Contador de Histórias escrita por Darth


Capítulo 4
Vingança Vermelha




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Galeth chegou a Haydeck depois de pernoitar na Estalagem Tarrasque Manco. A cidade portuária fervilhava com o comércio o dia inteiro, diminuindo o ritmo apenas ao anoitecer. Durante o dia, o bardo aproveitou para gastar um pouco de suas moedas ganhas nas apresentações ao longo das viagens. Comprou um novo encordoamento para seu alaúde, mandou reparar sua capa de viagem e comprou novos suprimentos de viagem.

Ao cair da noite, não foi para a maior estalagem da cidade. Nessa noite não combinaria com a história que pretendia contar. Ao invés disso, foi a uma taverna menor, daquelas que se ia para embebedar-se e não para pernoitar. Era chamada Estalagem Javali Empalado, sua fronte era velha e mal cuidada com um javali empalado pintado numa placa que balançava sofregamente sobre a porta. “Esta será perfeita. Pessoas dispostas a frequentar aqui terão mais estômago para minha história”, pensou o bardo cantante.

Tocou músicas conhecidas de histórias trágicas: histórias de traição, perda e vingança. Parte da magia de uma história estava em preparar seu público para recebê-la, e Galeth sabia como fazê-lo de forma magistral. Quando terminou, foi recebido com aplausos e moedas. Mas percebeu que sua plateia tinha se compadecido do sofrimento dos personagens de suas canções e ficara feliz quando eles conseguiram sua vingança. Era hora:

– Estava divertido, mas chegada é a hora de minha história. Uma história triste, sobre perda. Mas também uma história fascinante, sobre poder e vingança. Contarei a história de Barric, o conhecido arqueiro aventureiro, e de Liana, a mãe indomável. – Um murmúrio se espalhou pelo recinto. – Sim, esta é a famosa história do Suspiro de Sangue. O arco que não precisa de flechas. O maldito arco do brilho escarlate. Também chamado Sopro Mortal, Vingança Vermelha e Arco de Osso.

“Esta história se dá há vários anos, antes mesmo das Guerras Justas entre Kelvor Flagetonte e Hyan Iustalux dezessete anos atrás. Ela começa com a busca de Barric, o arqueiro. Barric era um homem de porte atlético na casa dos trinta anos, que começava a ter seus primeiros sinais de barba e cabelos grisalhos. Já era também um aventureiro bem sucedido, que gozava de fama e uma pequena fortuna. Mas ainda não estava satisfeito.

Barric queria algo mais para sua fama. Não bastava ser conhecido por ter salvado algumas cidades uma dezena de vezes. Não, o que o arqueiro queria era ser elevado ao patamar de uma lenda. Queria andar em uma cidade e ver seus habitantes se empurrando para ter um pequeno vislumbre de si. Barric era um homem muito orgulhoso. E o seu orgulho, foi sua ruína.

Sua queda à infâmia teve início quando entrou em contato com a secreta Sociedade das Sombras, cujos rumores diziam ser uma sociedade de magos das artes das trevas, depravados e insanos. Um desses magos havia ouvido falar da busca de Barric de alguma forma de se tornar mais poderoso, mais notório. Este mago encontrou-o e fez uma oferta:

– Não há como ficar mais poderoso do que você já é, arqueiro.

– Entrou em contato comigo para isso?

– Não, pois eu tenho a solução para sua angústia. O que você necessita não é de treino ou de inimigos mais fortes, mas sim de um artefato. Uma relíquia mágica tão poderosa que cada uma é única e torna seu usuário uma lenda apenas por utilizá-la.

– Eu não quero me tornar uma lenda por trás de um artefato, seja ele poderoso ou não.

– Acalme-se. Não tenho a presunção de querer que você abrace uma lenda já existente em um artefato. O que eu posso lhe dar, é a chance de criar um artefato.

E assim Barric foi pego nas teias da Sociedade. Durante os meses que se sucederam, o arqueiro foi deixando de frequentar e animar as tavernas como costumava fazer. Abandonou também os trajes branco, marrom e verde que eram eficientes na discrição em meio às matas. Passou a trajar negro e andar sempre encapuzado e evitando falar com as pessoas. Isso não passou despercebido.

E quem mais percebeu essa mudança foi uma jovem, na flor de seus vinte e três anos. Seu nome era Thalessa e era filha de Liana, uma tecedeira local da cidade de Kreinhad. A cidade ficava sudoeste de Clarke e ao norte de Portsmouth, e era um local pacato e tranquilo. A jovem Thalessa começou a se aproximar de Barric, tentando ajuda-lo. O arqueiro aceitou a ajuda, alegrando a garota.

A Sociedade logo ficou sabendo e julgou que era chegada a hora de o arqueiro forjar seu artefato. Era correto que seu artefato fosse um arco e também foi decidido que para que fosse poderoso, ele não poderia depender de flechas. Ele havia de utilizar a força vital do arqueiro como fonte de poder, para dessa forma descarregar o máximo de poder sobre os inimigos de Barric. Mas para forjar algo assim, era necessário mais do que umas gotas de sangue...

Era preciso um sacrifício. E Thalessa foi escolhida pela sociedade para tal. Barric ficou incomodado com a ideia no início, mas após todos aqueles meses aprendendo artes sombrias para a forja de seu arco já estava corrompido. Foi apenas necessário que os magos o lembrassem do quão perto estava de se tornar uma lenda para que o antigo aventureiro concordasse com a vil trama.

A noite escolhida não tinha o brilho do luar. E chovia. Thalessa estava amarrada, presa ao chão no centro de um círculo cheio de inscrições arcanas feitas com o sangue da garota. Ao seu redor, sete magos estavam distribuídos ao redor do círculo. Barric estava em pé frente a garota, que chorava:

– Por quê? Você era um herói, Barric! Todos te admiravam!

– Porque eu não quero ser apenas um herói, Thalessa. Eu quero ser uma lenda! E se é necessário um sacrifício para que eu possa me tornar uma lenda e proteger muito mais pessoas, assim o farei.

– Você nunca mais será um herói, Barric! Se você continuar com essa loucura, se tornará tão negro e podre quanto esses magos que o ajudam.

– CALADA! – gritou um dos magos, amordaçando-a magicamente com um abanar de mãos.

E assim teve início o ritual de sacrifício. Os magos da Sociedade começaram a entoar seus cânticos profanos:

– doolb reffo in siuqra! Niks enob elcsum! EKAT REH EFIL!

Enquanto os depravados continuavam o ritual, uma mulher corria desesperada em direção a uma clareira nas matas ao redor de Kreinhad. Essa mulher tinha ouvido por meio de um lenhador da cidade que sua filha havia sido levada para lá por homens de mantos negros encapuzados. Era Liana, que corria desesperadamente ao resgate de sua pobre filha. Corria sem parar por nada. Tropeçava, seu vestido esvoaçante prendia-se, mas nada a impediria de proteger o que havia de mais importante para ela no mundo.

Até que chegou à clareira. Encontrou sua filha caída no chão no centro do círculo:

–NÃÃÃÃO!

Com um grito agoniado, correu para o centro do círculo empurrando quem entrou em seu caminho.

–Não! Ela vai atrapalhar o ritual!

Mas era tarde. Um clarão vermelho seguido de um barulho ensurdecedor. O círculo desaparecera, deixando apenas um rastro negro fumegando onde estiveram as linhas de sangue. Caído no centro estava o corpo inerte de Liana e, ao seu lado, jazia um arco. A mera visão de tal artefato traria terror e repulsa no coração de um homem normal, um arco feito com os ossos de Thalessa, coberto por sua pele e encordoado por seus cabelos. Ao longo do cabo, runas profanas brilhavam em vermelho pulsando como sangue. Barric estava estupefato:

– Ele é lindo. Posso sentir seu poder à distância.

–Que ótimo, arqueiro traidor. Pois agora poderá sentir também seu poder na pele. – A voz cavernosa de mulher enregelou o sangue do arqueiro e dos magos. O corpo de Liara começou a se mover, erguendo-se no ar com o arco na mão direita. Quando abriu os olhos, eram dois globos pulsando com o mesmo vermelho sangue das runas. – Vocês pagarão pelo que fizeram a mim e a minha filha! Sofrerão pela arma que decidiram criar!

Os magos prepararam-se para conjurar feitiços. Antes que pudessem dizer a primeira palavra, porém, dois deles gritaram de dor e caíram mortos. Suas cabeças e peitos haviam sido trespassados por aberrantes flechas feitas de ossos. Liana teve um espasmo de dor, agarrou a perna por um momento e voltou-se para mais dois magos. Outros dois disparos absurdamente rápidos e letais. Outro espasmo de dor, dessa vez vindo da outra perna. “Ela está perdendo ossos para disparar essas flechas. Tenho que sair daqui antes que ela se volte contra mim” pensou Barric, aterrorizado.

A mãe vingativa notou o arqueiro correndo, mas sabia que o alcançaria. Primeiro iria lidar com os magos corruptores. Contra os três que restaram, notou que haviam conjurado uma bola de fogo cada um. Três bolas de fogo voaram em sua direção apenas para errarem o alvo graças a velocidade que o arco escarlate lhe conferira com o voo. Apontou o arco para um dos magos mortos no chão, seus ossos saíram de seu corpo para juntarem-se ao corpo quebrado de Liana. Suas pernas pararam de doer. “Faltam três. E depois é a vez do arqueiro.” Pensou a irada mulher.

Moveu-se rápida e graciosamente pelo chão gramado. Flutuava a meio metro do chão. Puxou a corda do arco mais uma vez, três flechas vermelhas com aparência viscosa surgiram na corda. Sangue. Três silvos no ar que soaram como um e os magos estavam mortos, com suas gargantas atravessadas.
O homem arfava enquanto corria rumo a cabana onde vivera enquanto estivera em Kreinhad. Ele chorava de desespero, medo, tristeza pelo que fizera e presenciara, arrependimento, ódio por ter perdido o arco para uma aldeã. Entrou rapidamente na cabana, pegou seu arco longo e uma aljava. Quando saiu para voltar à clareira, deparou-se com a arqueira vermelha flutuando a dez metros de distância. “Como ela pode ser tão rápida? Isso tudo é poder do arco? Com algo assim eu serei invencível!”

– Você destruiu tudo o que eu mais amava nesse mundo! Por essa razão, eu nunca permitirei que você toque neste arco! Vou mata-lo completamente! Sua alma será destruída e você jamais poderá retornar!

Tais palavras amedrontaram Barric temporariamente, mas ainda assim ele retesou a flecha. “Vou mata-la e pegar o arco. E será o fim desse pesadelo.” Quando soltou, viu Liana retesar uma flecha brilhante e gigante, do tamanho de uma flecha de balestra. Ela brilhava fortemente em escarlate, assim como os olhos da mulher. Barric viu sua flecha acertar a cabeça dela e viu ela voltar seus olhos para ele antes de soltar a flecha com um grito angustiado.

A flecha atingiu o peito do homem, explodindo em energia. Barric gritou enquanto sentia seu corpo desintegrar-se junto com sua alma. O arqueiro podia sentir a alma cheia de ódio de Liana dilacerando-o e compreendeu enquanto era destruído: aquela era a flecha mais poderosa do arco. A Flecha da Morte, uma flecha suprema que exigia a vida do atirador como munição.

Depois disso, o arco se perdeu nas florestas de Kreinhad. Como se o destino quisesse deixa-lo longe de quem mais pudesse ser corrompido pelo seu poder. A história do arco passou de boca em boca, e foi-lhe dado o nome de Suspiro de Sangue. Liana recebeu o nome de Dama Escarlate, enquanto Barric foi alcunhado Arqueiro Depravado”.


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