O Legado de Morfeu escrita por Lorenna Kogawa


Capítulo 1
Perseguição de rotina


Notas iniciais do capítulo

Infelizmente, uma super-abundância de sonhos é paga por um crescente potencial de pesadelos. Sir Peter Ustinov



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No segundo andar de um bar eu esbarrava em mesas e causava euforia entre os clientes, minhas pernas pareciam feitas de chumbo e meu esforço, inútil. De alguma forma, eu havia entrado pela sacada do local e agora descia, desesperada, as escadas, deixando atendentes confusos, pois não me viram subir anteriormente. Pela janela eu via meu perseguidor, a pele branca ganhando destaque em meio às cores da feira. Seu rosto não possuía expressões, aliás, não possuía nada. E mesmo assim eu sabia que estava sendo encarada.

Sai do bar em velocidade impressionante, o cheiro de frutas frescas e os gritos dos vendedores apurando meus sentidos. Minhas roupas estavam encharcadas de tanto suor e minha pele estava cheia de cortes adquiridos na corrida; meu perseguidor mal parecia fazer esforço, sua camisa vermelha estava intacta, as luvas de couro ainda nas mãos e as longas botas, limpas, diferente de meus tênis cheios de lama. O Homem Sem Rosto estava ao meu encalço, mas eu já havia sonhado com aquilo e sabia que o despistaria na próxima curva. Então eu acordaria em seguida, com o coração disparado e as pernas doloridas.

Foi quando dois garotos vestidos de preto cruzaram meu caminho, em seguida, correndo comigo. Será que também fugiam?

– Venha conosco!-disse o de cabelo mais claro. A roupa dele parecia repleta de escamas, a maior parte delas preta, algumas vermelhas, formando um símbolo sobre seu peito e marcando as mangas da camisa.

–Quem são vocês?-perguntei desconfiada, conferindo a distância que estava daquele misterioso rosto sem expressões.

–Apenas venha conosco!-o mais baixo retrucou. Diferente do outro, o símbolo em seu peito era verde e parecia um bumerangue. Cada vez eu entendia menos tudo aquilo.

–Eu fiz uma pergunta!-disse parando abruptamente, uma arma surgindo em minha mão, apontei-a para eles- Agora, me respondam.

–Há! Você viu isso, Martinato? Uma arma! Ela é uma das minhas!- disse o de vermelho como se não estivesse com medo algum de minha ameaça.

–Cala a boca Lyu, o tempo está acabando!-mandou o outro.

–Eu sou o quê...? Uma das suas? Mas o... Que tempo?-minhas mãos suavam segurando o gatilho.

De repente, tudo fica enevoado e começa a girar, e é nessa hora que acordo.

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Minhas pernas estão dormentes, como sempre, e levanto mais tonta do que nunca desta vez. Sonho com o Homem Sem Rosto desde que tinha seis anos, e é sempre a mesma coisa: Tudo começa numa floresta, onde estou brincando com a minha irmã, do nada ela desaparece e ele surge de trás de uma das árvores. O sol reflete o branco de um rosto vazio e então, uma voz me diz para correr. Passamos por diversas paisagens, chego a roubar carros, motos e bicicletas para fugir, mas ele me segue por aonde vou, ás vezes correndo, ás vezes andando, mas sempre atrás de mim, em todos os lugares. Em certos momentos há outros comigo, fugindo também, mas eu sou uma ameaça para eles, ele me quer.

Já pensei várias vezes em parar de correr e deixar que ele me pegue (quem sabe eu descubro o motivo de ser perseguida?), mas uma voz sempre me diz para continuar fugindo, e então eu corro, até meus pulmões quase explodirem e eu finalmente fazer aquela curva. Mas desta vez... Desta vez foi diferente. Aqueles dois garotos nunca haviam aparecido, aquelas vestes negras não me eram familiares, muito menos aqueles rostos. Será que isso significava algo? Sabe, sou do tipo que acredita nessas coisas, em sonhos e seus significados.

Desde pequena, sonho muito, naquela época eu era assombrada por insetos gigantes, aranhas, formigas, escaravelhos e até mesmo joaninhas. Sonhava com a morte, em cair de edifícios e até mesmo em me afogar em fanta laranja. Sim, estranha. Ficava aterrorizada toda vez, no início, como toda criança, eu ia para a cama dos meus pais, mas depois consegui desenvolver um método bem eficaz. Toda vez que tinha pesadelos, eu conseguia ainda estar consciente, lembrava que aquilo estava acontecendo dentro da minha cabeça e que, portanto, poderia controlar o sonho. Vários dos insetos gigantes foram mortos pelos meus heróis de infância, Power Rangers, claro. E toda vez que eu caia de algum lugar, um paraquedas se abria, ou então, eu sabia voar.

– É sério que você consegue se lembrar de tudo isso?–pergunta minha mãe após escutar a longa descrição que fiz sobre o sonho. E continua: -Sempre que eu sonho eu sei o que aconteceu, mas nunca me lembro dos detalhes.

– Sim mãe, você sabe que eu sempre lembro. Mas então, você não acha estranho o meu pesadelo ter mudado de repente? Por 12 anos foi sempre a mesma coisa e agora... homens de preto? E falando coisas tão estranhas?

– Lorenna, minha filha, é tudo coisa da sua cabeça.

– Você sabe que eu acredito seriamente nessas coisas de sonho. Alguma coisa isso deve significar.

– Talvez signifique mesmo. É um pesadelo, não é? Talvez seu medo tenha mudado.-era uma boa teoria, mas eu não poderia simplesmente agarrá-la, afinal, por que aqueles dois garotos de dariam algum medo? Levanto da cadeira, beijo minha mãe e volto para meu quarto. Pego minha mochila e me dirijo até a porta de casa quando escuto meus pais conversando.

–Ela teve aquele pesadelo de novo, mas disse que desta vez haviam pessoas diferentes.

–O que ela quis dizer com diferente?-Ao contrário da minha mãe, que me achava meio desequilibrada por ter sonhos tão criativos e imaginativos, meu pai não se importava, acreditava que era uma fase e normalmente ignorava os comentários preocupados da esposa. Mas desta vez ele tinha um tom de preocupação na voz.

–Disse que haviam dois adolescentes e que as roupas pareciam feitas de escamas de cor escura.–ela ri debochadamente- Aposto que são essas séries que ela anda vendo, estão mexendo com o cérebro dela.

Não fico para escutar o resto, já sei qual será o final, minha mãe sugerindo que eu visite uma terapeuta. Enfim decido visitar um dos cenários de meus sonhos: A feira, no centro de São Paulo. Já fiz isso várias vezes, sempre achando que encontrarei algum dos que fugiam comigo, ou então que olharei para trás e darei de cara com o Homem Sem Rosto. Nestas pequenas viagens levo comigo papel e aquarela, pois gosto da luz, da cor e do movimento. Gosto de registrar as mudanças. Tenho pinturas e mais pinturas da feira, sempre as mesmas barracas, os mesmo vendedores, as mesmas frutas, as mesmas pessoas e os mesmos produtos baratos. Mas não hoje.

Hoje, o preto parece vibrante entre o vermelho dos tomates e o verde dos alfaces.

Hoje, dois homens ilustram minha pintura. Dois nomes distintos e claros em minha mente. Eram eles, os do sonho, Lyu e Martinato.


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