O Poder da Adivinhação escrita por silentread


Capítulo 1
"Antes que eu necessitasse de palavras, pendia de um barranco por olhares."


Notas iniciais do capítulo

dale é fofinho e quer que todos saibam como ele se sente em relação ao seu colega de quarto. vamo dar uma chance a ele, né?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/609485/chapter/1

Seus olhos brilharam à luz das velas. Eu quis que ele se aproximasse, apesar de estarmos irritados um com o outro. Quero dizer; fingindo estarmos irritados. Eu, pelo menos, estava. Ri na penumbra. Tenho certeza de que ele não me notou.

Quando eu digo que fingimos, é porque sempre cuidávamos, mesmo que implicitamente, do bem-estar mútuo. Eu queria vê-lo se dar mal, mas também não queria vê-lo mal. Era complicado e eu sabia disso.

Não poderia ser classificado como uma coisa ruim, no entanto. Nossas diferenças eram quase gritantes, tanto que eu às vezes passava horas tentando entender o porquê de ele gostar tanto de Beatles se a minha banda preferida era Maroon 5. Caramba, eu sabia que era ridículo da minha parte. Não, não precisava de ninguém pra me dizer isso. Mas ele queria impor sua música à mim, então era aí que eu vinha lhe perguntar que merda ele fazia para me irritar daquele jeito.

Ele gostava de comer o sorvete de morango quase todo. O “problema” é que nós sempre comprávamos napolitano e ele sentia a necessidade de comer as três fases direitinho, como se fosse um ritual. No fim, o cara se irritava porque eu sempre pegava mais da parte de morango.

Nós infelizmente estudávamos juntos. Dividíamos um quarto na faculdade. Mas por que merda eu tinha que ter escolhido Química, mesmo? É. Eu queria trabalhar como Químico Forense e era justamente a matéria preferida do meu “amigo”. Acho que era a única coisa que tínhamos em comum, mas eu nem gostava tanto de elementos e fórmulas e cadeias carbônicas e soluções, bases/ácidos. Era bem chato, na verdade. Prefiro história.

Quando brigávamos, nossos argumentos eram bem... Infantis. Eu admito. Mas era um de meus passatempos preferidos. Uma pena que não eram os dele, porque assim passaríamos horas só naquela brincadeira. O negócio é que ele odiava quando eu ficava lhe alfinetando, então fugia para onde eu não poderia encontrá-lo.

Tenho que rir dele toda a vez, por isso. Ele não sabe que eu sei onde é seu esconderijo. É... É bem lá no almoxarifado antigo, ninguém o usa mais. Não sei como ele consegue, já que o local é abafado, escuro e tem cheiro forte de coisa velha. Passa horas lá dentro e eu sinto falta de tirá-lo do sério, então vou procurar algo pra fazer.

O pior é que esse “algo pra fazer” muitas vezes se resumia a vasculhar suas coisas no quarto. Eu gostava de ler suas anotações nos cadernos porque sua letra era bem inclinada e eu ria depois. Ouvia suas músicas. De vez em quando o player estava parado no meio de uma canção qualquer e eu a ouvia por ele. Mas tinha de me certificar de que o cara nunca percebesse que nunca uma música era a mesma quando ele pegava o iPod novamente.

Ele estava sempre ouvindo Beatles.

Não vou dizer que analisava suas camisas, que eram sempre de manga longa e em sua maioria brancas e cinzentas. E nem que levava elas ao meu nariz, porque aí já seria exagero demais. Mas eu deitava em sua cama porque o cheiro era único. Não sei de que, mas era forte. E eu implicava com ele porque preferia nenhum perfume, ou perfumes suaves. Então eu ficava lá, pensando em nada importante.

Uma vez eu quis insinuar que ele tinha uma paixão secreta por mim. Era só para irritá-lo, óbvio, mas eu não tinha argumentos idiotas o suficiente para provar isso, assim desisti. Aí ele virou-se e partiu para seu esconderijo que ele não sabia que eu sabia onde era.

Isso me deixou extremamente perturbado, deixando de lado o fato de que ele não rebateu a nenhuma das minhas brincadeiras, como sempre fazia. Parecia mais abatido que o normal e não abriu o bico. Foi bem estranho, devo afirmar. Mas isso já fez quase uma semana de acontecido.

Depois disso, nada voltou ao normal. Eu devia não dar a mínima pra isso, né? Aquele cara era estranho, e eu não devia estranhar quando ele fosse estranho. Porque ele é assim. Certo? Mas por que eu sinto como se tivesse algo muito errado?

Quer dizer, não muito, não quero assustar vocês. É só que... Eu só queria que ele voltasse ao... “normal”?

Antes ele acordava exatamente às 7h. Agora, quando eu mesmo acordo, não vejo rastro de sua passagem. Porque ele é bem cuidadoso e nem molha o chão do quarto quando sai do chuveiro, ao contrário dessa pessoa que vos fala. Não é exatamente um problema.

Quando vou, nas raras vezes, tomar café-da-manhã, é como se ele nem existisse. Não o vejo de jeito nenhum nos corredores e nem na cafeteria e nem na cantina do campus. Ele parece um fantasma. A diferença é que ele é de carne e osso e ele mora comigo.

Caraca, ele mora comigo mesmo! Toda a semana! Eu tenho que tentar descobrir alguma coisa.

Mas não aqui, não agora. A propósito, o aqui e agora é o seguinte: estamos sentados. Separadamente, claro. Estou no colchão, o meu, e ele está na poltrona do quarto, perto da janela. Está faltando energia desde cedo e nós não nos falamos desde então. Nos últimos dias, apenas as palavras estritamente necessárias são trocadas entre nós e isso só tá dependendo dele, não de mim.

Por mim, estaríamos jogando alguma coisa. Um jogo chamado “murmúrio” ou “sequestro¹”, que é bem interessante. Dizem que tira você do tédio rapidinho. Era disso que nós precisávamos: acabar com o tédio. E, bem, a nossa DR. Que durava quase duas semanas.

Suspirei. Ele pareceu ouvir, mas não quis demonstrar o sobressalto. Eu queria falar umas coisas. Mas eu não sabia direito o que. Tinha a ver com a sua nova forma de agir, mas eu não tinha domínio total do que acontecia. Não confundam isso com covardia; não tem absolutamente nada a ver. Eu sou muito corajoso, por sinal. Muitas vezes confundido com estúpido, mas vejo isso como um elogio.

Se eu soubesse exatamente o que se passava com meu amiguinho, falaria com ele assim, na lata. Rapidão. Na mosca.

Ah, a propósito, meu nome é Reece. Dale Reece. Mas isso não importa. Essa é uma história sobre Raleigh Ellsmore e... Na verdade, eu não sei bem, porque não consegui descobrir nada até agora. Pode não ser uma história só sobre ele e sim sobre nós dois. Dois caras que não conseguem ser grandes amigos por conta das diferenças.

Raleigh tem cabelos muito pretos. Ondulados às vezes, parece que depende do clima. Ele costuma cortá-los periodicamente, apesar de que uma magnífica vez o seu lado rebelde – os virginianos costumam ter um lado que é totalmente diferente do seu habitual (eu descobri isso por uma amiga minha que faz Astronomia mas é apaixonada também por Astrologia e essas coisas sign...ificativas) – aflorou e, bom, ele os deixou crescer...! Até abaixo das orelhas. Era época do verão e acabou irritando-se logo, nunca mais o fez.

Mas mal sabe ele que eu tenho fotos. Não são muitas, em torno de 20... Ou 30. 35, no máximo.

Seus olhos são marrons, e muito escuros também. Eu desconfiava que eram pretos feito seus cabelos, mas já os vi à luz do Sol. São marrons, mesmo.

Nesse momento, ele apoia o queixo com a mão direita e olha fixamente para a janela, mesmo que não pudesse enxergar porcaria nenhuma lá embaixo. A mão esquerda mostra uma mania sua, que é batucar lentamente os dedos no joelho. Ele deve bem perceber que eu tô olhando pro perfil da cara dele faz uns bons minutos.

Soltei outro suspiro. Eu tinha que falar alguma coisa, tinha que fazê-lo dizer que problema era aquele em que nós não podíamos agir mais como antes. Devo admitir que estou com saudades. É pedir demais? Poxa, ele me acostumou às briguinhas. Ele sempre implicava com tudo, mesmo que não fosse explicitamente. É sério. A minha comida, o jeito que eu comia, como eu escrevia, as minhas palavras (sou um grande adepto de gírias, mas ele quase as repudia, é loucura), meu jeito de vestir, até minhas namoradas e os estilos delas. Era hilário.

Estou começando a achar que isso tudo é culpa minha. Como seria, na verdade? Sei que aconteceu depois de...

Oh.

Não.

Será que foi a estória do sorvete de morango de novo? Há duas semanas, nós fizemos as compras mensais pro frigobar. Sim, temos um frigobar. Então eu ataquei o pote de sorvete, napolitano como de costume, e ele se enfureceu porque eu peguei mais morango.

É mais ou menos desde esse dia que nós estamos com a relação conturbada. Quero dizer, eu agradeceria que estivesse conturbada; a verdade é que está parada. Paradona. Sabe gelo? Tão fria quanto.

Eu não mereço isso; sou um cara legal, vai. Raleigh me maltrata como se eu fosse uma criatura pestilenta e meu remédio fosse o vácuo total. Não costumo ser tão orgulhoso, tampouco rancoroso, mas nessa situação em especial, eu não vou falar. Não vou mesmo. Raleigh vai ter o que merece: vácuo de mim, também. Criatura pestilenta.

— A-ah... Raleigh.

Bom, eu falei fazia uns 10 minutos depois do meu pensamento. Tá bem, eu sei que isso foi extremamente fraco. Mas não posso fazer nada se meu eu interior não consegue ser ruim como esse cara sentado na minha frente. Se você está se perguntando se ele respondeu; não, ele não respondeu.

Pelo contrário, fechou mais a carranca. Seus dedos se torceram em torno do queixo e ele grudou os olhos como se sua vida dependesse daquilo.

Tudo bem. Tudo o que eu preciso fazer é irritá-lo só mais um pouquinho. Sim! Ele vai explodir e começar a falar. Esse é o plano, e irritar eu sei fazer direitinho. Diálogos!

— Isso é por causa do sorvete? Você sabe, a parte de morango que eu comi. Quase toda. Eu sei muito bem dessa sua obsessão em comer tudo direitinho, mas eu amo aquele gosto falso de morango. Aquilo é quase cítrico, por Deus.

Silêncio em resposta. Mas eu não desistirei.

— Ray, lembra quando você saiu do quarto todo estressadinho naquele dia? Eu ouvi suas músicas. Na verdade, eu ouço sempre. Como é que você agüenta os Beatles, sério? É até legal, mas você só tem eles no iPod. Não dá, é humanamente impossível ouvir apenas uma banda. Cara. Me escuta. Vamos baixar umas músicas novas, eu te ajudo.

Carranca sem mudanças visíveis. Afinal, está escuro. Ele pode estar sorrindo sucintamente enquanto pensa na minha proposta; ou não.

— Seu cheiro é forte assim mesmo? Não tem nenhum, nenhumzinho perfume? Isso é muita doideira, cara. Eu passo perfume todos os dias e, antes que a manhã acabe, já não tem resquícios dele. Você faz mágica ou algum tipo de coisa assim?

Oh, ele se mexeu desconfortavelmente. Acho que eu estou conseguindo. É só cutucar mais um pouquinho...

— Ah! Como eu não pensei nisso antes?! É claro que você é apaixonado por mim. Agora eu te digo o porquê: minhas namoradas! As três que tive desde que entramos aqui. Você era um porre com elas porque não agüentava a ameaça de não me ter só pra você. Mas eu te tranquilizo: bros before hoes², Ray.

É, eu tenho a pequena impressão de que... Deu certo.

Raleigh olhou pra mim, diretamente nos meus olhos. Ai, essa queda de energia do demônio. Não estava nem chovendo, não tinha motivos pensáveis. Talvez fosse algum problema no gerador da Universidade. Enfim, o negócio é que dava pra vê-lo, por conta da luz de velas.

Seu rosto era, sem dúvidas, branco. Mas naquela iluminação ele estava laranja e maléfico, porque olhava pra mim com a expressão nada boa. Eu com certeza havia o acordado; o que era meu plano, afinal, queria respostas. Ele bufou, chateado, mas não parecia inteiramente tomado de coragem.

Tomado de coragem? Porque ele teria que ter coragem? Coragem de fazer o quê?

Alguma coisa nos olhos me dizia que ele estava receoso, com raiva e cansado. Mas já fazia um tempo que o olhar enfadado dominava aquele rosto, e eu tinha certeza que era por causa da faculdade. As duas outras coisas não, porém.

Eu, olhando para o Ray, começava a me lembrar de quando eu comecei a chamá-lo assim. É sério, ninguém o chamava de Ray. É porque meu apelido sempre foi Day. Dale, Day. Raleigh, Ray!

Não preciso nem dizer que ele odiou. E que ele nunca me chamava de Day.

Ray tinha a mania – uma delas – de achar que todo mundo estava errado. Isso é uma das coisas mais chatas nele, admito. Ele consegue ser um porre quando você já está super puto da vida. Tirando isso, tem a incrível habilidade de ficar calado e às vezes não encher o saco. Então, eu tomo isso como “minha vez!” e inicio a fazer as coisas que tanto finge odiar. Não limpar a pia depois de lavar a louça (ok, isso é bem nojento, eu sei), fazer biscoitos quando não é sábado, não abrir as janelas para “arejar o ambiente, deixá-lo agradável, blá blá blá”, a famosa toalha molhada em cima da cama – e olhe que nós não dividimos a cama -, escova de dentes sem tampinha em cima da pia do banheiro; essas coisas básicas do dia a dia.

Mas se não fosse por ele, eu nunca teria aprendido os piores cálculos da Química. Também estaria com uns lindos fungos no meu colchão.

Ele estava suspirando pesadamente enquanto eu viajava rapidamente, mas voltei para conseguir vê-lo se inclinar para sair da cadeira. Quando percebeu que eu o observava de novo, ele agiu como se não estivesse querendo sair dali. Voltou a sentar e desviou o olhar. Certo, era agora que eu precisava falar. Eu não queria fazer tantas perguntas, afinal. E se ele não quisesse me responder e fugisse – como eu acho que ele tinha acabado de tentar fazer?

Eu não tinha nada a perder. Quero dizer, só a amizade dele.

Poxa, SÓ a amizade dele? Esse cara...

— Eu não conseguiria viver sozinho aqui.

Opa. Eu acho que isso não era para ter saído em voz alta.

— Acho que você está pensando alto demais, Reece. E você não viveria sozinho. Mesmo que eu ficasse extremamente chateado com você, não teria para onde eu ir, já que todos os quartos estão ocupados. A não ser que eu saísse da faculdade.

— Vo-você...! Você não ousaria. – é... Acho que eu tô precisando me controlar. Raleigh me olhava, mas não era com a habitual expressão de desprezo, e sim de espanto. Mas eu ainda não conseguia desvendar nada. E ele acabou de me dirigir a palavra depois de dias!

Acho que essa será uma noite e tanto.

— Além disso, você não está extremamente chateado comigo? Isso me alivia muito, amigo. – eu estava fitando os olhos extremamente escuros e uma faísca minúscula de alguma coisa que eu não identifiquei foi vista. Não sou perito em ler os olhos das pessoas. Se bem que, agora, isso não seria tão efetivo, já que estava meio escuro para que eu pudesse ler alguma coisa.

Droga, o silêncio que se seguiu depois do que eu disse foi... Angustiante. E eu queria gritar por não saber o porquê. De repente, aquela situação não estava mais tão engraçada quanto mais cedo. Eu sentia um peso estranho nas pálpebras, nas costas e, incrivelmente, no coração. Pode ser que tenha a ver com a minha alimentação inapropriada aos veres do Sr. Ellsmore...

— Reece?

Aye, ele estava me chamando! Isso devia ter sido filmado. Raleigh Ellsmore está me chamando – pelo sobrenome, e ele só costuma fazer isso em caso de certa urgência.

— REECE! Você está falando em voz alta. Não que eu não saiba disso tudo.

— Ah, droga. – bom, acho que é agora. Mas por que eu estou tão nervoso? É só uma pergunta. Uma perguntinha de nada. Uma perg – Rayporqueagentenãotrocadelugarevocêmedizascoisasemvozalta?

Teve tom interrogativo, foi uma pergunta. Uma que eu tenho quase certeza de que ele não entendeu, porque estava com a cara toda estranha e a testa cheia de rugas, e a vontade de rir era iminente. Eu corei de vergonha. Eu senti as minhas bochechas muito quentes e não conseguia parar de sorrir; acho que é assim que acontece.

Respirei forte e o deixei rir. No fundo, eu me sentia só um pouquinho melhor por isso. Ele estava rindo, afinal. Por mais que eu soubesse que iria se controlar e voltar com a sua expressão vazia que me deixava na agonia. Não, eu não estava melhor.

Cara, que coisa deprimente. Eu simplesmente necessito que as pessoas digam as coisas para mim. Eu não tenho o poder de adivinhar.

— Ray – eu tornei a falar. Dessa vez mais alto e menos rápido, e até me surpreendi com o som da minha voz; ela pode ser bem sexy, às vezes – Ray, eu vou te fazer só uma pergunta – eu ia dizer “tá bem?” então ele tiraria uma com a minha cara por isso já ser uma perguntinha, por mais “não-pergunta” que ela possa parecer – Por que você não fala pra mim?

Vi Raleigh quase desmanchar aquela carranca. Vi Raleigh olhar pra mim meio estupefato, como se eu tivesse acabado de descobrir um grande segredo seu, um defeito – quem dera eu tivesse descobrindo algo. Então, como sempre, ele demorou e remediou suas palavras.

O problema é que eu não gosto de palavras remediadas, não gosto de sutileza. Eu não suporto eufemismos. Não chega perto de mim a possibilidade de adocicar declarações, sejam elas ruins ou péssimas e-

— Você tem crises.

— ...Hã?

— Crises. Com o morango industrializado. Não são todas as vezes, mas elas vêm. Principalmente quando você toma praticamente toda a parte rosa quase cítrica do sorvete que se compra todos os meses.

Sua voz era tão clara que parecia doer nos meus ouvidos e, por uns momentos, eu tive dificuldade de prestar atenção naquele garoto. Ele não podia estar falando sério – e eu não podia acreditar que ele sabia disso.

Eu sou alérgico a tudo o que for relacionado à morango industrializado, prazer. E Raleigh descobriu essa maravilha não sei como. Eu ainda estava paralisado quando ele voltou a falar; dessa vez olhando pra mim. E ele parecia não querer parar mais. Senti um borbulhar tão grande que achei que fosse pular e gritar, mas eu não faria com que ele parasse.

Ele estava FALANDO. Falando!

— Eu sei que você ouve as minhas músicas. O que? Sempre lembro qual foi a última que ouvi, e mesmo que você tente, nunca lembra qual era a que tocava, quando você tenta fazer com que eu não descubra.

— Eu nunca quis que você não soubesse. – eu murmurei e ele me olhou, ainda com aqueles olhos meio arregalados. Estava acontecendo uma coisa muito estranha. Eu sentia que ele ainda ia falar muito.

— Você se deita na minha cama. Agora, o porquê, eu não sei. Você se acha bem esperto, não é, Reece? Mas nesse momento sei que você “nunca quis que eu não soubesse”. – ele tinha ficado exasperado de repente, e continuou falando – Lê os meus relatórios. Existem digitais na minha caderneta preta, Reece, e elas nunca foram deixadas por outra pessoa. Os relatórios são feitos no laboratório, onde eu sempre estou com luvas e quem os lê, também. Seus dedos destroem algumas folhas quando você as maneja, e isso nunca acontecia antes. – parou para respirar e fechou os olhos. Ele parecia que choraria a qualquer momento, sei lá. – Quando você deita na minha cama, desarruma as cobertas e não arruma depois. Era pra ficar tão na cara assim? Era alguma coisa que... Você queria que eu soubesse? – Num instante, sua voz se resumiu a um murmúrio tristonho. Eu tinha que dizer o que...? Que só deito na cama dele porque o cheiro é legal?

É, acho que eu devia dizer isso. Mas Ray ainda me parece muito estranho.

— Eu gosto dos seus lençóis porque eles têm cheiro de alguma coisa. Não me pergunte o que é, eu não faço ideia. Mas é muito agradável. Como é a sua cama, não vou perguntar se você sente, porque já deve estar acostumado. Mas eu... Não – eu olhava para Ray esperando que ele voltasse a falar, mas parecia que o fogo tinha virado brasa. Naquele momento eu fiquei tão pra baixo que cogitava a ideia de deitar e dormir; e esperar que na manhã seguinte a energia tivesse voltado, porque era sábado e eu não tinha aonde ir.

— Reece, você é um idiota, mesmo. É muito idiota, e só pode estar de brincadeira! – e a brasa que viraria cinza, voltou a ser fogo novamente.

— Hein? É agora mesmo que eu exijo que você me diga. Por favor, Raleigh. Tudo. – daí eu tive que colocar lenha na fogueira.

Tudo bem, eu paro com as metáforas.

Ray se sentiu desafiado, estreitou os olhos, crispou os lábios. Se levantou. Andou até mim. Isso!

— Mas eu só tenho uma coisa a dizer. O que tem que ser dito, na verdade, vem de você. Por que mexer nas minhas coisas tão descaradamente? Você acha que tudo é uma ilusão. Não pensa em consequências. Eu juro que quebraria a sua cara se não prezasse tanto pela minha mão. Eu- eu chego a te odiar, às vezes. – ele estava muito perto e não fazia ideia de que o cheiro legal era forte de mais pra que ficasse fazendo pouco caso assim.

— Por mexer nas suas coisas?

— Não, Dale. Por fazer de tudo uma piada. Não sei que pensamentos caóticos passam pela sua cabeça, mas pare. Você não sabe o que atinge, com isso.

— E eu não sei mesmo! Eu achei que nada te atingisse. E você tem essa mania de não me dizer exatamente nada! Você sempre tem essa postura tão certinha e polida, que eu achei que pudesse ser eu mesmo. Me desculpe se isso te incomoda, Ray.

E... Isso não estava saindo como planejado. Eu não estava com raiva do Ray, como ele aparentava estar de mim, mas sentia algo desagradável no modo com ele falava disso. Ainda queria respostas; estava no caminho para consegui-las. E, na verdade, eu estava com um pouquinho de raiva dele, sim.

— Ray, se você me disser o que eu preciso saber, eu te digo tudo – o que não é quase nada; mas já que ele insiste tanto...

Ele voltou a ficar perto da parede, e também perto da cadeira onde estava sentado, mas não repetiu a ação.

A distância entre a minha cama e a janela não era tão grande. Dá pra jogar coisas através dela numa boa, se você tiver deitado confortavelmente no colchão. No entanto, naquele momento, parecíamos tão distantes como nunca. Era como se meu “amigo” fosse o horizonte enganoso do deserto e eu o viajante sedento e alucinado. Ele desviou seu olhar escuro, primeiramente, e depois moveu os pés até ficar totalmente de costas para mim. O vácuo parecia a sua melhor opção. Agora eu via a parte de trás da sua roupa, que não era tão diferente da frente, sua nuca e os cabelos recém cortados. Num súbito, senti saudades da rebeldia e o ato de deixá-los crescer durante as férias.

— Ray, eu preciso de respostas.

— E eu também. Mas temo que uma coisa não corresponda à outra.

— Como é que vamos saber disso se você não falar?!

— Mas você tem que dizer primeiro, antes que eu revele a minha parte.

— Então virou um joguinho? – eu adorava jogos, e parecia – eu tinha a levíssima impressão – que aquele canalha estava colocando isso contra mim. Mas eu não podia fazer nada; é mais forte que eu. A carne é fraca. Devo ter sorrido por fora, também.

— Não, Reece. Não virou um joguinho. Você não entende, não é?

— Se eu entendesse, juro que estaria dormindo e te deixando em paz.

Acho que levantei também porque, de repente, meus olhos ficaram da altura dos seus cabelos sem precisar que eu inclinasse o pescoço. Ele suspirou, ainda exasperado, e tudo o que eu queria naquele momento era que ele falasse. Mas sabe quando você pensa numa palavra e repete a fulana em voz alta e ela começa a perder o sentido?

Essa discussão é uma ótima representação deste grande problema. Presumo que eu esteja no meio de um dilema existencial. Perdi o fôlego, mas o meu colega de quarto não olhou para mim.

Entretanto, agora aquilo parecia fazer sentido. Na verdade, eu pensava em conclusões, achava interessante e depois elas pareciam escapar dos meus dedos. Mas eu sabia. Estava nos padrões. Fluente. Claro, límpido. Eu senti uma pequena descarga elétrica nas costas e ouvi sua voz dizendo, baixa e falha:

— Não prestava atenção, Reece. Nunca prestou. Está sempre ocupado fazendo caretas, contornando os problemas com piadas, desligado das minhas advertências. E para piorar, você começou a destruir por pedacinhos um objeto que pertence a mim. Ele trabalha no meu corpo, bombeia meu sangue; mas acelera, se alegra e entristece por você, Dale Reece. E se estressa muito, também. – ele olhava para a parede, rígido, tensionado. Parecia se encolher de algo que eu não via, mas o tom da voz me deixava espaço o suficiente para tirar conclusões.

Senti que me deu espaço para que meu coração disparasse como um cavalo de corrida, que eu engolisse em seco e ameaçasse gaguejar loucamente se alguém me pedisse pra falar.

Ninguém nunca pôde arregalar os olhos mais que eu, ter mais falta de ar que eu, quebrar tanto a cabeça com milhares de pensamentos como eu. Ninguém nunca poderá se desesperar com um discursozinho como eu. Ninguém faltará com o respeito aos céus, a terra, ao mar, a vida, a galáxia e seus planetas e suas luas e seu Sol como eu. Eu não sei se estava falando ou não; tendo a não perceber isso. Ninguém faz isso melhor que eu. E também, não existe babaca mais cego.

Mas foi um grande choque, um baque, daqueles que acertam um nervo e você tem uma vontade ensandecida de rir e chorar ao mesmo tempo. Ai, meu Deus, eu sinto que acabei de destruir o doce de uma criança gentil. Mas não era terrível. Se bem que, aquele nervinho do cotovelo... Eu não sei como descrever; não era exatamente bom, era nauseante, preocupante, desafiador. Mas era quente e parecia seguro, no mesmo momento em que achei que gostaria de ser desafiado. Segurei a cabeça entre as mãos.

Por isso eu não esperava. Eu não faço ideia do que eu esperava, na verdade. Eu só não imaginava que ele... Que... Mas... Poxa. Vida. Doía na cabeça sentir as imagens fazendo sentido, as suas expressões e suas poucas falas, e... Tudo o que eu fiz também.

Caramba, eu deitava em sua cama pra sentir seu cheiro! Isso... Isso nunca foi e nunca será normal entre amigos. E o pior é que eu não sei o que a gente era de verdade; ele nunca me deixou ser amigo dele. E, pra falar a verdade, eu não tenho certeza de que eu queria ser apenas um amigo. Agora, definitivamente, eu não tenho uma partícula de vontade de dizer que-

— P-p-porque eu gosto de sentir seu cheiro e eu tenho fotos, muitas, de quando o seu cabelo estava grande porque eu me imaginava tocando neles, sua letra é deitadinha e toda certinha e suas anotações me ajudam em química e eu gosto de Beatles. Só não sei escolher minha música preferida ainda. E sobre o sorvete-

All you need is love.

— O que?

— Essa sempre é a que mais se repete no histórico de reprodução. Gotcha’. — Ray. Como raios ele consegue conversar com alguém olhando pra parede? E ser sarcástico quando...

...Quando se está chorando?! Nunca tinha visto Ray chorar eu não sei o que fazer eu tô em pânico eu- Eu, que já estava levantado, não fiz muito ao esticar meu braço e prender a mão ao redor do seu. O fiz ficar de frente a mim. Por mais que isso não tenha parecido extremamente impaciente, o que eu queria fazer era sacudi-lo até que ele parasse de derramar lágrimas e que começasse a falar rápido. Não ia adiantar merda nenhuma e só ia piorar as coisas, eu sei, não precisa ficar gritando. Mas que loucura era aquela? Por que ele não estava estressado de novo? Por que seu olhar parecia tão frio e inalcançável?

Acontece muito de eu estar me declarando e nós começarmos a falar de trivialidades como se eu fosse um nada, mas daquela vez me esforcei para que voltássemos a falar... De nós. Eu precisava que Raleigh me ajudasse a ver mais claramente. Eu precisava... Da gente. Nós dois juntos, brigando e dividindo um dos quartos do dormitório da universidade. Eu... Olhei para Raleigh como se conseguisse ver tudo o que ele tinha pra dizer; mas eu não conseguia. Tinha plena certeza de estar desesperado e aflito e irritantemente preocupado, passando as minhas mãos aleatoriamente pela cara dele como se isso fosse fazer o coitado acordar pra vida – o que faria ele me repreender se tivesse em seu estado normal, já que não gosta que as pessoas toquem assim nele. No seu rosto e nos seus ombros. E na sua nuca.

Amaldiçoei pela milionésima vez a falta de luz, pois tudo o que precisava ver quase dolorosamente nesse momento eram os olhos não-pretos de Raleigh me julgando. Antes que eu necessitasse de palavras, pendia de um barranco por olhares. E pior que Raleigh estar de costas para mim, me evitando, era estar de frente e lançar seu olhar mais gélido na minha direção. Eu não tinha ideia do que eu estava fazendo, mas fiz.

— Obrigado. Por tudo. E principalmente pelo sorvete de morango. Eu não saberia me... Por que merda tudo tinha que fazer sentido assim, do nada? Ray, Ray. Raleigh. As coisas passam pela minha cabeça, mas eu não consigo dizer, sabe? Sairia tudo no mais odioso grunhido e você o odiaria, assim como faz a qualquer grunhido; a não ser que tenha vindo de você. Isso! Isso. É uma das provas do quanto... Do quanto... Ray, por favor.

Raleigh Ellsmore levantou a cabeça e foi como se diversas coisinhas tivessem explodido ao redor das nossas cabeças. E a impressionante quantidade de... Explicações que se jogaram para mim naquele olhar foram desconcertantes. As lágrimas ainda eram presentes, caíam, e só agora eu percebi o quanto me dava vontade de abraçá-lo quando ele fazia aquilo. Por que eu não estava fazendo aquilo, mesmo?

Ah. Ah, é. Porque ele odiava. Mas ele não tinha cara de quem odiaria um abraço naquele momento. Mas ele podia odiar, sim. Ele bem faz o tipo desses, ele é desses, que se afastam ainda mais de tudo e de todos quando acontece algo ruim.

A notícia boa era que ele não tinha para onde ir.

Era disso que eu precisava desde quando comecei a investigar – se bem que minha investigação não deu em nada. Então parece que eu devo agradecer à senhora falta de energia, pois sem ela não ficaríamos dentro do quarto fazendo nada e se eu estivesse ocupado com outra coisa, dificilmente me lembraria disso.

O que não era totalmente verdade, pois Ray estava sempre nos meus pensamentos. Começou a ficar insano, eu não me dei conta disso, as pessoas se deram conta disso, e eu não me dei conta disso também.

Eu não prestava atenção em muita coisa. Muita coisa.

Por exemplo, que Raleigh agora me encarava curiosamente, como se eu tivesse estudando um sinal minúsculo na sua bochecha e, oh, ali contivesse todos os segredos do Universo.

— Nós certamente temos muito a conversar. – ele disse, sério, enxugando o rosto, tentando fazer com que eu não ligasse pra isso. Mas não tinha a expressão vazia que dominava o seu rosto no início da noite. – Você me deve respostas, assim como te devo algumas. Eu- ah... Preciso... Preciso pensar.

E eu realmente não sei o que parecia mais estranho: Ray tentando sair de perto de mim depois de dizer coisas que ele nunca falaria nem em sonho, ou eu o segurando firme para que ele não saísse. Mesmo que nós dois tivéssemos falado coisas que não seriam ditas nem em sonho.

Gosto de falar. Gosto de dizer o que eu penso, também. Gosto de comentar sobre coisas idiotas e normais e que não farão diferença alguma, e também posso querer ler em voz alta qualquer texto que esteja lendo. Talvez seja porque eu adore o som – eu já disso isso, não disse? – muito sexy da minha voz. Talvez seja porque isso me evita de fazer outras coisas.

Sejam elas simples, complicadas, coladas e molhadas e assustadas. E mais molhadas porque Ray ainda tinha lágrimas nas bochechas e nos lábios. Eu o beijei. Beijei porque, quem sabe, eu procurasse por uma resposta ainda depois de tudo. Ele tinha fechado os olhos, mas eu não. Olhava pra ele como se não acreditasse. Porque parecia real e ilusório ao mesmo tempo. Porque Ray parecia atingível e insensato, como nunca esteve. Mas eu sentia euforia e vontade de gargalhar, e ele era extremamente confortável. Fosse a blusa comprida que usava, fosse os ombros ligeiramente parecidos com os meus, fosse os benditos cabelos que escorregavam nos meus dedos, fosse o fato de ele me abraçar também, eu não sei.

Nós nunca tínhamos nos abraçado. Aquela fora a primeira vez. E, talvez depois, Ray esperasse que eu excluísse esses acontecidos permanentemente da minha cabeça. Aposta quanto?

Raleigh era uma criatura peculiar. Ele era um conjunto de coisas que se completavam, que eram certas, que eram dele. E outros comportamentos que me assustavam pelo simples fato de achar que ele não se sentia inteiramente bem quando o fazia. Como eu disse, essa é uma estória sobre Raleigh, e ele era uma pessoa peculiar. O mesmo cara do cabelo preto-carvão, dos olhos quase pretos (mas que eram marrons), das poucas palavras e do apavoramento aos próprios deslizes em relação ao objeto que trabalhava em seu corpo e bombeava seu sangue, mas batia por mim, era o mesmo cara que gaguejou e que disse coisas que eu nunca ousaria ouvir dizê-lo, que recebeu meu beijo porque me ama e depois disso me abraçou até que nossas pernas doessem, mas os braços não. E isso era muito importante.

E eu estava me sentindo importante. Além de muito burro por fazê-lo sofrer, e muito idiota por nunca me lembrar da música que ele ouvia quando eu pegava o iPod por ser sem-vergonha.

Raleigh passou algum tempo sem querer me dizer coisa alguma. Mas ele estava sempre perto e as mínimas coisinhas que ele fazia já me mostravam um grande avanço; eu sentia que devíamos trabalhar nisso, essa comunicação. Já disse que necessito que as pessoas digam o que elas pensam, o que elas fizeram e o que elas vão fazer, porque... Porque eu não tenho poder de adivinhação.

Nunca soube que eu podia me sentir desse jeito - cego, como se nunca tivesse visto o céu antes. Também nunca achei que precisasse tanto de alguém quanto preciso de Ray.

Lógico, porque eu também não via a diferença quando tirava ou colocava os óculos, quando era pequeno.

Não ver a diferença entre as coisas se fazia bem distinto de descobrir fatos sobre as pessoas. Apesar de não ter muito talento, eu confiava na minha intuição. Não era suficiente. Mas nunca deixei de ser do tipo que sempre inculcava com pessoas, palavras e ações delas; uma pena que nunca tive o poder ler o olhar. De adivinhar.

— x -

Oi, oi! Descobri umas paradas sobre Ray que não tinha dito aqui. Raleigh Ellsmore escreve! Coisas! Qualquer tipo de coisas – mas ele não é tão bom com as poesias.

Deve ser porque eu não entendo de poesia e, enfim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹ "sequestro" ou "murmúrio" é um joguinho - parece idiota, mas é muito legal - onde duas ou mais pessoas podem jogar. É simples: você fala sem abrir a boca ou bater a língua, formando um som complicado de se entender; você poderá dizer uma frase ou uma palavra e as outras pessoas tem que tentar decifrar.
² "bros before hoes" é a famosa expressão, que significa "amizade antes de romance". no caso, "hoes" quer dizer "p*tas" - i mean, dá pra entender né


Oh, gente, o que vocês acharam? Eu super amei escrever essa estorinha, espero que vocês tenham gostado de tê-la lido, também.
Até mais o/