Elementium - Volume 1 - A Ascensão escrita por Sophia Jackson


Capítulo 7
Encontro uma Velha Amiga dos Windchest


Notas iniciais do capítulo

Gente, eu peço desculpas pela demora, mas meu notebook estragou então estou usando um emprestado, por isso posso demorar a postar, mas ai vai mais um capítulo espero que gostem e me desculpem se tiver erros.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606975/chapter/7

Treinamento. Uma palavra interessante, não é? Pode significar muitas coisas. No caso dos meus colegas significa lutar entre si, praticando golpes — muito interessantes na minha opinião — orientados pelo professor de combate, Ricardo Oliveira, o instrutor dos sharks. Segundo a garota ao meu lado, cada elemento tem seu próprio professor.

Muito bem, você deve ter percebido que eu disse no caso dos meus colegas e pode estar se perguntando porque não me inclui. Eu explico. Assim que me aproximei do restante da turma — depois daquela situação desconcertante com Austin, a qual vou comentar mais tarde — o professor Oliveira me pediu para permanecer em canto junto com uma outra garota e começou a dar sua aula para os demais. De acordo com ele, nós não podemos ter aulas normais com os outros alunos porque ainda não temos o nível básico de habilitação.

O que é habilitação? Não sei ao certo, mas me lembro de Max ter mencionado alguma coisa sobre isso enquanto me escoltava pelo prédio do governo. De qualquer forma, significa que não posso fazer as aulas de combate normalmente. Eu até pensei em protestar e dizer que tinham me mandado aqui para fazer alguma coisa além de olhar, mas Niara desaprovou todas essas minhas ideias e me puxou para o canto indicado pelo professor.

Ah! Você deve estar se perguntando quem é Niara. Lembra que ele me mandou esperar com uma garota? Niara Mwangi, do Quênia. Ela é mais alta que eu, é negra e tem olhos amendoados intensos, os cabelos escuros estão perfeitamente arrumados com várias tranças. Posso dizer que é muito simpática e, assim como eu, está entediada.

Nos sentamos no canto observando os outros lutarem e ela logo se entrete com suas trancinhas, organizando-as em um coque muito complicado no topo da cabeça, depois passa a mexer em seu colar cheio de contas coloridas.

Ela me informa que o professor vai nos instruir com atividades diferentes logo depois de terminar com o resto da turma e que está feliz por não ter mais que treinar sozinha. Niara chegou a Wirdgewt duas semanas atrás, depois de provocar uma onda espalhafatosa próxima de onde morava e, desde então, está esperando o diretor regularizar sua situação no colégio.

Tenho vontade de perguntar o que exatamente quer dizer com "regularizar", mas ela está empolgada demais em contar como foi recrutada pelo governador da cidade, que mais tarde descobriu ser o diretor do Eurocado também. Seu semblante se torna um pouco triste quando fala sobre sua família, a mãe e os dois irmãos menores, que precisou deixar para trás, mas logo volta a se animar com os assuntos da próxima aula de biologia. Preciso lembrá-la que ainda não assisti nenhuma e ela fica ainda mais feliz em poder me contar o que aprendeu até agora.

Passamos alguns minutos conversando, ou melhor, ela me contando sobre tudo o que sabe até o momento sobre o mundo elementista. Depois de um longo tempo, o professor Oliveira se aproxima de nós sorrindo.

Primeiro ele nos maltrata com longas sequências de exercícios físicos, segundo ele, para não corrermos o risco de ter uma lesão grave. Depois nos ensina vários movimentos de luta, mas não nos deixa praticar juntas, como fez com o resto da turma, porque, nas palavras dele, não dominamos a prática ainda e podemos machucar uma a outra. Sendo assim, precisamos treinar usando os bonecos ou os sacos de pancada.

Eu fiz karatê quando era mais nova, mas nada do que eu aprendi me preparou para essa aula. Preciso admitir que esperava ter um porte físico melhor, mas meus músculos parecem ter esquecido que alguma vez na vida praticaram esportes. Com apenas dez minutos de treino já estou morrendo de cansaço e agora entendo perfeitamente o que Milena quis dizer com precisar de energia.

O saco de pancadas é extremamente resistente e tenho quase certeza que meus dedos estão machucados a essa altura. Os golpes são pesados e se tornam cada vez mais exaustivos com o passar do tempo. Após minutos de insistência, cedo ao cansaço e me sento no chão para respirar porque tenho certeza que, se não aliviar um pouco a intensidade do exercício, a dor no braço vai se tornar uma lesão em breve. Me encosto em uma parede puxando o ar pesadamente, meus músculos ardem e sinto as roupas grudando na minha pele por causa do suor.

Sedentária.

Não começa!

Niara se junta a mim depois de alguns minutos e me oferece uma garrafa de água. Não faço ideia de onde ela arranjou o objeto, mas não estou em condições de negar. Tomo longos goles do líquido apreciando cada segundo. Se o professor percebe nosso intervalo, não comenta.

Depois de um pequeno momento de descanso, volto a observar o restante da turma e percebo que eles não estão mais apenas lutando. Agora usam seus poderes durante os ataques. Certo, preciso admitir que eu não poderia acompanhá-los, não sem nunca ter dominado a água antes.

É nítido que as atividades não são tão fáceis para eles também, a julgar pela forma como Austin acerta a instrutora dos Fênix duas vezes seguidas, por não conseguir direcionar o ataque corretamente. Acho que não preciso dizer que a professora não ficou feliz com o ocorrido.

— É melhor voltarmos a treinar. — Niara, totalmente recuperada da maratona (fato que, só pra constar, me deixa envergonhada pelos meus músculos ainda debilitados), indica nervosamente a porta de entrada da sala — O diretor está aqui.

Sem nem protestar, contagiada pelo sua repentina preocupação, acompanho-a de volta a zona dos sacos de pancada, já sofrendo pelos meus pobres dedos.

Você se cura.

Isso não me impede de sentir dor.

Para de drama.

Niara está certa sobre o diretor, não preciso de muito tempo para identificá-lo se movimentando vagarosamente por entre os grupos de alunos, suas roupas pretas se destacando nas paredes brancas. Ele se aproxima de nós e conversa rapidamente com o professor Ricardo. Consigo ouvir algo sobre ele querer saber como anda o treinamento dos seus "jovens guerreiros". Acredito que você pode imaginar como a presença dele piorou muito o nervosismo dos alunos.

Em poucos minutos, as lutas que pareciam estar funcionando bem, começam a se tornar desastrosas. Diversos ataques se desviam do curso e atingem alvos aleatórios. Um desses alvos, preciso dizer, acaba sendo meu saco de pancadas. O garoto fênix se desculpa por reduzí-lo à cinzas e eu tenho a decência de me esforçar para fingir que lamento pelo menos um pouco pelo acidente, mas não posso dizer que não adorei a oportunidade de optar por um boneco de treino. Ele é muito mais macio e machuca menos meus punhos, o que me permite mais foco ao tentar reproduzir os golpes ensinados pelo professor.

Quando finalmente estou conseguindo dominar um dos movimentos, satisfeita com meu novo companheiro de luta, as portas duplas da sala são escancaradas, o barulho provocado pelo encontro da madeira com a parede ecoando por todo o cômodo. O silêncio de alastra pelos grupos, todos interrompem suas tarefas e apenas acompanham o garoto com os olhos enquanto ele caminha mancando na direção de Martin.

Está completamente sujo de barro e alguma coisa vermelha que prefiro pensar que se trata de alguma tinta ou corante. Arqueja de forma doentia e parece exausto. Suas costas estão curvadas como se estivesse sentindo dor, mas sua expressão transmite apenas uma coisa: Pânico.

O diretor o encara lívido, obviamente sem saber como reagir a invasão do rapaz. No entanto o homem não espera o recém-chegado fazer todo o trajeto e anda rapidamente até ele. Os dois trocam frases rápidas e baixas, mas devido ao silêncio colossal da sala, consigo entender poucos palavras. O garoto está relatando um evento catastrófico, a julgar pela expressão de assombro que toma as feições de Martin e não sei dizer como exatamente as palavras monstro, explosão e Ethan se encaixam na história, mas tenho certeza que significam algo muito ruim. 

Se a expressão assustada do diretor provoca um nervosismo coletivo entre os alunos, acho que você pode imaginar o que sua saída apressada e desesperada causa na turma. Se não consegue, eu posso dizer, é devastador. Nem mesmo os instrutores sabem como agir, alguns até tentam retomar os treinos, mas a concentração não parece querer se instalar nas mentes de ninguém.

Demora muito tempo até que os professores consigam encontram o rítmo da aula e precisam obrigar os alunos a ouví-los, já que as conversas se tornaram altas demais. Porém, mesmo com os sons de luta voltando a dominar a sala, consigo ouvir as especulações assustadas dos alunos próximos a mim. 

Niara parece tão perturbada quanto o restante das pessoas e me diz (aos cochichos) que nunca viu o diretor tão preocupado. Segundo as informações que os amigos dela passaram, Martin é sempre muito calmo e costuma lidar com as situações, mesmo as mais complicadas, de forma direta e equilibrada. Sendo assim, essa reação desesperada dele só pode significar que algo muito desastroso aconteceu. 

Eu poderia até dizer a você que permaneci resistente e durante os minutos restantes da aula consegui reproduzir alguma coisa direito, parei de sentir meus músculos doendo e me senti mais uma elementista, mas tudo isso seriam mentiras deslavadas. A verdade é que cinco minutos depois do instrutor se afastar e apenas fico cutucando meu boneco, fingindo que estou tentando algum golpe. Não faço mais esforço nenhum para esquecer a exaustão e fico mais aborrecida ainda quando ouço meu estômago pedir por comida.

Você deveria ter se alimentado direito.

Não me diga.

Em resposta a recente onda de raiva (de mim mesma), desfiro um soco no boneco e me arrependo imediatamente. A carne já surrada dos nós dos dedos se rompe em dois deles, a ferida ficando carmím rapidamente. Reviro os olhos com a minha burrice e tento limpar um pouco do sangue. Posso a postar que estou com a expressão emburrada de uma criança, a julgar pela risada de Niara. Ela me tranquiliza dizendo que o processo de cura vai resolver o problema em pouco tempo.

O pouco tempo se resume a uns cinco minutos, logo os machucados estão cobertos por uma pele rosada e flácida, ainda sensível, mas muito melhor do que a ardência irritante de antes.

Quando os professores finalmente decidem nos liberar eu já estou jogada no chão, escorada no meu boneco sem a menor cerimônia. Levanto tão rápido que minha visão se apaga por um tempo, uma nova onda de entusiasmo se espalhando pelo meu corpo, vários pensamentos sobre os incríveis dotes culinários dos cozinheiros invadindo minha mente.  No entanto Marian acaba com as minhas esperanças sem dó nem piedade, informando que ainda não estamos liberados para o almoço e que eu devo tomar um banho antes da próxima aula. Bem, ela está certa, minhas roupas empapadas de suor não deixam dúvidas sobre o assunto.

 Cansada e faminta, me arrasto pelo caminho até o dormitório, acompanhada da shadow e de Niara. A shark se despede quando passamos pela ala B e segue saltitando pelo seu corredor. Como essa criatura não está cansada? 

Marian me acompanha até a ala C e a ideia de perguntar como ela descobriu qual é o meu quarto volta a se manifestar, mas novamente ela não me dá tempo para perguntas e se adianta para uma porta assim que adentramos o corredor um.

Certo, então ela não estava nessa ala por minha causa.

Eu disse que você é paranóica.

Meu quarto está silencioso e bagunçado, exatamente como eu deixei. Será que a tal inteligência artificial também consegue fazer faxinas? Seria uma habilidade bem útil. Quase consigo imaginar os olhos da minha mãe se revirando e a expressão irritada caso eu dissesse a ela que não preciso mais limpar o meu quarto.

Duvido que você vai ter essa sorte.

Eu também, mas a esperança é a última que morre.

Quando deslizo para dentro no uniforme de aula comum, livre do suor e com o cheiro do sabonete invadindo meu nariz, respiro aliviada. O relógio no alto da entrada do corredor dois está marcando nove e cinquenta e cinco. Suponho que não tenho muito mais tempo para perder.

De acordo com o papel que acabei de colar no quadro do avisos do quarto, minha próxima aula é toxicologia, no primeiro andar. Austin me encontra na passarela do prédio e me acompanha sem eu precisar pedir. Me pergunto se ele e seus (talvez meus também) amigos combinaram alguma coisa.

O armário dele fica no terceiro andar, então, enquanto pego meu jaleco e os materiais necessários —um caderno e uma apostila intitulada Venenopédia — ele some escada acima. Não tenho muita opção a não ser esperá-lo, já que não sei onde é a sala direito e também estou sem muito tempo para procurar.

Quando voltamos para o primeiro andar e chegamos ao destino, percebo que a sala na verdade se trata de um laboratório e me lembro de Max ter dito que aulas práticas ocorrem no primeiro andar, agora o a necessidade do jaleco faz todo sentido.

Uma mulher baixinha está na porta do laboratório cumprimentando os alunos. Seus cabelos claros são bem curtos, os olhos azuis e a pele quase tão branca quanto o jaleco que está usando. No bolso consigo ver o desenho de um frasco (provavelmente de veneno) e Profa. Filks. Assim que nos aproximamos da porta ela nos barra.

— Sr. Clark, eu realmente admiro que goste tanto dos Sharks e que os represente em seus jogos, mas a menos que queira que eu confisque seu casaco do time, é bom ter um jaleco escondido em algum lugar. — ela se dirige ao garoto, mas seus olhos estão fixos em mim, não com aquela reação que as pessoas exibem desde que cheguei, é uma expressão estranha como se eu fosse um problema que ela não sabe como resolver.

Desviando dos olhos intensos da mulher, percebo que Austin está envergonhado. Realmente ele está vestindo um casaco semelhante ao que Bryan usava pela manhã, mas este nas cores azul e branco, o que, obviamente, se deve ao fato de representar os sharks.

As bochechas dele estão cada vez mais assumindo um tom rosado e suas mãos apertam firmemente os materiais. Não é preciso ser um gênio para saber que ele não tem nenhum jaleco com ele. 

— Austin! — Marian surge entre o grupo de alunos que se formou na porta, devido ao bloqueio da professora — Você esqueceu seu jaleco comigo. — ela entrega o objeto para ele sorridente.

A história até poderia ser convincente se Austin não perecesse tão surpreso quanto eu. Além de, claro, o sorriso de Marian ser forçado. No entanto a professora encara os dois entediada e abre passagem para seus alunos. Acho que essa situação não é tão inédita assim.

— Bom dia senhorita Mccain. — ela mantém os olhos severos sobre a garota a mesma quando passa pela porta.

— Bom dia professora. — Marian apenas responde e segue seu caminho.

Quando percebo que serei a última a entrar, quase me xingo por ficar enrolando do lado de fora. Seria muito mais fácil se esses olhos azuis estranhos não estivessem me encarando. Sem saber exatamente como agir e sendo apressada pelo som do sinal às minhas costas, desejo um bom dia tão baixo que nem eu escuto direito e atravesso rapidamente a porta, mas percebo que ela não retribui o cumprimento.

Você fala cochichando e quer que os outros escutem.

Não tenho certeza se é por causa disso.

Vai começar com a paranóia de novo?

Quieta!

O laboratório não é muito deferente de qualquer outro usado para experimentos. Há três fileiras com quatro bancadas, dois banquinhos em cada uma. Avalio a distribuição de alunos para ter certeza que posso sentar em qualquer lugar e percebo Austin conversando com um garoto Lutun no canto da sala, Marian solitária mais a frente, mas sei que deve estar esperando por Jack. Ando até o fim do laboratório e me sento hesitante ao lado de Milena.

Ela não protesta nem me cumprimenta, apenas permanece com os braços cruzados firmemente sobre o peito e cara de poucos amigos. Parece brava com alguma coisa e uma parte insegura de mim teme que possa ser por minha causa.

Para com essas loucuras.

Não sei se eu devia ter me sentado aqui.

Ela já estava emburrada quando você entrou na sala, sem chance de ser por sua causa.

Certo.

Para testar se a teoria está certa, cumprimento-a baixinho e ela responde, a expressão irritada permanece, mas consigo ver seu esforço para parecer simpática. Tenho certeza que não deveria incomodá-la, mas o fone de ouvido que ela está usando desperta minha curiosidade.

— Pode usar fone na sala? — pergunto sem me conter.

— Não. — agora ela parece um pouco impaciente.

— Então... — ela suspira como se já soubesse qual é a pergunta, mas não posso evitar — Por que está com fone?

— Porque eu preciso — Milena responde irritada e, antes que eu possa perguntar mais alguma coisa, ela continua — Eu não vou explicar, só ignore ele. Ok?

Derrotada assinto e me volto para o restante da sala, ela está completamente cheia agora. A porta já foi fechada e a professora está mexendo em um armário cheio de frascos, uma expressão confusa no rosto.

Por alguns segundos, consigo esquecer a existência de Milena, mas quando percebo que o fone de ouvido não tem fio aparente e não parece estar de fato reproduzindo alguma música, a curiosidade retorna.

— O que você está escutando?

— Nada. — ela revira os olhos irritada e sinto um pouco de remorso por estar importunando-a, mas eu estou realmente entediada aqui.

— Então porque...

— Thais, eu falei pra você ignorar — ela parece realmente aborrecida com alguma coisa e agora tenho certeza que não se trata apenas da minha chatice — então esqueça o fone e preste atenção na aula. 

— A aula ainda não começou. — resmungo, mas ela escuta mesmo assim.

Ela respira fundo juntando seus materiais e se levanta. Observo-a, completamente culpada, enquanto ela se ajeita em uma bancada ao lado da parede.

— O que você fez? — Austin pergunta ocupando o banquinho vazio.

— Perguntei porque ela estava de fone — ele arqueia uma sobrancelha — insistentemente. — completo e ele solta uma risada divertida.

— Milena costuma ser paciente com pessoas novas — seus olhos observam a garota por alguns segundos — ela deve estar brava com alguma coisa. 

Assinto fazendo uma nota mental para me lembrar de pedir desculpas a shadow mais tarde, ela foi legal comigo desde que cheguei e eu não devia ter ficado atormentando-a.

A sala está mais silenciosa do que antes e isso se deve ao fato que os alunos, assim como eu, estão confusos com a demora para o início da aula. A professora não parece muito contente enquanto organiza alguns frasquinhos sobre sua mesa, ainda lançando olhares confusos para o armário de venenos.

A aula não parece muito longe de começar, agora que a professora Filks está entregando um potinho para cada dupla. Quando ela se aproxima de nós faço de tudo para fingir que estou muito concentrada em minha apostila, mas tenho certeza que não fui convincente pois, quando ela já está se afastando, percebo que o objeto está de ponta cabeça.

Gênio.

Por que ela fica me olhando desse jeito estranho?

Não faço ideia.

Então não me julgue. 

Observo o pequeno frasquinho âmbar que ela deixou sobre nossa bancada. Consigo perceber uma pequena luminosidade ao seu redor e calor parece irradiar dele. Com certeza eu teria pego ele para ter certeza que é quente, mas Austin me distrai com seus movimentos desajeitados. Ele tira o casaco resmungando e dobra cuidadosamente. 

— Que tipo de esporte vocês jogam? — pergunto analisando as letras SH'K bordadas na frente do agasalho. Demoro um segundo para notar o pequeno tubarão atrás da sigla.

— Three Fields. — ele guarda a blusa em um compartimento embaixo da bancada e começa a vasculhar os bolsos da calça em busca de algo.

— Três Campos? — a tradução aparece imediatamente em meus pensamentos.

— É. 

— Ok. — enquanto ele resmunga concentrado em sua busca, tento me lembrar se já ouvi esse nome alguma vez na vida, mas tenho certeza que não existe na Terra — Que tipo de esporte é?

— Hum... É... — tento entender o que está acontecendo, mas seus resmungos não são muito claros — Cadê?

— O que você está procurando? — pergunto impaciente quando ele bate no meu banco pelo terceira vez, mas não obtenho resposta.

— Droga! — ele desiste dos bolsos e passa a mexer no penal —  Tenho certeza que coloquei aqui... Em algum... Lugar.

— Austin. Ei! — tento novamente, sem sucesso — Austin!

Ele finalmente olha (ofendido) para mim ao receber o tapa.

Falta de educação.

Não é como se ele fosse exemplar nisso.

— Qual é o seu problema? — ele esfrega o ombro irritado.

— Qual o meu problema? Você que parece um louco procurando sei lá o que.

— Desculpe, acho que perdi minhas balas de goma. — sua expressão emburrada é tão parecida com a de uma criança mimada que chega a ser cômica  — O que foi?

— Perguntei que tipo de esporte é esse tal de Três Campos. — respondo tentando disfarçar o sorriso.

— Bem, não sei se vale a pena tentar explicar — ele coça o queixo pensando — é melhor ver por si mesma. Vai ter um jogo dos Sharks contra os Shadows na sexta. Praticamente todos vão estar lá. — ele comenta entusiasmado.

— Ok.

— Muito bem, quero que todos coloquem seus jalecos por favor, nada de acidentes em meu laboratório. Vamos lá! Vocês conhecem as normas — a professora ordena e nem penso em protestar. O objeto é perfeitamente do meu tamanho, mas isso nem me surpreende mais — agora, eu sei que tinha falado que iríamos fazer análise do veneno de um Malum Lutani, mas não sei o que aconteceu com a amostra que eu tinha separado. — ela olha aborrecida para o armário cheio de frascos e uma vaga memória envolvendo Lílian me alcança — Então, até que eu consiga outra, vamos trabalhar com os Cálide, portanto, sharks, espero que tenham trazido as luvas.

Eita.

Meus olhos, antes focados no bordado do bolso do jaleco, se voltam imediatamente para a professora. Luvas? Que luvas? Ninguém me disse nada sobre luvas. Ao meu redor vejo os sharks pegando luvas de couro azul, sem dedos.

— Que luvas são essas? — pergunto quase com raiva para Austin que está colocando um par. Por que ele não falou nada sobre elas?

— São parecidas com as luvas de habilitação — ele responde ajustando as mãos no objeto — aquelas nos ajudam a controlar o elemento com mais facilidade e essas aqui foram feitas para bloquear nossos poderes. São bem úteis quando precisamos mexer com elementos contrários — ele me encara e só então parece perceber minha irritação — Ninguém te avisou, não é?

— Não.

— Droga. — seus olhos apresentam uma pitada de culpa e me arrependo de tratá-lo com raiva. Ele não é minha babá ou qualquer outra coisa assim, não tem nenhuma obrigação comigo — Acho que a professora deve ter um par sobrando.

Olho para a mulher parada em sua bancada e encontro seus olhos azuis me encarando, ainda daquele jeito estranho, exatamente como fez quando me viu na porta do laboratório. Quando você pega alguém te olhando, normalmente essa pessoa disfarça, certo? Se você concorda deve conseguir entender como me sinto quando ela não faz nenhuma questão de fingir que não está prestando atenção em mim.

Desconfortável com o comportamento dela, volto meu olhar para Austin, mas ele não está encarando a mulher confuso.

— Professora Filks, a senhora pode vir aqui um minuto? — ele se pronuncia quando percebe que não tenho intenção nenhuma de agir.

Ela caminha lentamente, os olhos fixos em mim o tempo tudo e é como se eu pudesse ouvir cada um dos seus passos. Quando ela para em frente a nossa bancada, finalmente desvio o olhar dos seus sapatos de salto e percebo que ela não está encarando meu rosto, como eu imaginava, mas sim o nome bordado no jaleco. 

O que tem de errado com essa mulher?

Ela parece achar que tem alguma coisa errada com você.

Não está ajudando.

— Algum problema? — ela pergunta inexpressiva, a voz é cortante.

Engulo em seco, as palavras se tornando geleia como se eu nunca tivesse falado na vida. Algo nessa mulher me faz querer sair correndo dessa sala. 

— Thais está sem as luvas de bloqueio. — Austin explica e parece tentar atrair a atenção da professora, mas os olhos intensos continuam sobre mim — A senhora, por acaso, tem algum par sobrando?

— Imaginei que não demoraria para ter problemas com você Windchest. — sua expressão se contorce rapidamente em algo muito próximo de ódio o que, só para constar, me deixa ainda mais confusa. Eu nem conheço essa mulher! — Aqui está. Se certifique que isso não aconteça novamente.

Ela me entrega um par de luvas de couro e volta para sua mesa. Seguro os objetos como se eles fossem quebrar ou me matar caso faça qualquer movimento brusco.

— O que foi isso? — Austin me pergunta baixinho.

— Eu não sei. — respondo colocando as luvas com cuidado e tentando ignorar o olhar inquisidor que ele fixa na minha cabeça.

Certo, vamos aos fatos. A professora de toxicologia me odeia. Eu sei o motivo? Não. Faço questão de descobrir? Não sei, porque tenho quase certeza que vai ser algo relacionado a minha família e eu não estou muito a fim de voltar para esta pauta. Porém, se estou bem lembrada, o diretor me colocou uma restrição durante nossa conversa. Caso você não faça a menor ideia do que eu estou falando, posso lembrá-lo, Martin me disse para ficar longe de uma sala na ala dos professores e agora eu posso apostar que na porta dessa tal sala, está gravado o nome Filks.

Pare de pensar nisso.

Vou tentar.

Com o propósito de deixar de lado os sentimentos ruins que a professora despertou, volto a analisar o frasquinho que me pareceu muito interessante antes. De fato ele é quente e posso jurar que existe fogo armazenado em seu interior.

— Esse veneno foi extraído das garras de um monstro Fênix. Os componentes mortais existentes nesse recipiente, na concentração certa, podem derrotar até mesmo um shark. — professora Filks fala enquanto movimenta os dedos sobre o quadro, este, aparentemente, é digital, considerando a forma como linhas e palavras aparecem onde ela toca — Como vocês bem sabem, quanto mais velho o monstro, mais poderoso seu veneno. A amostra que está sobre suas bancadas pertence a um jovem Malum Cálide, então não é forte o bastante para matar nenhum de vocês, mas não quero ter que correr com ninguém para a enfermaria. Portanto, se comportem. 

Enquanto fala com a voz severa, seus olhos vagam pela sala como se para ter certeza que todos estão escutando, o que eu agradeço imensamente, pois, agora posso olhar para o quadro sem correr o risco de precisar encará-la. As linhas se juntaram e formaram uma tabela, dividida em três colunas.

— O que eu quero de vocês é que examinem o conteúdo e classifiquem cada um dos componentes presentes nesse veneno, todas as informações estão em suas apostilas. — ela aponta para a tabela, indicando as colunas —Vocês devem preencher essa tabela em ordem alfabética. Nome na primeira coluna, composição na segunda e efeito biológico na terceira. O prazo de entrega é o fim da aula, então, mãos a obra.

Assim que ela termina de falar, uma garota levanta a mão e a professora responde sem nem se dar ao trabalho de ouvir a pergunta.

— Sim, senhorita Lykaios, o trabalho é em dupla. — a garota assente e logo em seguida parece se lembrar de mais uma dúvida, novamente a professora responde sem esperar a pergunta — E você também precisa carimbar antes de entregar.

— Por que precisamos carimbar? — cochicho para Austin com medo que a professora possa escutar, não quero dar motivos para ela prestar mais atenção em mim.

— O carimbo funciona como um selo, depois que você usa não pode mais alterar nada do que escreveu. — ele explica folhando a apostila desajeitadamente.

— Que tal você tentar identificar enquanto eu procuro as informações na apostila?

— Pode ser. — ele concorda e até parece aliviado — Me passa o veneno.

Para a minha surpresa, as anotações em sua apostila são muito claras e auto-explicativas facilitando muito a minha vida. Em poucos minutos estamos em um ritmo satisfatório, assim que Austin — concentradíssimo em seu microscópio — escreve o nome de um componente em nossa tabela, eu completo as duas outras colunas. O começo é mais ou menos assim:

Nomes e Porcentagem Mortal

Aprótico 98%

Betrípico 60%

Elícinem 87%

Não sei dizer de onde saíram esses nomes mas desconfio que tenham sido criados por pesquisadores.

Não posso deixar de me sentir orgulhosa quando terminamos com pelo menos dez minutos de sobra. Após revisarmos as informações mais uma vez, concordamos que deve estar bom o bastante para carimbar. O selo é um pequeno quadrado com o brasão do colégio e parece muito com um carimbo normal, mas, assim que entra em contato com a folha, ela se torna rígida e tenho certeza que todas as frases que colocamos não podem mais ser alteradas.

Austin, sem nem ao menos levantar a ideia de eu levar trabalho até a mesa da professora, entrega o papel junto ao frasco de veneno e retorna para nossa bancada. Por estar de costas, tenho certeza que ele não percebe os olhares irritados que a mulher lança em minha direção.

Quando ele volta a sentar em seu lugar, se aborrece ao perceber que as luvas ainda estão em minhas mãos o que, nesse caso, significa que vou precisar devolver para a professora. Austin até se oferece para voltar lá e entregar a ela, mas não quero que a mulher pegue birra dele de alguma forma, se ela me odeia isso é problema meu. No entanto acabo pedindo esse favor a Marian, quando finalmente o sinal ecoa pelos corredores.

Porém todas essas tentativas de me manter afastada da professora Filks são em vão, já que ela deliberadamente me aguarda na porta.

— Então... — ela mais uma vez interrompe a passagem, me impedido de sair da sala — Vocês voltaram. 

Sem ter a mínima ideia do que essa maluca quer dizer com isso, apenas me mantenho calada enquanto ela me encara enraivecida.

— Só vou dizer isso uma vez garota, então escute bem — ela se aproxima, me olhando diretamente nos olhos — vamos ser obrigadas a conviver, mas fora da sala de aula quero que fique longe de mim. Fui clara?

Engulo em seco mais uma vez e um calafrio estranho sobe pela minha espinha. Não gosto de me sentir acuada e definitivamente eu não gosto dela. 

— Eu não te conheço. — me esforço para me manter inexpressiva e tento ser o mais fria possível — Não tenho ideia de quem você é. Podemos resolver isso se você me disser por que me odeia.

— Se você não sabe, não sou eu quem vai explicar. Não morro de amores pelos Windchest e não faço a menor questão de mudar isso. — ela fala baixo, seus olhos tomados por desgosto — Faça sua parte como aluna e não invente gracinhas para cima de mim. Estamos entendidas?

Você estava certa, ela é louca mesmo.

Obrigada.

Por falta de ideia melhor, apenas assinto em concordância e saio da sala sem encará-la novamente. Consigo sentir seu olhar em minhas costas e uma raiva intensa começa a brotar no meu peito.  

Do lado de fora encontro um combo de expressões interrogatórias. Lílian, Marian, Austin, Jack e Max estão plantados quase no pé da porta de onde, sem dúvida nenhuma, tiveram uma visão privilegiada de toda a cena com a professora.

— Não olhem pra mim desse jeito! — exclamo irritada — Eu não faço ideia do que acabou de acontecer. 

— Tudo bem, mas isso não é bom. — Max diz preocupado.

— Você acha que eu não sei disso? — não consigo esconder a frustração que se torna quase palpável em minha voz — Eu estou nesse lugar a um dia. Um! E as pessoas simplesmente decidiram me odiar.

Ai meu Deus! Lá vem o drama de novo.

Quieta você também!

— Só a professora te odeia. — Austin argumenta com um sorriso divertido no rosto.

— A é? Então por que aquele garoto ali está olhado pra mim como se eu fosse uma coisa repugnante? — indico com a cabeça o garoto Fênix que está encostado em um armário vermelho.

Ele tem cabelos ruivos como os meus, olhos dourados, pele bronzeada e está vestido com o uniforme dos fênix que, no geral, só é diferente do meu por causa da cor vermelha. 

— Aquele ali é Michael Ridins — Jack diz encarando o garoto com uma expressão séria — e ele não está olhando pra você. — ele faz um pequeno sinal na direção de Austin quando o encaro confusa. 

— Por que? — indago observando o shark, ele parece repentinamente interessado em seus tênis.

— Por que...

— Nada. — Austin interrompe Max — Só o que você tem que saber é que ele é um idiota. — seus olhos se fixam em mim e encontro algo muito semelhante a raiva neles — Precisamos ir ou vamos nos atrasar para necro.

 

O resto da manhã passa voando ou, talvez, seja apenas a minha recente curiosidade a cerca da conversa em frente ao laboratório de tóxico, ocupando a minha mente e me distraindo.

A última aula do período matutino de quarta-feira é Necrologia, o estudo das possíveis mortes que podemos ter. Depressivo, eu sei, mas, segundo Max, é muito necessário. Porém, levando em conta que ele acha tudo muito necessário, não sei se posso considerar a informação confiável.

O professor Dinks usa seus cinquenta minutos de aula explicando, de forma exageradamente detalhada, os efeitos que um ataque por elemento contrário pode ter. O que é um ataque por elemento contrário? Bem, pelo pouco que eu absorvi do conteúdo, se trata de um evento onde alguém que domina a água, por exemplo, ataca um dominador de fogo. Ou um dominador de fogo ataca um de gelo. Coisas desse tipo.

Essa, pelo que entendi, é uma das formas mais básicas de matar um elementista, já que, se o ataque for muito poderoso, as sequelas podem ser irreversíveis. Nas anotações de Milena — com a qual eu fiz questão de me desculpar — descobri que os sharks são vulneráveis a dois elementos. Gelo e eletricidade, o segundo muitas vezes mais mortal do que o primeiro. 

A shadow me explia que, no meu caso, o gelo é praticamente ineficaz porque carrego a proteção do fogo, mesmo que eu não domine de fato o elemento.

No fim da aula, o professor ainda cita rapidamente — por ser assunto de outro módulo — a morte por retirada de essência. Essa eu não compreendo muito bem, apenas sei que o único que consegue fazer isso sem matar a pessoa, é Karyceres, o espírito da Terra. 

Todo o bombardeio de informações, somado a maratona da aula de combate, deixa um vazio monstruoso no meu estômago e não posso reprimir o suspiro de puro prazer quando adentramos — finalmente — a cantina. Tomada pelo deleite ao encarar todas as opções deliciosas sobre o balcão, esqueço completamente o desânimo por saber que quatro aulas ainda me aguardam no período da tarde.

O cardápio do almoço é composto por pratos para todos os gostos, saladas, carnes assadas, fritas, cosidas e outras muitas opções de dar água na boca. 

Quando estou acomodada em minha cadeira, ataco com vontade os bolinhos de carne e minhas expectativas são infinitamente superadas. A comida é tão gostosa que ouso compará-la com a da minha mãe, mas, se um dia voltar a vê-la, ela não vai ser informada disso.

Sem que eu controle, meus pensamentos passam automaticamente dela para meu pai, o cara que cozinha um feijão magnífico. Mesmo as lembranças sendo felizes, não consigo conter a onda de tristeza que vem como acompanhante. Uma parte de mim quer muito acreditar que eles estão bem com toda essa situação, mas eu os conheço demais para me convencer disso. Eles, com toda a certeza, devem estar sofrendo.

Você não devia pensar nisso.

Sabe que isso é impossível.

Me lembro das palavras da minha mãe, reclamando como a casa ficava enorme quando eu não estava lá. A forma como os dois odiavam ter que passar um mês inteiro encarando meu quarto vazio, enquanto eu estava visitando minha avó ou outros parentes. Eles sempre tentavam evitar me mandar para longe durante as férias, mas seus empregos sempre exigiram muito deles e quase nunca conseguiam me acompanhar nas viagens. Sendo assim, preferiam que eu me divertisse ao invés de ficar em casa sozinha. Por anos imaginei se isso, na verdade, não era uma estratégia para se verem livres de mim.

Você sabe muito bem que isso é idiotice sua.

Sim. Hoje em dia eu sei disso. Obrigada.

Pergunto-me se eles vão esvaziar meu quarto e tentar apagar as provas da minha existência enquanto lidam com a dor, como muitas pessoas fazem, mas tenho certeza que não. Meus pais são mais do tipo que vão manter tudo exatamente do jeito que eu deixei para, de alguma forma, tentar me manter viva.

E ainda tem as vítimas do acidente. As pessoas que morreram deixaram famílias sofrendo. As que ficaram... Bem, não gosto nem de imaginar em que situações elas se encontram. Tudo... Por minha causa.

Você precisa parar de fazer isso!

É a verdade.

Não vou mais discutir. Não vale a pena.

Porque é verdade.

Sabe muito bem que não é isso.

Eu não sei de nada.

As imagens do acidente estão vívidas na minha mente e são extremamente horríveis. Se eu, que vi tão pouco de toda a desgraça, entro em pânico ao lembrar, como devem se sentir os sobreviventes? Aqueles que precisaram lutar por suas vidas dentro do ônibus em chamas? Como eu posso não me sentir culpada por tudo isso?

De repente a comida não parece mais tão apetitosa, toda a minha fome desapareceu e minha garganta parece cheia de poeira. Experimento o suco com o objetivo de diminuir a súbita secura na boca, mas o líquido parece serragem e me provoca ânsia. Em segundos me dou conta de que não irei conseguir comer mais e, com o intuito de fingir que está tudo bem, pela primeira vez desde que sentei na mesa, presto atenção na conversa do grupo. 

— ... eles buscaram Carol Bright no segundo horário — Max está inclinado sobre a mesa enquanto fala baixinho, como se todo o assunto fosse de extremo sigilo — o irmão dela é da equipe do Ethan. Lembram? Nathaniel, aquele com o cabelo branco e...

— Sabemos quem é, Max. — Jack interrompe com uma expressão irritada.

O que eu perdi?

Não faço ideia.

— Certo. — ele parece desconcertado por um momento, mas logo volta a assumir o semblante curioso — Linkberg acha que Ethan fez alguma besteira e que dessa vez vai ser demitido. 

— Linkberg é um idiota. — Lílian retruca aborrecida — Ethan está no hospital, a equipe toda foi muito ferida e pessoas como Noah Linkberg só sabem pensar no que o líder fez de errado. Isso é burrice! Tenho certeza que eles foram atacados.

— O problema é que toda essa coisa assustou Martin — Marian comenta, seus olhos inundados de preocupação — e isso é um péssimo sinal.

Certo, é óbvio que eles estariam falando da inusitada cena da sala de combate. Quem pode culpá-los? Afinal a situação foi pra lá de esquisita e me lembro perfeitamente de ouvir a palavra monstro envolvida no relato do garoto. Se Ethan está no hospital, a probabilidade de Lílian estar certa é muito alta.

— Thais — a shark chama minha atenção e só então percebo que eles estão me encarando — está tudo bem? 

— Hum? — ela levanta uma sobrancelha, preocupada e eu mesma quase tenho vontade de revirar os olhos com a minha lerdeza — Ah... Claro! Estou bem.

— Então por que estava encarando seu garfo como se ele fosse criar vida? — Marian indaga com um pequeno sorriso nervoso.

Eu deveria estar nervosa aqui senhorita! Sou eu quem não sabe lidar com minhas próprias emoções.

— Nada, eu só estava pensando. — respondo abaixando o bendito garfo e fingindo arrumar a comida. Seus olhos continuam em mim, fato que faço questão de ignorar.

— Então... — Austin se pronuncia animado, quebrando o silêncio desconfortável que começou a se instalar na mesa — Está pronto para sexta-feira Gareth? 

Jack, atraído pelo seu sobrenome, encara o garoto com as sobrancelhas erguidas, como se não pudesse acreditar na ousadia do shark.

— Sim. — ele volta a depositar o garfo na bandeja e lança um olhar debochado para o outro — E você já se preparou para me dar os parabéns? 

— Não mesmo! — Austin parece ultrajado — Dessa vez a vitória vai ser dos Sharks.

—Nos seus sonhos, Clarck. — Jack solta uma sonora gargalhada negando repetidas vezes com a cabeça — Só nos seus sonhos.

Os dois prosseguem com as provocações fervorosamente, mas é óbvio que tudo não passa de uma rivalidade saudável. Marian parece entediada ao lado de Jack, como se a situação fosse uma parte repetitiva do seu dia, o que não acho difícil de acreditar.

— Eles são legais — Lílian cochicha próxima a mim — meio irritantes talvez, mas são boas pessoas.

— Eu não duvido disso — tranquilizo-a enquanto observo Austin agitado ao meu lado, ainda retrucando o amigo — Max não joga?

— Não — ela desvia os olhos para o garoto — ele não gosta muito de esportes.

— Ei! Eu gosto sim. — Max protesta ofendido — Só não acho que seria um bom jogador. 

— Tudo bem, Max. Eu acredito em você. — Lílian tranquiliza segurando um sorriso — Ele e Marian costumam apenas assistir o jogos. — ela acrescenta baixinho.

— Você não torce? 

— Ah! Com certeza. — ela ri animada — Mas prefiro estar em campo.

— Então, você é do time?

— Armadora. — responde orgulhosa e não interrompo sua alegria para dizer que não faço ideia do que uma "armadora" faz, apenas sorrio em resposta — A conversa está boa, mas eu esqueci meu material de Cimex no quarto. Vejo vocês mais tarde

— Te acompanho. — Marian se levanta rapidamente lançando olhares irritados para Jack e Austin.

E nesse momento me dou conto que vou ficar sozinha na mesa com os três — Max acaba de se enfiar na discussão — e seus assuntos esportivos o que, para deixar bem claro, não seria um problema se eu entendesse a conversa. Porém na minha atual situação, é um pouco desgastante tentar acompanhar as informações.

— Lílian... — minha voz sai engasgada e a garota me olha assustada. Perfeito! Agora ela deve achar que estou me afogando. — Posso ir com vocês? 

— Só se... — uma expressão séria toma seu rosto, Marian revira os olhos com um sorriso divertido — Você parar de me chamar de Lílian.

— Hum... — olho para Marian em busca de respostas, mas ela apenas faz um sinal de desdém com a mão. O diabos isso significa?

— Eu prefiro Líli. — ela sorri quando deixo escapar um suspiro aliviado — Para de  ser boba, é claro que pode vir.

Devolvo minha bandeja com uma expressão culpada e a moça do outro lado me encara com preocupação. Quase tenho vontade de dizer que a comida deles é maravilhosa e que o problema é totalmente comigo.

Ela não está preocupada com isso, gênio.

Não pedi sua opnião.

E eu não preciso da sua permissão.

Mal-humorada.

Eu estou com fome! Graças a você.

Consciências não sentem fome.

Não sou sua consciência.

— Por que eles tem que ser assim? — a voz de Marian me arranca da discussão interna e percebo que estamos chegando na porta do prédio dormitório. Como viemos até aqui tão rápido?

— Coisa de atleta Mari. — Lílian responde se divertindo com o aborrecimento da shadow.

— Você não é assim! E é atleta. — a garota argumenta emburrada.

— Eu sou uma atleta legal. — Lílian se gaba e gargalha quando recebe um olhar irritado da amiga — Relaxa, você sabe que é por causa da proximidade do jogo. 

— Certo — Marian resmunga enquanto entramos na passarela — Na semana que vem vai ser porque algum dos dois ganhou e na outra...

Ela se interrompe bruscamente quando chegamos à porta — escancarada — de entrada da sala, a cor do rosto sumindo assim como sua voz. Olho por cima do ombro de Lílian e encontro o motivo de toda a tensão. Martin está parado, de costas para nós, conversando com um garoto que, pelo que sei, não deveria estar aqui.

— Mari! — escuto Lílian sussurrar e no segundo seguinte alguém agarra meu pulso.

Somente esse ato já é motivo bastante para gritar, mas minha voz some quando tudo ao meu redor escurece. Solto um grunhido irritado e sinto um tapa atingir meu ombro. Lílian, imagino.

— O que é isso? —sussurro desconfortável.

— Quieta! — o aperto em meu pulso aumenta — Ele é um shadow, não é fácil se esconder dele. — Marian fala nervosa e parece levemente ofegante — Não deveríamos estar aqui, temos aula agora, é contra as regras. 

Assinto a contragosto, mesmo sabendo que ela provavelmente não pode me ver. Lílian — eu acredito — se empertiga ao meu lado e Marian quase rosna para ela.

— Não se mexa! — sua respiração é um pouco rasa e tenho vontade de perguntar se ela está bem — É difícil esconder nós três.

— Desculpe — Lílian responde e acho que está constrangida — Escutem.

Estou pronta para perguntar o que exatamente ela quer que escutemos quando as vozes chegam até meus ouvidos, por cima da respiração barulhenta de Marian.

— Não, isso é impossível! — a voz do diretor treme, ele parece incrédulo — Eles foram extintos anos atrás. Não pode ser.

— Eu tenho certeza do que vi e do que matei, Martin. — Ethan retruca irritado. Ele não deveria estar no hospital? — Era um monstro Miton, não tenho dúvidas. — mesmo não enxergando nenhum dos dois, consigo perceber a exaustão do garoto.

— Vamos supor que você esteja certo o que, em nome de Nicolal, eu espero que não seja o caso. — Martin suspira cansado — você o matou, certo?

— Sim, mas...

— Sem mas, se você o matou então está acabado. — algo na sua voz soa desesperado e sei que nem mesmo ele acredita no que está dizendo.

— Governador, por favor! — Ethan solta uma risada sem humor — Você sabe tanto quanto eu que não acabou. Nós todos sabemos os que os Mitons faziam. — ele parece melancólico, a voz irregular — Você tem que deixar minha equipe voltar lá para conferir se não tem mais algué... quer dizer, mais alguma coisa. 

— De jeito nenhum!

— Mas a base...

— Você está ferido, assim como metade de sua equipe! — Martin o interrompe consternado — Não vou mandá-los lá para morrer. Isso é insano! 

— Insano é o senhor ser leviano com...

— Eu não estou sendo leviano com nada, capitão Johnson — a voz dele reverbera por toda a sala, a irritação quase palpável — Entendo perfeitamente qual é a gravidade do problema.

— Sinto muito, eu não quis...

— Sei o que quis dizer. — a voz autoritária de Martin não combina em nada com o homem que conheci ontem — Não tenho tempo para perder com desacatos a essa altura da situação. Vou planejar uma excursão com os professores e...

— O quê?! — Ethan se engasga incrédulo — Vai mandar alunos inexperientes para lidar com um problema como esse?

Não consigo ver a expressão de Martin, mas posso imaginar suas feições sendo tomadas por fúria. No entanto o que me preocupa mais no momento é a maneira doentia que Marian está respirando, a pressão em meu pulso está muito maior e tenho vontade de dizer a ela que meus dedos também precisam de sangue para viver, porém, o aviso que ela deu me impede.

Ela não está bem.

Eu percebi.

Faça alguma coisa!

Tipo o que?

Não sei. Qualquer coisa.

Grande ajuda você.

— É uma desculpa perfeita para levar meus melhores professores e guerreiros sem levantar suspeitas. A última coisa que queremos agora, é pânico. — quando ele fala, sua voz está mais baixa, mas igualmente cortante — Vou marcar uma reunião hoje com o corpo docente e os representantes para decidirmos o que vamos fazer. Você precisa voltar para o hospital, esse ferimento esta horrível. — Martin volta a se acalmar e consigo visualizar o diretor atensioso novamente — Deixe esse problema comigo. Certo?

— Sim. — Ethan responde cansado — Mas me informe se tiver alguma notícia.

— Claro. — o diretor concorda — Se tivermos alguma notícia, teremos de avisar toda a cidade.

Quando estou pronta para perguntar o que vamos fazer para sair daqui depressa, Marian finalmente parece chegar ao seu limite. Sinto meu pulso ser puxado enquanto ela se inclina para o lado, claramente desequilibrada. Em uma tentativa desesperada de impedir que ela caia, Lílian bate em um dos vasos que enfeitam a porta. Quase consigo ouví-la prendendo a respiração enquanto o objeto rola pelo chão, atraindo a atenção dos dois homens.

— O que foi isso? — Ethan é o primeiro a se pronunciar, assustado.

— Não acredito! — Martin parece furioso e preocupado ao mesmo tempo.

— Rápido Mari, temos que sair daqui! — a voz de Lílian é urgente, mas não entendo o que a shadow pode fazer além de despencar de vez no chão.

Bem, ela me responde um segundo depois. De alguma forma Marian endireita o corpo, como se contagiada pela adrenalina da situação e, sem dizer uma palavra, aperta — socorro — mais meu pulso respirando profundamente. Estou prestes a perguntar se ela está passando mal quando, de repente, o mundo ao meu redor volta a ser colorido.

Embasbacada com a imagem do campus que invade a minha visão, me esqueço completamente que uma de nós não está em perfeitas condições e me sinto culpada quando a garota desmaia, sendo amparada imediatamente por Lílian.

— Droga! — ajudo-a a deitar Marian no gramado e, pela primeira vez, consigo ver a expressão doentia dela.

Seu rosto está assustadoramente pálido, a respiração rasa e acho que não preciso dizer que o fato de ela estar imóvel piora o quadro.

— O que aconteceu com ela? — um garoto shadow se aproxima de nós preocupado.

Ele é alto e, assim como metade dos shadows que conheci, pálido, tem olhos escuros e cabelos pretos, trajado com o uniforme informal.

— Poder demais — Lílian responde chateada.

— Me dá ela aqui. — ele pega Marian no colo e é ainda pior vê-la toda molenga em seus braços — Vou levá-la para a enfermaria. Avisem o Jack.

— Você avisa Thais? — ela pergunta e antes mesmo de eu concordar, já está no encalço do garoto. Ele para de andar e a encara risonho.

— Você tem aula Lílian.

— Você também Blake. — ela retruca irritada.

— Não agora, estou de licença — ele exibe um sorriso debochado — você precisa ir, Max vai ficar perdido sozinho. 

Mesmo estando à alguns metros de distância, consigo perceber as bochechas de Lílian corando. Ela concorda derrotada e observa Blake desaparecer pela lateral do prédio carregando Marian. Assim que eles estão fora de vista, ela me puxa para dentro do colégio. 

Não precisamos realmente nos esforçar para achar Jack, já que ele está no primeiro lugar que Lílian pensa e também o mais óbvio. Seu armário.

— Vocês viram a Mari? Não sei para onde ela foi. — ele questiona assim que nos vê virando o corredor.

— Ela desmaiou e Blake levou ela para a enfermaria porque...

— Ela o que?!

O pobre coitado do garoto joga todos os materiais de volta dentro do armário e sai em disparada pelo corredor.

— Líli, você tem a sutileza de um elefante. — comento sem pensar, mas não me arrependo, apenas gargalho quando ela se volta para mim ultrajada.

— Eu digo isso sempre. — Austin comenta sorrindo, encostado na parede contrária ao armário de Jack — O que aconteceu? Mari está bem?

— Acho que ela vai ficar bem — Lílian responde tristonha — teve que nos esconder nas sombras porque o diretor estava na sala do prédio dormitório. 

— O que ele estava fazendo lá? — certo, a julgar pela expressão de Austin, não é normal Martin frequentar nosso prédio, o que, na verdade, faz muito sentido.

— Conversando com Ethan — responde Lílian com a mesma sutileza de antes.

— Ethan? Ele não devia estar no hospital?

— Sim, mas o assunto era meio urgente.

— Que assunto? — Austin se aproxima impaciente quando ela faz sinal de silêncio.

Lílian olha para os lados, provavelmente verificando se alguém está prestando atenção em nós, depois sussurra tão baixo que só consigo ouvir porque estou plantada ao seu lado.

— Ele encontrou Mitons no Alasca.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Elementium - Volume 1 - A Ascensão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.