Tudo Que For Leve escrita por bloodyfiction


Capítulo 2
Capítulo 2 - Auto-Reverse




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– Você pode me fazer um favor, Olga? – Levantei os olhos do livro. Minha avó estava sentada no sofá, dois minutos antes ela estava deitada e era para ela continuar deitada e não levantar, ela sabia disso a gente já tinha cansado de repetir pra ela. O médico havia pedido aquilo.
– Vó, meu nome é Olívia, lembra? – Coloquei o livro sobre a mesa e fui tentar deitar o corpo dela no sofá de novo. Passei a mão na cabeça dela. Odiava quando era só eu e ela na casa. No fim das contas não conseguia pensar mais em nada quando ela estava lá.
– Ah tudo bem, Olga. Você pode pegar um copo de água pra mim? – Eu estava fazendo uma lista de nomes que ela estava me chamando, Olga, Otávia, Olava... Me levantei, coloquei as mãos na cintura e olhei bem nos olhos dela.
Se tinha uma característica genética que ela havia passado para mim eram os olhos escuros como a noite. Olhar para ela era ver um reflexo de mim mesma, um sentimento estranho tomou meu corpo, mas eu não soube dizer o que era, apenas me deixei levar pelo arrepio que desceu meu corpo inteiro.
Passei a mão no cabelo, tentando afastar aquilo tudo e olhei para minha velha com pena, mas ao mesmo tempo um olhar levemente duro, como se eu tivesse dando bronca nela.
– Vou, mas só se você não sentar nem se levantar. – Ela acenou positivamente com a cabeça, mas eu sabia que ela ia acabar se levantando, mesmo assim fui até a cozinha, não poderia deixa-la ali com sede, seria muito injusto.
Eu tinha bebido de uma forma regular na noite anterior, tive um momento em que eu fiquei mais altinha, mas me recuperei logo em seguida. Eu realmente detestava aquela sensação do dia seguinte, como se eu tivesse perdido alguma coisa ou algo assim. Eu preferia simplesmente deixar rolar, mas mesmo assim.
Eu havia checado meu celular, tinha certeza absoluta de que não havia mandado nem recebido nenhuma mensagem que pudesse me prejudicar de qualquer forma, isso me aliviava bastante.
Eu não sabia muito bem o que estava esperando daquela segunda-feira que estava por vir, na verdade pensar nela me dava bastante preguiça.
Por estar prestes a começar terceiro período antes mesmo de começar a faculdade uma tia minha, mais uma para entrar nessa lista infinita de pessoas que adoram se meter na minha vida, havia conseguido um estágio para mim no Ministério Público, eu tinha certeza que não estava lá muito animada pra ficar carregando documento de um lado para o outro numa repartição pública, mas eu não tinha escolha.
Quando eu cheguei na sala com o copo de água na mão minha avó havia sumido.
Que merda.
– Vó? – Saí gritando pela casa, deixei o copo repousado na mesa antes. “Que merda” era o pensamento que mais ecoava na minha cabeça.
Minha avó tem 73 anos e tem Alzheimer. Não, não é fácil cuidar de uma pessoa assim. Principalmente quando na minha casa só existem duas pessoas além de mim. Minha mãe e ela.
A doença é algo bem complicado de se lidar, ela vai avançando, igual a maré. Começa bem devagar, com uns comportamentos estranhos, esquecimentos e só vai piorando. Quando a pessoa nota já está num estado avançado.
Minha mãe tinha saído pra marcar presença num almoço do chefe dela e eu tinha que segurar a barra até ela chegar.
E agora eu havia perdido a minha avó.
Quer dizer, eu sabia que não havia perdido de verdade, mas eu sentia como se tivesse. Eu, ainda chamando por ela, fui até a porta da sala e chequei se ela estava realmente fechada.
Ainda bem, estava.
Respirei fundo.
– Vó? Onde você tá? – Saí andando pelo corredor, eu sabia que ela ia fazer aquilo de novo comigo.
Ela nunca me obedecia.
E o que era engraçado era pensar como as coisas se invertem quando as pessoas ficam mais velhas. Eu me lembro de quando era eu que a desobedecia, quando era eu que saía por aí, me escondia e deixava minha avó e minha mãe enlouquecidas. Na verdade até um tempo atrás eu ainda fazia isso, mas aí eu notei que existe uma coisa, a minha avó, e eu não posso ficar deixando isso acontecer.
Entrei no corredor e notei que a porta do banheiro estava fechada. Dei três batidas.
– Vó, a senhora tá aí? – Só tinha eu e ela dentro de casa, era óbvio que ela estava ali. Dei mais três batidas e cruzei os braços, encostando na porta e sentindo todo o cansaço do mundo enquanto encostava a cabeça sobre a madeira.
– Tô sim Ofélia! É que me deu um desarranjo e eu vim pra cá, mas já tô saindo, viu? – Revirei os olhos. Peguei meu celular no bolso e fui pro sofá que ficava no corredor de frente para o banheiro. Tinha umas mensagens e uma ligação perdida, tornei-me a ligar para o número que me chamava.
– E vó! Meu nome é Olívia! – Gritei enquanto na minha orelha eu escutava as primeiras chamadas do telefone.
Quem havia me ligado era Gabriel. Ele era o meu melhor amigo de todos os tempos, apesar de viver falando e fazendo merda, ele era a melhor pessoa que eu conheço. Eu contava tudo pra ele, juro que não sei como eu confio nele, mas tá aí, tem certas coisas na vida que eu não entendia muito bem.
E eu me deixava ligar pra ele naquele momento, porque minha avó tinha problemas intestinais devido a idade, então eu sabia que ia ter que esperar muito tempo, de qualquer jeito eu iria aproveitar e passar um pouco do meu tempo.
– É o que? – E eu sempre atendia os telefonemas, mesmo quando era eu ligando, de uma maneira visivelmente mau humorada e sem vontade de falar. Mesmo quando eu estava aos prantos e desesperada com algo.
Ele poderia ter o defeito que fosse, mas só ele entendia perfeitamente meus sentimentos como pessoa. Eu sofria muito, minha família, além da doença da minha avó tinha uma história complicada.
Eu era filha de mãe solteira, minha mãe se recusa a falar sobre como conheceu meu pai, quem ele era, o que aconteceu com ele. Só sei que nasci sozinha e que minha avó se compadeceu da minha mãe e a ajudava a cuidar de mim.
E a minha vida era isso, complicada demais, pesada demais, cheia de problemas demais. E o Gabriel sempre estava lá quando precisava. Tinha uma música, que nós considerávamos nossa, que era Always Where I Need To Be do The Kooks. Simplesmente sempre que estávamos bêbados demais e no meio da rua cantávamos essa música.
E um fato sobre nós é que nunca temos horário para ficarmos bêbados, simplesmente bebíamos e deixávamos os vizinhos enlouquecidos.
– Tô sabendo que a maluquinha aí saiu desvairada na noite de ontem pro show da Ana Carolina sozinha. Botou essa aranha pra brigar pelo menos? – Eu sabia que ele tinha ficado um pouco sentido porque eu tinha saído sem ele. O que era uma raridade. Mas bem, eu sabia as minhas necessidades, principalmente depois dos acontecidos naquela semana, tudo o que eu mais queria era simplesmente saber o que estava acontecendo comigo e com a minha vida inteira.
– Não, Gabriel. – Revirei os olhos, ele era o típico homem que achava o máximo “essa coisa de ser lésbica.”
– Mas era um show da Ana Carolina, Olívia. – Fiz uma careta enquanto ele falava e fiquei encarando a porta. Não sabia o que comentar sobre o show.
“Ah, Gabriel, mas eu travei quando eu vi uma mina lá. Muito gata, só que gosta de pinto.”, não queria nem pensar em todas as coisas que eu tinha certeza que ele ia comentar a partir daquilo, preferia o silêncio. Mordi o lábio inferior, ele sabia que sempre tinha algo a dizer sobre aquilo.
– Tá ansiosa? Esse ano nós vamos fazer o trote com os calouros. – Lembrei do meu problema, eu não poderia ir no primeiro dia da faculdade, havia prometido a minha mãe que ia levar vovó no médico.
– Porra, cara... Acabei de descobrir que eu não vou poder ir no dia do trote. Você e a Helena podem tentar descobrir qual das calouras gosta de pegar mulher lá pra mim? – Ouvi uma risadinha do outro lado da linha. Helena tinha sido a primeira garota que eu havia ficado na faculdade e ela era a responsável pela voz lésbica no coletivo LGBT e ainda por cima a que fez o meu apelido de “Shane” pegar.
Shane porque no seriado The L Word ela era a pegadora, assim como eu.
É, esse é um dos maiores pontos negativos sobre mim, eu não sabia controlar meus impulsos, eu sempre queria tudo e naquele momento. Por fim, acabei caindo na fama de sedutora, que eu era a versão feminina do homem cafajeste.
Cansei de fazer meninas que se diziam heterossexuais “se descobrirem” com a sua sexualidade.
Simples assim.
Eu sou a bad girl. Eu sou a vilã da história. E isso é só a ponta do iceberg de isso tudo aí.
– Pode deixar. – Ouvi a fechadura do banheiro girar e a descarga ser acionada. A vovó havia simplesmente saído do banheiro.
– Ei, cara. Depois falo contigo. Tenho que desligar.


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