Contos de Garras e Sangue escrita por Rick Batista


Capítulo 10
Falta de Sorte


Notas iniciais do capítulo

Um jovem lobisomem chegou a cidade, e já sabemos que não é o único. Será que o treinamento deu certo, ou ele continua como uma besta assassina em potencial? E a Evelyn, o quanto ela está metida nesse mundo de monstros que se transformam na lua cheia? Hora de entendermos um pouco mais do que ocorreu enquanto vampiros e homens brincavam de pega-pega.



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Em uma noite pacata e fria na cidade de Bleak Hill, um jovem vestindo casaco com capuz e usando uma mochila caminha pelas ruas, observando o fluxo de pessoas que se dirige para a missa. A grande maioria de carro, embora uma ou outra de bicicleta ou mesmo a pé.

Sabia que nessa cidadezinha o povo adorava uma igreja, pensa o garoto, caipiras tem mais medo de demônio que de gente.

A maioria das casas é grande e com quintais ainda maiores, e após rodar por mais de meia-hora ele chega diante da casa que queria: “Winnicott”, é o sobrenome na caixa do correio, e o carro que viu saindo o faz imaginar que a casa está vazia. Depois de se assegurar de ninguém estar olhando, o jovem pula a cerca de madeira, se esgueirando pelo quintal do casarão de dois andares.

Tão fácil que dá sono, pensa, Andy Valentine.

Nenhum barulho, se há algum cachorro não apareceu ainda. Portas e janelas trancadas (como ele já imaginava), não seria difícil destrancar, mas invadir a janela de cima já aberta é mais seguro. Um, dois, em três movimentos o garoto chega na janela, rápido e furtivo, um ladrão profissional. Lá dentro, um quarto típico de garota: cama bagunçada, criado-mudo, guarda roupas de seis portas, bichos de pelúcia e mesinha com computador. O único diferencial fica por conta de uma pilha de livros de Psicologia e uma gata peluda, dormindo em cima da cama.

Abrindo o guarda roupas: perfumes, maquiagem, fotos, cds, dvds e... roupas. Já sem esperanças ele abre a última porta do móvel, lá dentro reluz um crucifixo muito bonito, que ele sabe que renderia um bom dinheiro. Mas Andy não deseja roubar objetos, algo valioso assim chamaria atenção desnecessária, prefere dinheiro vivo. Ao fechar o guarda roupas, encontra uma gata toda arrepiada olhando e silvando para ele.

— Eu não gosto de você, você não gosta de mim, cada um fica na sua, valeu? — ele fala, olhos semicerrados ao encarar a criatura.

Quando pensa em tentar a sorte em outro cômodo, som de passos vindos de fora do quarto o fazem mudar de ideia. Em cinco segundos a porta do quarto é aberta, ao mesmo tempo em que o garoto se esconde embaixo da cama.

Já dentro do quarto, uma jovem de camisola e sandálias de pantufas caminha lentamente em direção à mesa do computador, ao lado da cama onde uma gata mia freneticamente, como se quisesse denunciar o invasor.

— Surtou, Fiona? — Pergunta Claire, enquanto afaga o pescoço da amiga com pelos. — Desse jeito vou te encher de Rivotril, hein!

Ela liga o computador e entra na internet, acessando uma dezena de páginas enquanto fala com uma amiga via Skype. Totalmente inocente sobre o intruso tão perto de si.

Casa de rico e nenhum centavo, e agora isso. A merda da gata me deu azar.

Ele lamenta, enquanto tenta pensar em um plano para sair de lá sem ser visto. Para seu azar, o animal desce da cama e deita em sua frente, miando com olhos acusadores. Do ponto em que se encontra, ele consegue discernir as curvas da bela loira, o que quase torna a situação agradável, principalmente se ela resolvesse despir-se.

— ...meu pai disse que o senhor Freemam tá super preocupado, que o Barry é meio maluco, mas nunca sumiu assim, sem dar notícias por mais de uma semana. — Fala Claire, para a amiga do outro lado da tela.

— Ele deve tá por ai, de piranhagem. — Fala Evelyn. — Não é como se tivesse sido comido por um bicho, ou coisa assim.

Elas riem, só que Evelyn com um sarcasmo que a loira não teria como discernir, inocente da participação da amiga na morte do ruivo. Andy também não sabe sobre isso, mas essas palavras o levam de volta aquela noite sombria... o som alto da gata silvando para ele o traz de volta, mas agora com um resquício da sua natureza animalesca. Ele encara o felino com olhos de um animal selvagem, fazendo a gata se arrepiar e sair correndo pela porta entreaberta.

— Que foi isso, menina!? — Pergunta Claire, assustada e indo atrás do animal.

O garoto percebe que essa é sua chance, e começa a sair furtivamente de seu esconderijo. De capuz ainda no rosto e rápido como um gato, ele se esgueira até a janela, e de lá passa para o lado de fora. A janela do Skype não foi fechada, e Evelyn continua lá, só que distraída. Por um instante ela olha para a direção dele, mas isso bem no momento em que ele passa pela janela...deixando apenas um vulto cinza por meio segundo na tela.

Enquanto a garota encara mais atentamente a imagem do quarto da amiga, a vê retornando para o assento em frente a ela, com uma gata assustada no colo.

— Que foi garota, tá com uma cara estranha, aconteceu alguma coisa?

— Nem... acho que sua gata viu fantasma, hein. — responde a jovem de lábios grossos e olhos amendoados. — Melhor você ir pra missa enquanto pode, hein amiga.

Elas riem novamente, só que uma delas novamente não tem um sorriso sincero.

Quando essas palavras são ditas, o garoto já está fora do terreno dos Winnicott, para nunca mais voltar lá.

Casa de rico, nenhum centavo e quase sou pego. Pelo jeito a gata me deu mesmo azar, pensa ele. A merda dessa semana tá cada vez pior!

[...]

Cinco dias atrás, início da semana.

Depois de uma pequena maratona, Andy chega na escola para seu primeiro dia de aula, após faltar por vários dias. A corrida o anima um pouco, esforço físico sempre foi bom para fazê-lo deixar de pensar nos problemas. Todo suado ele chega na sala, tendo como único desejo desviar do olhar da professora, o que obviamente não acontece.

— Ei, ei, garoto! Venha aqui na frente e se apresente como se deve! — Grita a professora, uma senhora magricela, de nariz pontudo e cabelos brancos em coque, já com seus sessenta e tantos anos.

Ele se vira calmamente em direção a ela, ciente das dezenas de olhos e risos que o seguem.

— Andy Valentine, tia. — Ele fala, enquanto estuda a cara dos seus colegas de classe. Patricinhas, valentões, esportistas, CDFs, tem de tudo ali, os mesmos grupos que encontrou nas escolas por onde passou. Grupos com os quais nunca conseguiu se enturmar. Mas no fim da sala, um rosto conhecido: Mandy Duncan, a irmã do mecânico, olhando para o lado e com um sorriso de zombaria na face.

— Nada de tia! Sou sua professora e exijo ser tratada com o respeito devido. — Reclama a mulher, enquanto bate com o apagador na mesa repetidamente. — É senhora Margaret! Não sei se de onde você veio é normal chamar a professora como parente, mas aqui em Bleak Hill exigimos um linguajar apropriado.

Andy pensa em como seria o barulho da cabeça da professora batendo na mesa, enquanto encontra um lugar para sentar que seja ao seu gosto: na última fileira, como de costume. Ele fica no lado oposto da garota, embora também no fim da sala.

Duas horas depois, os alunos levantam e saem da sala, não sem antes olhar para o forasteiro, entre risos e caras feias ele percebe que é o assunto da vez. Vez ou outra ele olha para a garota que fingi ignorá-lo.

— Espero que suas faltas e o atraso de hoje sejam exceções, e não regras, senhor Valentine. — Comenta a professora, enquanto apaga o quadro com a matéria que o garoto não entendeu.

Andy ignora o comentário e vai embora, no caminho de volta, encontrando a dona da casa em que tem se hospedado, à sua espera.

— Diz ai Scooby, como é ser o centro das atenções na turma? — Pergunta Mandy Duncan, uniforme escolar e adereços de rock.

— Quer dizer que agora a Hello Kity tá me vendo? Achei que tava cega. — Ele responde, acelerando o passo e mudando a direção.

Ela aumenta o ritmo para acompanhá-lo.

— Você tá dormindo na minha casa, não imaginei que também tivesse na mesma turma que eu. A cidade é pequena, cara, se a gente for visto juntos toda hora, daqui a pouco vão começar a falar bobagem.

— Dane-se, garota! Tenho mais o que fazer que ficar de mimimi com a lobgirl da cidade. Fui!

Ela desiste de acompanhá-lo, ao notar que ele vai mesmo pegar outro caminho que não o seu.

— Vê se não some, você já tem dado muito trabalho pra o Jimmy, vê se não faz ele ter de caçar você também.

[...]

Seis dias atrás, casa dos mecânicos.

Um porão fedorento em uma noite de lua cheia. Um monstro grande, forma de lobo, com garras afiadas, pelos brancos e olhos vermelhos, urra de raiva para um homem parado à sua frente. Apenas uma coleira de metal feita com correntes muito grossas impede a criatura de destroçar o homem.

— É sério, Andy, a terceira noite de treinamento e tu não consegue ainda nem raciocinar que não deve me matar? — pergunta Jimmy Duncan, mecânico profissional e lobisomem nas horas vagas.

A única resposta do monstro é morder e puxar a corrente, quebrando dentes e fazendo a gengiva sangrar. Jimmy então tira a roupa e começa ele mesmo a virar um monstro. Músculos e pelos, garras e rabo, dentes e focinho, em poucos instantes, o porão se torna palco de dois lobisomens imponentes e assustadores. Jimmy, maior que seu alvo, salta sobre ele e segura sua cara com as poderosas patas que adquiriu, mantendo o olhar da fera no seu próprio.

— Você é Andy Valentine! — Fala Jimmy, olhos nos olhos. — Lembre-se de quem você é! Lembre-se de quem você é!

Uma mordida quase arranca o antebraço do mecânico, sangue escorrendo pelas presas do monstro que não consegue voltar a si.

Atrás do Jimmy, agora afastado e ajoelhado enquanto aguenta a dor do ferimento que sabe que vai se curar, surge uma garota de calça larga e casaco. Ela observa a cena, enquanto bebe chocolate quente, e diz:

— Assustador né? Acho que ele vai te dar muito trabalho ainda, maninho.

— Quieta, Mandy! — Jimmy urra entre dentes, suportando com dignidade a dor e olhando para o monstro que continua a se ferir ao tentar rebentar a corrente. — Ele tem raiva de mais dentro dele, e raiva é justamente o que alimenta o monstro dentro de nós.

— Enquanto o garoto não aprender a dominar essa raiva, ao invés de se deixar levar por ela, ele vai ser só um animal.

— E se ele não for bom nisso? — pergunta, Mandy, mesma expressão de desinteresse.

— Ele vai embora... ou morre. Não quero um cachorro louco na nossa cidade.

E os dois irmãos olham para o lobo, que uiva para a lua acima do porão.

[...]

Noite atual.

São 21h00, horário sem grande movimento no bar e lanchonete “Bleak Beer”. Com um balcão de bebidas, dez mesas espalhadas, duas atendentes servindo, um cozinheiro e dois clientes, o dono do estabelecimento seca copos enquanto ouve o noticiário da tv:

“— ... e as buscas pelo estudante Barry Freeman prosseguem por mais um dia, sem maiores resultados. Oficialmente, a polícia acredita que o jovem não tenha saído da cidade, embora não tenha muitas pistas. Os sons de uivos muito próximos que foram relatados por moradores fortalecem a hipótese do jovem ter sido vitimado por lobos, o que justificaria as buscas pela área verde.” — diz o repórter do telejornal, e continua:

“— Extraoficialmente, boatos fazem menção ao misterioso dono do castelo no alto da colina, conhecido como Adam Tepes. É comum ouvirmos pessoas o chamando de “Conde Drácula”, tentamos contato com o mesmo, porém sem sucesso. Como ele chegou a cidade a poucas semanas, é normal que parte da população fantasie um envolvimento da sua figura com o desaparecimento. Já uma outra linha de investigação...”

Sozinho em uma mesa, encontramos Andy Valentine tomando uma sopa aguada. O pouco dinheiro que conseguiu invadindo a casa de um velho bêbado, exige economia, e a solução foi pagar a refeição mais barata do lugar. Quando estava terminado de comer, uma jovem atendente para à sua frente e coloca uma porção grande de carne com batatas coradas, na mesa. O garoto olha na direção dela com cara de interrogação, ao que ela responde, com cara de peixe morto:

— O prato é cortesia do chefe.

Escorado no balcão está um homem aparentado cinquenta anos, cabelos curtos e barba por fazer. Ele mostra um sorriso enquanto fala:

— Essa ai é a especialidade do bar, não quero que você saia daqui com má impressão da nossa comida. Se você fosse maior de idade, te mostrava os drinques também, mas daí, não quero problemas com a polícia.

— Nem eu, valeu ai vô. — responde o garoto.

Trevor parecia querer perguntar alguma outra coisa, mas sua expressão muda quando vê um grupo entrando no bar. São dois homens e uma mulher: o primeiro é um sujeito alto e musculoso, na faixa dos trinta, olhos e cabelos escuros, cabeleira grande, jaqueta de couro aberta e sem camisa por baixo. Calça de couro e botas, parecendo um vocalista de metal. No braço esquerdo, ele exibe uma grande tatuagem, com símbolos de jogos de azar, com dados e cartas. Ele anda agarrado a uma jovem bonita, por volta dos vinte, negra e de cabelos volumosos, belas curvas, calça de couro, botas e blusa com decote. Os dois riem bastante.

O terceiro deve ter uns vinte cinco, usa um casaco largo, é magro e de cabeça raspada. Usa calça jeans preta e tênis, com uma coleção de piercings entre nariz, língua, boca, orelha e sobrancelhas, combinada a uma cara de poucos amigos. Andy percebe que as garçonetes arrumam algo para fazer na cozinha assim que eles chegam, e o próprio dono do bar que vai até eles. O único outro cliente deixa o lanche pela metade com o pagamento na mesa, saindo como quem não quer nada.

Os três conversam entre si enquanto Trevor anota o pedido, fingindo bom humor para o maior deles, enquanto o menor examina tudo em volta, detendo o olhar em Andy, que para evitar confusão se concentra na batata. O casal se beija de forma intensa, ela no colo dele, trocando carícias de modo lascivo. O outro tira os olhos de cima do Andy e começa a resmungar algo para os dois enquanto Trevor volta com as bebidas.

— Porra meu chapa, tem algum motivo pra aquelas quengas que trabalham pra você ficarem se escondendo na cozinha? — pergunta o cabeludo alto. — Que eu saiba, meus manos e eu sempre deixamos uma boa duma grana nesse teu barzinho cheirando a bosta!

Trevor mantém o sorriso enquanto volta da cozinha, após entregar o pedido, diz:

— Você sabe da merda que aquele amigo de vocês grandão fez aqui da última vez, né Malcon? Do soco que ele deu em uma das minha garotas. Elas ficaram assustadas, sem falar no rolo de vocês com a polícia.

— Um bando de putinhas assustadas. — ri a garota.

E o tal Malcon cai na gargalhada, dando tapinhas nas costas do Trevor, e então diz:

— Que se fodam tuas vadias, eu quero saber é da comida mesmo. Me traz o prato de sempre rápido e a gente esquece isso, parceiro.

Minutos depois, Andy termina a refeição e vai até o balcão pagar pelo que tinha pedido antes. Trevor recebe, e quando o garoto está a poucos passos da saída, sente uma mão segurando seu braço. Ele se vira e dá de cara com Malcon, ainda sentado na cadeira.

— Qual é a sua? — O garoto pergunta, puxando o braço e percebendo que quem o segura é mais forte que ele.

— Não... qual é a sua? Tu acha mesmo que eu não ia perceber quem é você, garoto? — Malcon torce o braço do Andy e sussurra. — Que eu não ia sentir seu cheiro de cachorro encardido?

— Engraçado, eu podia jurar que já vi ele antes. — Diz a garota que o acompanha, chamada Evelyn.

Trevor se aproxima da mesa e tenta acalmar o grupo:

— O que tá pegando, Malcon? O garoto não quer confusão, ninguém aqui quer. Deixe ele ir e eu deixo vocês beberem até cair, por minha conta, hã?

— Esquece a bebida grátis, parceiro. — Malcon diz, enquanto se levanta e os outros repetem o gesto. — Aliás, esquece a comida também. Jeff, acerta ai a bebida que a gente pediu com nosso camarada, traz as garrafas e vamos nessa.

Nesse momento, Andy consegue desprender o braço, encara o Malcon e fala:

— Não sei do que você tá falando cara, mas eu não curto ninguém me segurando ou dando ordem!

Malcon apenas o encara, olhar de desprezo na face. Nesse instante, o garoto sente a garota o abraçando por traz, e um cano de arma pressionando sua costela.

— Desculpa gatinho, mas quando o macho alfa rosna, os lobinhos obedecem. — Evelyn sussurra no ouvido dele, com uma pistola dando ênfase a frase.

O garoto permanece com ares de desafio para o grupo, que apenas ri da cara dele em resposta. Quando saem do bar, sob o olhar impotente do dono, Andy vê o Malcon se dirigindo até uma caminhonete, e então dizendo:

— Seguinte, parceirinho. Tu vem com a gente quietinho, ou vamos ter que levar teu cadáver?

Ele o encara com raiva, e então responde:

— Vai pra o inferno, imbecil!

Malcon faz um gesto para alguém atrás do garoto e da Evelyn, e o jovem sente uma forte dor na nuca. Tudo fica escuro e distante, enquanto Andy Valentine é levado até o covil da alcateia.


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Notas finais do capítulo

A matilha está a espera, e é hora do andy escolher seu lugar no mundo. Jimmy e Mandy, Malcon e Evelyn, mãe... hora de termos as respostas que encerram a apresentação desse personagem, e abrem caminho para o retorno dos outros.