:

— Há algo que te quero mostrar, mas só posso fazê-lo depois da hora de dormir, ou depois da ceia, no máximo.

Estranhíssimo que aquilo viesse dela, afinal que espécie de ser ou o que fosse não podia aparecer à luz do dia, e o que tinha Richardis com tais coisas? Poderia ser algo sem importância, como uma estrela ou uma coruja, todavia desconfiei que tivesse se metido com algo bem pouco cristão, se é que uma criança pode fazê-lo. Que os santos olhassem por ela se fosse o caso; o entusiasmo de minha amiga com frequência afastava-lhe o juízo, e era muito ingênua para medir consequências.

— E por que é que só me podes mostrá-lo a essa hora? De que se trata?

— É uma surpresa.

— Bom, mostra-me essa noite então.

— Não hoje, sua boba, só acontece perto do verão, no dia de Pentecostes. Vais ter que esperar até lá.

— Ah, é algo que acontece?

— Sim, e não pode ser visto daqui de dentro. Teremos que subir um dos muros ou a torre do sino.

— Estás louca? Como esperas fazer isso após as Completas e chegar a tempo para o Ofício? E se um monge nos apanha, ou algum criado?

— Eu não disse que fiz isso antes? Acredita, iremos ver e ninguém desconfiará que saímos. Queres?

A igreja era trancada pelos monges após os ofícios noturnos, e como faríamos para chegar aos muros da Abadia, eu não tinha ideia; escalá-los era impossível, pois além de altos, não tinha muitas falhas onde apoiar as mãos e os pés. Havia ainda a questão da hora. Nenhuma irmã perdia a leitura da Vigília por dormir demais, e eu imaginava que antes de termos visto o que Richardis queria, já nos teriam pego fora da cama, talvez no mesmo momento em que nos levantássemos uma das noviças que dormiam conosco daria alarme. Para meu mal, a curiosidade, infelizmente, tinha-me mordido.

— Sim.

Muitos dias seguiram-se depois de minha amiga sugerir o tal passeio misterioso. Findou-se o Tempo Comum, passou-se o período de jejum da Quaresma e as festas pascais. Contar o que se passava entre nós dia após dia na casa cinzenta do eremitério creio que não é preciso. Cada pormenor de nossas vidas chega para todo um livro, e não pretendo transformar o meu relato em tese. Devo tê-lo aborrecido o suficiente com a descrição da nossa rotina monacal, e estás bem familiarizado com o ritual dos ofícios para que eu os tenha que explicar uma vez mais, portanto dedicarei-me a falar deles somente o necessário para que compreendas em que hora do dia se deu cada acontecimento ou quando tratar-se de festividade santa.

Minha amiga prometeu-me uma surpresa, uma surpresa proibida na noite de Pentecostes, a celebração da descida do Santo Espírito de Deus sobre os apóstolos. Quisera eu saber o motivo pelo qual acontecia na mesma ocasião de rito sagrado e tão solene, e na escuridão da noite. O assunto não fora mais mencionado por nós duas desde aquele dia, e eu não tinha coragem de sequer fazer-lhe alusão. Prosseguíamos com nossas orações e tarefas como de costume, sem novidades nem mudanças; não acredito que ela seria tão ousada a ponto de sair sozinha após ter me contado, sendo que eu podia denunciá-la, e se o fez em alguma madrugada, não o notei. Depois de três meses não cria que ela o lembrasse; talvez tivesse refletido e percebera que não valia a pena ou a intenção de se aventurar à noite pela Abadia nunca houvesse existido. Se desistira, tanto melhor, sinal que metera na cabeça um pouco de juízo. Eu também não tinha ânimo suficiente naquelas últimas semanas para me arriscar numa diabrura qualquer; fora tomada por forte melancolia, muito diferente da minha necessidade ocasional de solidão. Minha disposição para realizar as atividades diárias desaparecera como que por magia, e sentia uma profunda tristeza sem real razão para tê-la. De forma mui estranha, ninguém indagara daquela vez o que eu tinha, se sentia-me bem, nem mesmo Jutta, e fiquei só a esperar que o desânimo se fosse, rezando para a Virgem. No instante em que a má sensação parecia ter-se ido, comecei a sentir pontadas no baixo-ventre, que pelo fim do dia transformaram-se em dor generalizada, a alastrar-se por toda a região abaixo do estômago. Queixei-me da dor à minha mestra depois da ceia, que ela atribuiu a alguma desordem dos intestinos, contudo nunca sentira nada parecido antes, era mui diferente das dores intestinais e do fígado, como se um órgão desconhecido fosse comprimido em meu interior ao mesmo tempo que causava náusea.

— Dói-te demais? Podes aguentar até terminado o rito da noite?

Disse-lhe que sim, e ela pediu-me para que não falasse mais da dor — irmã Aldegard estava particularmente agitada daquela vez. Antes de ir dormir, ela me dera na boca umas gotas de beladona que levava consigo em um frasco. O extrato da erva me trouxe um sono pesado, mas alívio nenhum trouxe àquela cólica miserável, e quando acordei ainda a sentia, um pouco menos intensa, mas lá estava ela. Pensei tratar-se da doença que me acometeria caso me recusasse a obedecer o chamado do meu emissário, que falara nos desmaios e dores de cabeça, e não em dores no ventre. Ele, além disso, não me apareceu.

O dia seguinte era um domingo, dia bonito de maio. Assistimos à missa na igreja dos monges, como de hábito, e quando voltávamos para nossa casa, em fila, Richardis puxou-me de lado, um tanto ansiosa. Receei que alguém nos visse, pois ela não agira de forma nem um pouco discreta.

— Então vamos hoje?

Eu não me recordava dos nossos planos.

— Vamos? A que parte?

— É o Pentecostes. Não combinamos que eu te mostraria algo?

Vi minha mestra afastar-se com as outras irmãs enquanto falávamos ali, ao pé da igreja. Ficaria mui decepcionada conosco se soubesse da nossa intenção; não tínhamos mais idade para essas tolices, e esperava-se que no pouco tempo em que eu vivera dentro do mosteiro tivesse aprendido o mínimo sobre disciplina.

— Vais insistir nisso, Richardis?

— Sim, e se não vens comigo essa noite vou sozinha.

Pensei em Richardis vagando pela torre da igreja sozinha ou pelas muralhas, vulnerável e sujeita a todos os perigos e maldades da noite. Não acreditava em assombrações, mas cousas mui mais horrendas aparecem aos que pensam na escuridão escapar aos olhos onipresentes de Deus. Que má teria sido eu se a abandonasse a tais perigos, e se a deixasse sofrer sozinha o castigo se fosse apanhada.

— Está bem, eu vou. Mas ai de ti se acontecer qualquer coisa.

Ela sorriu.

— Mas vai acontecer uma coisa, só não acontecerá a ti.

E então tive a certeza de ter feito um mau negócio.

É certo que, findo o Ofício das Completas, não consegui dormir, tão ansiosa me encontrava, e deveria tê-lo feito; ficaria muito feio despencar de sono durante a Vigília ou arrastar-me de cansaço nas Laudes. Richardis, provavelmente, sequer pensara nisto quando teve a ideia doida de me convidar para seu estranho passeio, e tampouco cogitara que eu a podia denunciar. Por muito pouco não o fiz, sabendo que ela se zangaria e talvez não voltasse a falar comigo. A agitação picava meu corpo, dando-me vontade de revirar o corpo sobre o catre na procura de uma posição mais aconchegante, mas nem isso fiz, pois além de poder acordar as noviças com o rangido da cama, era obrigada a dormir deitada de costas com as mãos sobre o peito, do modo que se colocam os defuntos, qualquer outra posição acreditava-se que trazia pesadelos e atiçava o Diabo. As jovens irmãs custaram a dormir; tinham sono leve, as três, e às vezes eu as ouvia reclamarem umas às outras de insônia e recomendarem-se preces para adormecer. Fechei meus olhos e desejei esquecer aquilo quando, de súbito, ouvi ranger o piso de madeira gasta.

— Hildegard? Estás dormindo?

Quem sabe se a tivesse ignorado na hora, Richardis teria voltado para a cama. Eu mentiria no dia seguinte e lhe diria que tão profundo era meu sono que não a escutara nem uma vez. Ah, mas ela não cedeu: aproximou-se da minha cama e apertou-me o braço para mo despertar. Como ainda assim não respondi, ela subiu no catre, machucando-me a coxa com o joelho, sem querer.

— Hildegard? Acorda, já é a hora.

Espiei por debaixo das cobertas e a vi inclinada sobre mim, os cachos uma massa de ouro emaranhado a fazer cócegas em meu rosto. Impaciente, ela puxou a coberta em que eu me escondia, revelando meu rosto bem desperto. Aí não pude mais fingir e ficar na cama, teria que acompanhá-la de um modo ou de outro. Se o recusasse, Richardis acordaria a todas com seus arrufos de criança mimada.

— Dormiram todas?

— Já. Tens que vir antes que acordem, ou não poderemos sair. Vem logo.

Ergui-me do catre com o cuidado de não fazer ruído, escapei das cobertas e segui Richardis para fora do dormitório. Não levávamos nem vela nem lamparina, e tivemos que confiar em nossos sentidos para encontrar o fim do corredor, tateando as paredes. Estranhei não ver luz em nenhuma cela, afinal uma das irmãs deveria ficar de prontidão para acordar as outras na hora da Vigília, e se lá estivesse, seria a primeira a nos ver sair. Estaria no oratório rezando ou se a se penitenciar em segredo como irmã Jutta?

— Quem ficou de nos acordar dessa vez?

— Foi Bertha, mas deve ter dormido. Ficas quieta por um instante.

Nenhum som se ouvia além do suave de nossos passos. Recostei o ouvido à porta da cela de irmã Bertha assim que passamos por ela. Parecia totalmente escura, nem sinal de vela na abertura mais ao alto. Teria tomado um belo susto se ela surgisse naquela hora, abrindo a porta de supetão, porém tudo o que pude ouvir foi o som atrapalhado da sua respiração, meio travada na garganta. A irmã devia tratar logo daquele regougo, corria o risco de afogar-se enquanto dormia.

— Que estás fazendo?

— Creio… Creio que a ouço roncar.

Richardis fez sinal de silêncio e puxou-me pela mão até o fim do corredor. Saídas de lá, não éramos loucas para tentar a porta da frente, que além de tudo, precisava de chave para ser aberta, e escapamos pela janela da cozinha, tão frouxa que quando soprava o vento colocávamos um madeirame por dentro, para a impedir de abrir-se. Éramos pequenas o bastante para passar por ali, Richardis primeiro e com um pouco de dificuldade por ser mais cheia de corpo, eu em seguida, sem problemas. Ela esperava por mim do lado de fora e ajudou-me servindo de apoio para os pés (a cozinha era mais alta do que eu supunha). Ali, fora do eremitério, vi que ela surrupiara uma coberta para si, enquanto eu não tinha nada além da túnica para me cobrir. A temperatura não o justificava: o verão era quente e seco; ela pegara a capa escura para se proteger das vistas de alguém que porventura cruzasse conosco, o que considerei muito esperto. Ela me abrigou ao seu lado debaixo do capote e seguimos em direção aos prédios principais.

— Onde iremos?

— Eu pensei primeiro na torre do sino, já que encontrei a porta da igreja aberta algumas vezes, mas acho que fica alguém a rondar por ali, então vamos subir os muros.

— Como?

— Pela escada da sentinela, pode-se subir os muros por dentro até chegar ao topo. Só preciso lembrar-me onde fica.

Por pequeno que fosse o terreno da Abadia, temi que perdessemo-nos nele. Eu nada conhecia do lugar, andara por ele uma única vez. Richardis estava ali há mais tempo e parecia situar-se melhor, de resto, vivia tão reclusa quanto eu, e não devia ter explorado o mosteiro tão bem quanto se gabara.

— Espero que saibas por onde vamos.

— Podes ficar tranquila. A propósito, por que vieste sem sapatos?

— Achei que se estivessem sujos de terra, as irmãs suspeitariam.

— Serão os seus pés que hão de ficar sujos.

— Elas não hão de ver a palma de meus pés, mas se virem sujeira dentro de casa perceberão que alguém saiu.

— É, pensaste bem.

Após pouco andar, atravessamos um campo de terra fofa e cheiro desagradável em que eu nunca tinha estado, muito menos vira. A escuridão não contribuía para que víssemos o caminho que tínhamos escolhido para andar, e aquela coberta sobre nossas cabeças também não ajudava, pelo contrário, fez-nos tropeçar nos pés uma da outra uma porção de vezes. Como acreditávamos que naquele ponto não haveria ninguém para nos encontrar e que não fôramos ainda descobertas, saímos de baixo do capote, que Richardis me deu para carregar. Olhei para cima por um momento para admirar a infinidade de luminosos pontos do firmamento, preciosos e belos como uma porção de minúsculos alfinetes presos a um fantástico brocado negro. A noite pode bem ser morada de tudo o que é mau, porém é do mesmo modo criação divina, e como todas as coisas criadas por Ele, estupenda, incomparavelmente formosa. Quando voltei meus olhos à Terra, o insólito lugar pelo qual caminhávamos me fez lembrar algo vagamente familiar, até que me dei conta, terrificada, que nos encontrávamos no meio do cemitério monacal. Segurei o ombro de minha amiga, perguntando se faltava muito para chegarmos à escadaria da sentinela.

— Não, acho que estamos perto do portão principal. A torre de vigia fica ao lado.

— Que eu me lembre o portão não ficava próximo ao cemitério.

— Cemitério? Que nojo! À noite os corvos vem aqui para devorar os corpos. Espero não topar com nenhum deles.

Teríamos sorte se topássemos com corvos apenas. Por sorte, Richardis logo encontrou a porta para a escadaria de que falava. Seria uma bela subida: a escada era pouco firme, oscilava a cada passo, e estava mais escuro que do lado de fora. O ar, viciado, tinha um odor pronunciado de mofo que me fez lembrar da primeira vez que entrei na casa do eremitério. Minha amiga ia na frente, e eu, por segurança e para não perder-me, segurava em sua mão.

— Não vejo nada.

— Eu também não, mas a escada só dá para um lugar. Olhe só, chegamos.

Estávamos no topo da torre, onde não havia archotes para clarejá-la, embora um fraco raio de luar se disso se encarregasse. O meu temor era que um dos porteiros nos pegasse, porém não havia nem sinal da presença deles. Ora, é a partir do momento que o sol se põe que o seu trabalho se torna mais necessário. Fora uns poucos visitantes, que ocupavam a casa dos peregrinos, longe da área de clausura, nossos guardiões não tinham para quem abrir as portas, e deviam mais estar ocupados em evitar que alguém saísse. Ou que perambulasse por aí sem razão e em horário pouco convidativo, como nós duas.

— Não há ninguém de sentinela, que estranho.

— Ah, devem ter descido até o vilarejo para beber, especialmente hoje.

— O que tem hoje?

— É o que eu quero mostrar. Vem cá.

Nos aproximamos da abertura da janela. Não se podia enxergar muita coisa da paisagem, em meio às densas trevas daquela noite; dali, à luz do dia, se poderia ver o bosque verde-negro, a curva do Glan, um pedaço de estrada, e se não houvesse neblina, uma vila de camponeses ao longe, contudo logo percebi o que Richardis apontava, tão entusiasmada para mostrar-me: focos de luzes fulvas e rubras se espalhavam pelo que reconheci como parte dum campo aberto, próximo da aldeia, onde se fazia cultivo de uvas. As luzes ganhavam formato quando se prestava atenção nelas, uma forma rústica de homem, bem semelhante à dos bonecos de palha com que o meu irmão brincava em nossa casa de Bockeheim. Aquilo nada mais era que fogo, puro fogo, no entanto não um incêndio, e sim armado pelos aldeões, minúsculas figuras negras a dançar em roda em torno das gigantes labaredas. O vento trazia suas vozes de longe, misto de urros com cantigas de tipo estranho, numa língua desconhecida para mim. Seus vultos saltitavam com os braços erguidos, na mais exótica coreografia eu já tinha visto, ao redor dos “homens de chamas”, tão maiores que eles, como os demônios a dançar em torno dos condenados nas ilustrações grotescas do Inferno que eu vira nos codex da nossa biblioteca. Em verdade, curiosíssimo fenômeno, pois ao mesmo tempo que metia terror, era impossível dele tirar os olhos. Amedrontava e seduzia, misturando-se a um sentimento tão anormal quanto ininteligível.

— Fogueiras?

— Sim, as fogueiras de maio. Todo ano, quando chega o verão, os camponeses as montam, para festejar a ceifa. Eles cantam e dançam até não poder mais.

— E o que vem a ser essas formas estranhas do fogo?

— São jaulas, jaulas de madeira. Eles as montam e colocam toda sorte de coisas dentro delas, plantas, frutas e até animais, depois ateiam fogo nelas.

Aquilo não fazia sentido para mim.

— É uma celebração bem inusitada, para uma colheita.

Minha companheira chegou mais perto e passou a falar baixo, muito embora não houvesse ninguém para nos escutar. Até o porteiro deixara seu posto e devia estar a passear zonzo por aí, trôpego de tão bêbado, se não tivesse caído em qualquer canto.

— O Abade não gosta que os camponeses o façam, e é melhor que não saiba que foi realizado. Jutta também não. Ela detesta, na verdade.

Presumi que se Jutta detestava, somente podia existir algo muito impróprio naquela festa louca. Devia tê-lo notado antes; Richardis fazer qualquer coisa às escondidas fora um péssimo sinal ao qual eu não dera atenção. Eu mesma ficara impressionada e pensava ouvir vozes nos sons confusos trazidos pelo vento. Era muito diferente de ouvir e ver o Mensageiro com meus sentidos da alma; os clamores daquela gente ouvia com os sentidos da carne. Minha imaginação, tocada de má forma, distorcia as canções inexprimíveis e as convertia em palavras, afagando meus ouvidos num timbre sinistro, e me dizia “Hildegard… Hildegard, criança, vinde a mim…” Aqueles pequenos vultos, a dançar freneticamente, faziam-me pensar no Inferno, de suas torturas, e meu instinto mandava-me sair dali, pois não era lugar nem para mim, nem para minha companheira. Imaginei ter visto outras figuras indistintas a circular as jaulas de fogo, que caminhavam pelo ar, rindo perversas. O ritual estranho dos aldeões me impressionara em demasia, já estava a ver coisas que não existiam.

— O Abade diz que é derivado de um festival profano, e sempre se irrita muito quando os lavradores vem aqui pedir sua bênção e ele descobre que ainda o comemoram. Acho que não tem modo de convencê-los a parar, é coisa muito antiga, contam que já era realizado antes de São *** chegar. Dizem que naquele tempo já faziam-se sacrifícios com as tais jaulas, às vezes até com gente. Mas é bem bonito visto de longe, não achas?

— Como tu soubeste disso?

— O cozinheiro dos monges nasceu no vilarejo, volta e meia conta essas histórias. Os pagãos moravam aqui muito antes da fundação do mosteiro, e faziam do bosque um templo, cultuando seus deuses nas árvores, como aquele carvalho na frente da capela. Ele foi descrito pelos primeiros monges a passarem por aqui, que o encontraram coberto de fitas e pregos. Ninguém soube o que significavam.

E pensar que minha mestra se recostara àquela árvore e debaixo dela me falara sobre como a Natureza era perfeita emissária da vontade de Deus! Oh, céus, descobrira Jutta no carvalho a centelha de divindade da Criação, a despeito do uso que fizeram dele as tribos pagãs, ou fora enfeitiçada por resquício de culto mágico? Que fosse protegida de todo e qualquer mal, e que a ignorância lhe fosse benéfica. Eu já recebia em parte meu castigo por contemplar maravilhada a uma blasfema festividade, pois a dor no ventre voltara, a me rasgar por dentro, a revirar minhas entranhas. Encolhi-me, esperando que diminuísse, o que não ocorreu.

— Me trouxeste aqui, Richardis, para assistir a um ritual pagão?

Ela deu um muxoxo. No fim das contas, o intuito fora agradar-me.

— Não estás com medo, estás? Sabes que essas coisas não tem poder.

— Vamos embora. Estou a me sentir mal.

— Hildegard, estás me assustando.

Ela era somente uma menina sensível e imatura, bem como eu. A vista daquilo, é bem óbvio, a assustara também, e eu não daria meio instante para que começasse a chorar e dissesse que éramos vítimas de uma divina punição. Era melhor que a acalmasse antes de voltar para o convento.

— O que sinto não é nada, tive essa mesma dor ontem. Podemos ir? Precisamos estar na cama antes que as irmãs despertem.

Richardis não fez objeção, sendo que nossa aventura terminara, de certa forma, mal. Por graça nada de pior que minha cólica nos aconteceu no caminho de volta, e nem as monjas tinham se levantado. Voltamos para nossas camas desanimadas, certas de que o pecado que cometêramos fora grave, e por motivo fútil, era melhor esquecer o que vira naquela noite, que nada acrescentara a nós em termos de sabedoria ou de virtude. Seria bem-feito se tivesse um pesadelo. Faltava pouco para o Ofício de leitura da madrugada, e eu creio que não dormi mais que um quarto de hora; temi que uma delas percebesse uma diferença, pó em minhas roupas ou sereno em meus cabelos, e foi no que pensei quando, pela manhã, as noviças se acercaram de mim ainda deitada na cama. A dor fora tão forte que não consegui levantar e pedi ajuda a elas, porém olhavam-me hesitantes e não me tocaram, nem mesmo Richardis, que mantinha a cabeça baixa e ficara com o rosto em fogo. Clara e Elisabeth cochichavam e seguravam o riso, como bobas. Perguntei várias vezes o que havia de errado sem que ninguém respondesse. Como nos demorássemos para as Laudes, Jutta entrara no dormitório acompanhada das monjas para saber o que acontecera. Sentei-me e me apressei para me aprontar, quando ela apareceu muito séria.

— O que há convosco? Por que não estais no oratório?

E dirigindo-se a mim, irritadíssima:

—E tu? Por que não levantaste ainda?

—Irmã… - Chamou irmã Bertha, a apontar para minha cama.

Minha mestra cobriu a face com a mão, para ocultar o seu rubor. Aparentava estar mui constrangida, como se ela tivesse feito algo de errado, e não eu. Os olhos escuros, tão suaves, encaravam-me com uma expressão indecifrável, que não sei dizer se era de piedade ou complacência, todavia vi bondade neles, uma bondade encabulada. Por fim, a Magistra, mais calma, ordenou às outras que seguissem para o oratório, disse que estaríamos com elas logo, contudo não esperou que saíssem para mo perguntar, e falou com todas ainda em redor de nós. Jutta sentiria-se culpada infinitas vezes por esse motivo, e perdi as contas de quantas desculpas me pediu ao longo dos anos em que esteve conosco. Inocente que eu era, sequer desconfiei do que acontecia. Não pareciam ter descoberto nossa saída noturna, e se tivessem agiriam de modo muito diverso.

— Essas dores no ventre, Hildegard, é a primeira vez que as tem?

— Começaram ontem. Eu vos disse, irmã.

— E nunca as sentiste antes?

— Nunca.

Não conseguia atinar o motivo pelo qual ela mencionara a dor.

— Estou doente?

— Não, Hildegard, não é nenhuma doença que te acometeu. - E me mostrou minha coberta, onde havia, notavelmente, uma grande e escura mancha marrom. - É o sangue. O sangue do mês veio para ti.

E então nos atrasamos para as Laudes, pois Jutta e eu passamos horas juntas, com ela a acariciar meus cabelos, a tentar aliviar minha vergonha.


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Notas finais do capítulo

1 Em latim: “minha culpa, minha máxima culpa!”. Pertence à prece da missa chamada Confiteor (confissão).
2 Romanos 7:18: “porque sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem”.
3 Mateus 5:29: “[…] é melhor que se perca um de seus membros do que seja todo o teu corpo lançado no Inferno”.
4 Em latim: “Luz Vivente”.
5 Neumas: elementos de notação musical anteriores à invenção da pauta de cinco linhas.
6 Filipenses 2:14: “Fazei todas as coisas sem murmurações nem contendas”.
7 Em latim: codex, ou códice, eram os manuscritos do período da era antiga até a Idade Média, evoluídos para o que hoje chamamos livro.



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