A Caminho escrita por Sra Scala


Capítulo 3
Capítulo 3




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Saí da caminhonete resoluto. Se ela quisesse chegar a cidade, ela que dirija. Caso o contrário teria que vir até onde eu estava e pedir que voltasse. Eu não iria mais aturar as vontades daquela mimada.

Quando Claire voltou, meses antes, achei que encontraria a Betsy que costumava me tratar com educação... Me tratar como gente... Mas não. O que viera foi uma patricinha cheia de malas... Onde já se viu... Sete malas! Em uma fazenda!

E ainda por cima viera grávida... Eu ouvi quando ela disse aos pais que não sabia quem era o pai. Incrível como alguém tinha coragem de dizer à família que tomara um porre em uma festa de faculdade e não tinha certeza sobre com quem havia transado... Os moradores da cidade tinham um nome para mulheres assim: vadia.

Ainda não conseguia acreditar que ela era desse tipo de pessoa... A Betsy que eu conhecia não era esse tipo de garota... Betsy era uma menina alegre, curiosa com tudo, gulosa, gentil e muito educada com as pessoas. Não dessa educação grã-fina de dizer as palavras certas na hora certa, e sim o tipo de educação que não deixa o dinheiro virar uma barreira entre si e as outras pessoas.

Se bem que a Betsy que eu conhecera foi levada para estudar na capital e desapareceu da fazenda por anos... Até voltar meses atrás... Grávida de sabe-se lá quem.

O restaurante era típico das coisas de beira de estrada: simples, com mesas encostadas na parede e algumas outras espalhadas pela recepção de azulejo claro. Uma bancada enorme e amadeirada atravessava a parede contrária à entrada. Havia salgados, compotas, bolos, pães e mais um monte de coisa exposta para quem quer que precisasse parar ali.

Fui até o balcão e pedi um hambúrguer grande com batatas fritas e refrigerante. Enquanto esperava, fui até o banheiro. Voltei a tempo de pegar o final do episódio de uma série. Meu pedido chegou e comecei a comer despreocupadamente.

Na metade do hambúrguer, meu telefone começou a tocar. A tela piscou “Betsy”. Hesitei por alguns segundos. Rejeitei essa e as quatro outras ligações que ela fez. Ela que viesse.

Voltei a dedicar minha atenção ao prato que estava a minha frente.

Vinte minutos depois, Claire voltou a me ligar. Rejeitei todas as ligações.

Acabada a refeição, comprei um frasco de água e tentei prestar atenção na televisão, mas minha mente acabou divagando em lembranças de infância.

Lembrei-me de quando Betsy e eu começamos a estudar na escola particular do povoado. A mãe de Claire insistira junto ao pai para que ela não esperasse o próximo ano letivo para ir para o colégio da capital.

Claire parecia uma das bonequinhas de porcelana que havia aos montes do quarto dela. Uma em especial conquistou sua atenção e passou a acompanha-la quase diariamente à tudo quanto é lugar em que ela, inclusive à escola. A boneca Betsy parecia ter sido feita sob encomenda para se parecer com ela: cabelos claros enrolados na ponta e olhinhos de vidro verde. “Um dia terei vestidos lindos como ela”, ela dizia. Não se pode negar que isso ela conseguiu.

Brincávamos todos os dias depois que ela era liberada dos estudos pela mãe. Ela nunca fora chagada aos animais, a maioria era muito grande para nós e ela se assustava fácil... A reação dela era sempre assumir uma voz mandona, o que sempre me fazia teimar ainda mais em contrariá-la.

Lembrei-me dos acontecimentos que fizeram o pai dela decidir levar Claire para a cidade. Era uma noite de férias de meio do ano, havia uma tempestade acontecendo e os ventos faziam os galhos das arvores ao redor do casarão tremerem. Não foi preciso nem o primeiro relâmpago para que ela começasse a soltar das suas indiretas cortantes.

Não lembro agora o que me deu, comecei a chama-la de medrosa, disse a ela que ela não teria coragem de ir ao celeiro àquela hora, muito menos ficar lá com a porta fechada, como eu havia feito na tempestade anterior.

Tudo bem que isso era uma mentira, mas ela não sabia disso. E estava tão petulante que eu queria arranjar um jeito de calar a boca dela e fazê-la admitir que precisava de mim.

Claire estava tentando parecer tão corajosa que aceitou sem pensar duas vezes.

Então eu a levei até o celeiro, mesmo estando com medo da tempestade. Fechei a porta enorme com nós dois lá dentro. O vento forte fazia alguns barulhos assustadores contra a parede do enorme deposito de tratores e ferramentas. Os relâmpagos iluminando as partes dentadas daquelas máquinas enormes eram aterrorizantes.

Ela não parou de falar um minuto sequer. Reclamando, me insultando com os todos os nomes que ela escutara nas brigas dos pais ou nas conversas entre o pai e os amigos dele que as vezes passavam algum período por lá.

Depois do que pareceu uma eternidade, disse a Betsy que iria procurar alguns cobertores para nós... E acabei saindo do celeiro por uma janela baixa que não tinha vidraça, na parte afastada de onde ela estava me esperando.

Ela chorou e gritou tanto que fiquei com pena e chamei meu pai para ajudar. Eu disse que havia escutado a voz de Claire lá dentro. Eu estaria mais do que encrencado se dissesse que ela estava lá por minha causa. E o Sr. Mills não iria poupar meus pais. Ele nunca poupava nada quando se tratava de sua princesinha.

Quando meu pai conseguiu abrir a porta do celeiro, Betsy estava sentada, encostada no mesmo lugar em que eu a deixara, abraçando seus joelhos e de cabeça baixa. Dava para ouvir que ela ainda chorava.

O pai dela ficara uma fera quando descobriu o que acontecera com Claire. Foi difícil manter a cabeça erguida e fingir que eu não era o responsável por aquilo. Ainda mais com Betsy olhando diretamente para mim com os olhos assustados e cheios de lágrimas.

Mas quando o Sr. Mills perguntou a ela de onde ela tirara a ideia de se esconder no celeiro, ela disse que queria provar para si mesma que não era uma medrosa. E que sentia muito por ter magoado o pai. Foi a primeira vez que eu via Betsy mentindo para o pai dela.

Na semana seguinte o Sr. Mills levou Betsy para a cidade grande. Ela voltou por alguns anos durante as férias, não ficava mais que um mês e voltava para a capital com os pais. O um mês virou duas semanas, depois apenas uma, até que, por fim, ela não voltou mais.

Então me dei conta do que estava acontecendo com Betsy: Ela estava assustada. Muito assustada. E eu a tinha deixado sozinha. De novo.

No mesmo instante recebi uma mensagem. Era de Betsy.

“Eu preciso de ajuda. A bolsa estourou.”


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