O Relicário escrita por TWorld


Capítulo 30
Capítulo 30 - O Acordo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/606957/chapter/30

 

 

A LUA SURGIU por detrás de uma nuvem e iluminou a floresta. Nóctua, que observava a cena de longe, esvaneceu no ar como vapor e desapareceu.

— Nícolas? Como assim? — Helena manteve uma expressão de fúria no rosto, mas por dentro ficou desarmada.

Elisa ignorou Helena e continuou a olhar para o grande lobo acorrentado, a expressão de seu rosto tornando-se menos emocional e mais fria enquanto pensava em como resolver esse problema. Ela ficou tão concentrada em seus pensamentos que não percebeu que começou a sussurrar consigo mesma.

Helena decidiu se aproximar uns passos para ouvir melhor:

—... provavelmente um encanto de primeira classe... feitiço autossuficiente... o sangue está sendo reescrito... eu não tenho muito tempo...

Sem entender o que ouviu, Helena se colocou na defensiva:

— Pare de sussurrar coisas sem sentido e me responde: como isso pode ser o Nícolas?

Elisa responde sem desviar o olhar do lobo:

— Ophidia ficou furiosa quando descobriu que Nícolas tinha te passado informações sobre ela, e como já não estava feliz por eu ter tentado o mesmo mês passado, seu humor já estava péssimo. Há dois dias ela amaldiçoou Nícolas e o transformou num...

Elisa silenciou de repente e engoliu em seco, sem conseguir terminar a frase.

— Monstro! Não é o que ia dizer?

A inglesa não respondeu.

— Bem, tem algo que eu posso tentar. A coisa mais louca... só espero estar certa.. do contrário será suicídio...

Elisa abriu um largo sorriso satisfeito, como se estivesse prestes a dar um mergulho refrescante numa tarde quente. Mas mergulhar não foi o que ela fez: Elisa respirou fundo e correu para o lobo.

— NÃO! — gritou Helena, mas tarde demais.

Uma das garras afiadas do lobo atingiu a garota no ombro, que cambaleou para trás e caiu de costas, longe de outro ataque.

Helena parecia congelada, parada exatamente no mesmo lugar, extremamente confusa com as atitudes e revelações de Elisa. Que Elisa era má e fraca, Helena sabia, mas apesar disso parecia se importar com Nícolas. E como se ferir desse jeito iria ajudar?

Elisa se levantou sozinha, sua camisa branca manchada de vermelho, o sangue escorrendo pelo couro da jaqueta.

— Isso não é nada, já tive ferimentos piores.

Sem hesitar, Elisa novamente correu em direção ao lobo com um sorriso ainda mais largo que o anterior.

“PAREEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE!”.

De repente tudo sumiu ao redor de Elisa: Helena, o lobo e seus uivos ameaçadores, o chão, as árvores, as estrelas, até o calor de seu corpo e o frescor do ar da floresta. Elisa estava em meio a um absoluto vazio. Não havia nada acima ou abaixo, nem direita ou esquerda, era como se estivesse flutuando no espaço, cercada apenas de trevas. Então uma luz verde surgiu, tão longínqua quanto uma estrela, mas logo foi se aproximando e ficando maior. Até que Elisa percebeu que não era uma estrela, mas uma névoa verde que vinha serpeando na escuridão como uma cobra gigantesca, cuja cabeça era tão grande que poderia devorar a garota numa só mordida como se fosse um petisco. Os olhos da serpente brilhavam como duas lâmpadas misteriosas. Quando falou, apesar de soar grave e espectral, Elisa reconheceu uma voz feminina:

— O que está tentando fazer?

— Morrer, não percebeu? Você transformou meu namorado num lobo, de que adianta viver. Agora pare de me impedir de morrer.

Elisa não estava sendo realmente sincera. Ela não queria morrer. A coragem que tentou imprimir na voz era mais falsa que uma moeda de dois reais.

— Você não quer morrer, e ficará bem viva até quando eu precisar que fique.

— É a minha vida. MINHA! E eu posso fazer o que eu quiser. Eu sou uma Heinz!

— HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ! — uma gargalhada cruel reverberou pelo limbo e foi morrendo na distância — Como se isso significasse alguma coisa. O que são os Heinz além de uma dinastia decante. Você é a única que sobrou. Está sozinha Elisa, total e completamente! — caçoou a serpente com maldade — Você precisa de mim. Você não tem vontade própria, SUA VIDA ME PERTENCE!

Elisa estava sentindo seu medo crescer, mas ao mesmo tempo, de algum lugar, veio uma enorme vontade de desafiar a fumaça serpentesca.

— Se você tem tanto poder sobre mim, então me impeça! Pare o meu corpo e me faça andar para longe do lobo. Anda, me obrigue!

Sua voz não saiu tão forte nem tão corajosa como queria, mas a mensagem foi bem entendida. A resposta de Ophidia foi silêncio. A serpente de fumaça verde brilhante ficou imóvel observando a garota.

Em oitocentos anos ninguém conseguira irritá-la tanto quanto agora. Tanto tempo planejando o momento de seu retorno, oito séculos de espera, e essa menina “insignificante” se pôs em seu caminho. Como pode uma pedra desafiar a montanha ou uma gota desafiar o oceano? Mas Elisa Heinz estava ali, cheia de empáfia na voz, apesar do medo dentro do peito.

— Você não tem forças pra manter minha mente presa eternamente no limbo. Mais cedo ou mais tarde acabará me soltando. O tempo no limbo não existe. Meu corpo continua lá, exatamente no mesmo lugar, na mesma fração de segundo, prestes a ser fatiado pelas garras do lobo. Anda, decida: desista de me controlar ou pare o meu corpo!

Silêncio.

— Mesmo que a Helena acredite o contrário, ela não sabe o que eu já fiz por ela. Tive que partir seu coração para que ficasse viva. Eu percebi sua manobra com relação ao Nícolas. O sonho que deu a ele e a maldição que jogou na Helena. Você os usou para conseguir uma parte da minha mente e eu fui obrigada a aceitar. Era isso ou você deixaria Helena morrer de frio.. Mas essa força que conquistou ainda é pequena para combater a vontade de uma HEINZ!

Elisa gritou com força a última palavra querendo demonstrar mais coragem do que realmente sentia.

— Nós podemos continuar nesse impasse pra sempre ou... pode aceitar um acordo.

— EU NÃO PRECISO DE UM ACORDO! — trovejou Ophidia cheia de raiva — EU POSSO MATAR VOCÊ E A AQUELA GAROTA HELENA INÚTIL AGORA MESMO SE EU QUISER.

— Mas se fizer isso você perde. Perderá dezesseis anos de esforço gastos em me enfraquecer e todas as artimanhas que usou nessa cidade. Você está impaciente, eu posso sentir. Você não quer mais esperar. Aceite meu acordo!

— EU NÃO PRECISO DE UM...

— Eu ofereço meu corpo! — disse Elisa depressa com bastante firmeza.

Silêncio. Dessa vez Ophidia silenciou por um longo, longo tempo. A maga das trevas provavelmente tentava entender as palavras da garota.

— Explique — sibilou a serpente.

— É bastante simples: eu quero o Nícolas de volta e você quer me controlar. Muito bem, eu, Elisa Heinz, de vontade própria, ofereço minhas noites para você em troca dos dias do Nícolas. Assim, enquanto houver sol Nícolas e eu seremos nós mesmos, mas durante a noite ele voltaria a ser um grande lobo e você poderia controlar meu corpo a vontade. É um acordo irrecusável. Você sabe bem o poder que existe na vontade de um mago.

— E amenizar o castigo que eu dei a aquele traidor? Nunca! — esbravejou a serpente.

— Eu ainda tenho duas condições.

— CONDIÇÕES? VOCÊ ACHA QUE ESTÁ EM POSIÇÃO PARA DITAR CONDIÇÕES?

— Pode ir se acalmando, oh, Senhora dos Rastejantes. São condições perfeitamente aceitáveis. Primeiro, Nícolas vai manter a consciência quando se transformar, assim não se tornará uma fera movida apenas pelo instinto. E segundo...

— HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ, HÁ!

Ophidia não parava de gargalhar malignamente. Elisa quase nem escutava a si mesma, mas continuou com obstinação.

— E SEGUNDO, hem-hem, bem, é algo muito importante. Quero ter uma mente separada da sua. O que eu faço durante o dia é só da minha conta, assim como eu não me importo com o que você faz a noite. Então, aceita ou não?

Ophidia ponderou sobre a proposta. A primeira vista parecia vantajoso demais para Elisa e Nícolas. Por outro lado, ela poderia finalmente ser livre de novo. Ao parar para pensar nisso, ela teve um pensamento incrível: Ophidia Heid poderia mais uma vez andar pela Terra.

Elisa sabia que o que oferecia era muito grande, algo valiosíssimo para Ophidia. Ao mesmo tempo, ela poderia estar cometendo um grande erro ao permitir que a maga das trevas pudesse ser livre de novo, mesmo que parcialmente.

— Eu quero deixar uma coisa bem clara, Ophidia, você terá que cumprir sua parte do acordo ou nada feito. Você não tem poder o bastante para sobrepor minha vontade, e se tentar trapacear, você voltará a ficar presa no Relicário. OUVIU?

A serpente começou a se mover de um lado para outro, como uma dança hipnótica. Sua figura se agigantava enquanto se aproximava mais e mais.

— Eu aceito!

Então avançou para Elisa com a boca aberta, os olhos verde-malignos brilhando e abocanhou a garota numa só mordida.

Elisa piscou os olhos: em um momento ela tinha sido devorada pela serpente de fumaça e luz, e no outro ela acordou de volta na floresta. O lobo ainda estava a sua frente, mas por um breve instante ela percebeu um brilho verde nos olhos dele. Elisa sorriu satisfeita e caiu de costas, desmaiada.

Para Elisa a batalha mental com Ophidia lhe parecera muito longa, como se tivesse durado horas. Mas do ponto de vista de Helena, Elisa correu para o lobo e de repente parou e caiu. Helena não sabia o que fazer: seus sentimentos confusos não ajudavam a se decidir sobre ajudar ou não a Elisa. Então sua atenção foi desviada da garota quando o lobo soltou em longo e doloroso uivo, e bem na sua frente ele fez sua transformação reversa. Os pelos ralearam, as garras diminuíram, o rosto encurtou e a cauda diminuiu até sumir. Os últimos pelos marrons transformaram-se em roupas e enfim Nícolas surgiu de quatro no chão.

— O que... aconteceu... ?

Nícolas ergueu a cabeça, mas sua visão estava borrada. Confuso, sem saber onde estava, ele começou a avaliar o mundo ao redor. O chão era uma terra fria... não havia luz forte por perto...

“Ah, estou na floresta”, pensou ele. “Mas como cheguei aqui?”.

Helena correu para o garoto, preocupada com os ferimentos que ela mesma causara. Havia arranhões no rosto e nos braços do garoto, as correntes haviam deixado marcas vermelhas. Ela o ajudou a se levantar servindo de apoio a ele.

— Cuidado Nícolas, com cuidado.

— O que aconteceu Helena? Porque estou aqui? E, aliás, porque você está aqui também?

— É... ?

Helena não sabia o que dizer, mas não teve tempo para pensar em algo.

Tão logo Nícolas viu Elisa desmaiada e sangrando, ele soltou Helena e se aproximou da inglesa. Ele acariciou delicadamente o rosto adormecido dela enquanto pronunciava seu nome baixinho. Nícolas não sabia o que tinha acontecido, mas seus maiores medos falaram mais alto antes que pudesse pensar direito no que dissera.

— Desta vez você foi longe demais, Helena.

A garota se sentiu traída ao ouvir isso. Ela que estava tentando salvar Nícolas, era acusada de ter machucado Elisa. Devia ser por isso que a inglesa tinha se deixado machucar, para se fazer de vítima perante o rapaz.

Helena pensou em se defender. Ela queria dizer tudo o que estava sentindo, tudo o que sabia sobre a maldade de Ophidia e Elisa, e também sobre os obeliscos de magia negra espalhados pela região. Helena não entendia como podia se sentir uma heroína quando Nóctua falava dos seus deveres, mas sentia-se uma vilã quando Nícolas a olhava com tanta mágoa e tristeza. Desnorteada e magoada, ela preferiu ir embora.

Helena bateu o pé no chão e saltou para um galho no alto de uma árvore, depois deu outro salto para trás e sumiu por entre as árvores.

Nícolas ergueu Elisa nos braços e aproveitou a claridade da lua para encontrar o caminho de volta a cidade.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentem, pliss *-*



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Relicário" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.