Ordinary Human escrita por Stef


Capítulo 1
Não se lembre


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem da fanfic e se gostarem mesmo, que comentem para dar um incentivo!



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Dois bipes baixos indicam que algo foi deixado na minha cela. Levanto da cama depressa sentindo a visão oscilar do escuro para o claro. Sigo rastejando até o embrulho de papel pardo com uma etiqueta escrita a punho: PROJETO 762. Gostaria que escrevessem meu nome, Ella, ao invés de me tratar como um produto, não custaria muito usar quatro miseráveis letras. Rasgo a embalagem com as unhas e os dentes até perceber que se tratava de roupas. Uma calça de moletom cinza e uma camisa de força branca amarelada. Segundo minhas contas em alguns minutos os guardas estariam aqui para me amarrar e conduzir até o banho semanal, conhecido também como dia da coleta.

Eu e mais outros 48 jovens seriamos limpos, vestidos, e encaminhados ao laboratório, onde nos aplicam injeções com conteúdos estranhos, medem nossos batimentos, colhem nosso sangue, balançam a cabeça decepcionados e nos mandam de volta para as celas. Nos outros seis dias somos mantidos em observação.

As celas são consideravelmente grandes para que se ande em circulo perfeito. Todas as paredes impecavelmente brancas e sem cantos onde se possam acumular sujeira, uma iluminação forte a cegar os olhos e uma sirene sem som gira incansavelmente uma luz vermelha no topo de cada cela. Há uma cama com pernas de aço cravadas em um chão puramente de concreto e piso liso, uma mesinha branca com um único porta-retrato sem foto. Na aérea onde deveria se encontrar o banheiro há um único vaso sanitário longe apenas alguns metros da porta por onde se entra e sai. A porta de uma material prata bem polido e grosso, e sua pequena janela, mais alta que eu nas pontas do pé, é aprova de balas.

Retiro meu conjunto simples de camiseta e calça branca para vestir a roupa da coleta. Meu corpo dói como se alfinetassem cada musculo, às vezes sinto uma vontade quase incontrolável de correr, fazer mais do que andar em círculos. Às vezes tenho vagas lembranças de um lugar que não se resumisse a cela e laboratório. Eu vim para cá tão nova que não lembro bem que idade tenho agora, mas algo em mim diz que eu tenho lembranças esquecidas. Que eu já vi mais do que um extenso corredor e uma sala com utensílios médicos. Se fechar os olhos com força posso ver um mar cinzento ou um céu cor de ferrugem. Nomes, objetos, lugares parecem estar na minha cabeça, mesmo que eu não lembre quando eu os vi ou as toquei.

O assobio fino e estridente do soldado Parker avisa a todos os jovens em suas celas que é chegado a hora da coleta. Corro para o centro da cela e ajoelho de costas para a porta. Esse procedimento deveria ser seguido ou haveria consequências, uma vez um garotinho ruivo que tinha um olho azul e outro verde não se sentou como o ordenado e levou um tiro na nuca pelo soldado Parker. Não sei se é verdade, é o sussurro que se houve quando andamos enfileirados pelo corredor. Ninguém se vê muito mais que dez minutos na semana, acredito que não há muito tempo para dizer seu nome, muito menos fazer amizade, mas costumamos passar alguma informação que descobrirmos uns para os outros. Parker odeia que falemos, por isso sussurramos.

O barulho da porta é um chiado baixo e as botas de Parker rangem no chão, a sombra de mais dois homens cresce ao meu lado. Estremeço esperando pela revolver gelado de Parker encostar à minha nunca, posso sentir o pulsar do meu coração nas minhas pálpebras fechadas e as mãos suarem frio.

-Levanta. –sua voz é rouca e firme, então obedeço.

Outro guarda amarra as mangas da minha blusa de forma que meus braços fiquem cruzados contra o peito. Ele sempre pergunta se esta muito apertado, sempre digo que não, embora meus braços fiquem dormentes.

(...)

Estou sentada na cama com os braços amarrados. Parker e os outros saíram há mais de cinco minutos, estou esperando que a luz vermelha que gira no teto da minha cela soe o sinal de que as portas abrirão e eu poderei sair. Continuo esperando com os olhos fixos na luz vermelha, conto até 100, depois 200 e quando chego a 317 o sinal toca me assustando.

A porta abre e a das outras 48 celas também. O único barulho é das passadas rastejantes. Controlo meus passos de modo que não pareça que quero sair correndo. Encaro os outros no corredor, de como alguns tem peles tão brancas que parecem transparentes, e de como tem olheiras roxas, vermelhas e até meio esverdeadas que lhe cobrem os olhos. Seus cabelos estão bagunçados, mas não escondem um pequeno lugar onde raspam nosso cabelo, um pouco perto da orelha, onde enfiam duas agulhas que não doem tanto como as que colocam no braço. Muitos são magros e de posturas caídas que andam sem vida nenhuma pelo extenso corredor branco. Alguns maiores do que outros, mais velhos do que outros, garotos e garotas. Toda vez que posso vê-los, que posso ouvir seus sussurros, fico mentalmente tentando listar semelhanças entre nós, algo que nos ligue e explique o motivo de estarmos aqui. Nunca cheguei a nenhuma conclusão, além de usarem apenas jovens nos experimentos.

-Por que Demetri não está perto de você? –sussurra uma voz angelical. Olho para trás e vejo uma garota morena e de cabelos crespos esvoaçantes, ela é bem menor do que eu e não têm tantas olheiras como os outros. Mas ela não fala comigo e sim com uma garota loira, alta e com muitas cicatrizes no rosto. – Por que ele esta tão distante?

Volto a olhar para frente ouvindo atentamente a conversa das duas. Eu podia sentir a respiração apreensiva da garota loira, eu podia reconhecer o medo na sua voz.

-Acho que Demetri contou sobre lembrar-se de um homem que costumava chamar de pai, eu achei que ele estava louco, mas ele disse que seu pai também trabalhou aqui e por isso ele estava sendo testado como cobaia. –sua voz falhou na ultima palavra e eu tive que repreender meu corpo que no mesmo instante quis virar e pedir para que a garota contasse mais. Diminui ainda mais a velocidade, de modo que a cada passada eu respirava mais devagar e ouvia melhor. – Ele disse a historia a doutora Dellauer, disse que não podiam mantê-lo ali já que seu pai trabalhava na base, alguns dias depois ele começou a ficar estranho, então eu percebi que os soldados estavam fazendo duas coletas com ele... –ela parou de falar, tão repentinamente que tive que olhar para trás.

A garota loira já não andava junto à menininha de cabelos esvoaçantes, havia caído no chão e tossia sem parar. Alguns soldados afastaram os outros de perto dela e então não pude lutar contra a multidão que me empurrava para o fim do corredor. Eu só queria saber o que havia acontecido com Demetri e agora olhando o sangue escuro que saia da boca de garota, talvez eu nunca descobrisse.

(...)

As paredes de vidro não censuram meu corpo nu para aqueles dois estranhos de jaleco. Um homem que digita freneticamente coisas na tela de uma maquina e uma mulher que conferia impaciente o seu relógio.

“Afaste-se do vidro e aguarde no centro da câmera” diz a voz artificial que parece vir do teto. Obedeço.

Pó químico estoura como bomba dentro da câmera, cobrindo meu corpo e sufocante meu ar. A coceira é primeiro estágio, a vontade de querer rasgar sua pele com as unhas faz seus braços e pernas tremerem. O segundo estágio é uma pele corada e sensível ao toque. O terceiro, e ultimo estágio, é o calor queimando sua pele como labaredas de um incêndio. Caio de joelhos gritando e tremendo. Não posso abrir os olhos, mas sei que as expressões daqueles médicos continuam frias e imparciais. Eu sempre grito, às vezes choro, mas hoje eu pedia ajuda. Meus lábios rachavam e os dentes batiam repetidas vezes uns contra os outros. Só então quando vêm os jatos de agua gelada, que atingem meu corpo como chicotes, é que o pó químico se esvaia e o calor também.

Abraço meus joelhos quando a sala começa a esquentar. Sinto o vapor quente aconchegar minha pele e por fim os ossos, a sensação prazerosa e rápida do calor do sol. Sol... Não sei ao certo se o que eu me lembro dele é real ou apenas minha cabeça me enchendo com ilusões sobre o que tem fora dessa base.

“Descontaminação concluída. Projeto 762 sem danificações.”

Dois soldados entram na sala e me colocam de pé a força. Um deles aplica uma injeção calmante fazendo meus pés cederem e o corpo pesar. Sou arrastada pelos braços até uma maca onde cobrem meu corpo com um tecido tão simples quanto o papel.

Uma enfermeira de grandes olhos azuis e aparentemente nova demais para ter um cargo importante empurra minha maca lentamente por um corredor restrito até a ala de experimentos. Quero dormir e não acordar mais, quero voltar para a cela e observar a luz vermelha, quero lembrar como Demitri lembrou, não quero saber de mares ou céus, quero rostos, nomes, alguma coisa que explique tanto sofrimento em uma prisão.

Uma a uma, as agulhas são perfuradas na minha pele, inclusive no local raspado na cabeça. Nada dói, nem mesmo sinto o toque do medico. Ele anota algumas coisas que vê em uma tela acima da minha cabeça. Coleta meu sangue, faz mais anotações e como esperado, seu olhar não é mais do que decepção. Ele sai da sala e me deixa sozinha condenada ao silencio ensurdecedor.

Estou prestes a fechar os olhos e me render ao sono quando ouço um salto de sapato bater no piso e uma voz feminina chamar meu nome, aquilo me desperta na mesma hora.

-Ella. –repete a doutora Dellauer pela terceira vez. Ela é a única pessoa que me chama pelo nome e é graças a ela que eu não me esqueci disso também. – Pode me dizer como se sente?

-Com sono. –respondo de imediato sentindo as pálpebras fecharem e abrirem lentamente. A doutora sempre visitava os PROJETOS no dia da coleta e fazia perguntas rápidas exigindo respostas diretas.

-Ótimo. –ela anota algumas coisas em sua prancheta. – Com fome?

-Sim

-Dores?

-Muitas

-Desejo?

-Comida.

-Lembranças?

As palavras engasgam na minha garganta no momento em que estou a dizê-las. Ela nunca havia perguntado sobre as minhas lembranças. Nem mesmo citava algo referente ao passado. Sempre o que eu sentia naquele momento.

Ela arqueia a sobrancelha e me incentiva a falar, seus olhos são negros como de um predador, mas sua magreza e tamanho entregam um corpo de boneca. Ela não parece ofensiva, mas eu a imagino anotando todas as lembranças de Demetri, depois repassando aos seus superiores sabendo claramente que poderia haver consequências.

-Alguma lembrança, Ella? –ela diz mais alto e pausadamente- Algo que nunca viu aqui na base?

Eu vejo novamente o mar cinzento, o céu de ferrugem e eu vejo também algo novo, vejo pessoas correndo, pessoas gritando e uma mulher chorando lagrimas de sangue. Ela me sacudia eufórica e gritava insanamente para que eu corresse. Aquela memoria me tortura por alguns segundos como um pesadelo.

-Não. – respondo forçando as palavras criarem som. A imagem da garota loira tossindo sangue invade a minha mente. - Eu não me lembro de nada.


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Notas finais do capítulo

Próximo capitulo vem fresquinho em alguns poucos dias! Enjoy ♥