O Grande Palco da Vida escrita por Celso Innocente


Capítulo 14
Em busca de um sonho encantado.


Notas iniciais do capítulo

Amigos leitores:-
Peço desculpas pela linguagem usada por João Batista, desrespeitando a inocência de uma criança. Mas, como esta estória, embora ficção é baseada em fatos reais, ela mostra qual de fato é o preço que a criança vai pagar por entrar na carreira artista.



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Chegando na maior gravadora de música popular do Brasil, graças a indicação de meu tio, fomos muito bem recebidos pelo produtor João Batista, que nos convidou a entrar em sua sala, onde nos perguntou:

— Quem é o nosso artista?

— Regis! Meu filho! — informou-lhe o senhor Pedro.

O produtor se dirigiu a Regis e perguntou-lhe, fazendo um gesto esquisito com a mão direita:

— Você toca bem?

— Razoável. Estou aprendendo.

— Não se acha muito pequeno pra isso?

— Comecei desde pequeno.

— E não tem vergonha de falar? Faz mal pra saúde!

— Violão... faz mal? — franziu o nariz, o menino.

— Não estou falando de violão!

— Mas eu estou! — exclamou Regis, sem maliciar.

— Então a gente misturou tudo! Mas como você só toca razoável? Aqui tem que se tocar muito bem!

— Isso que o senhor tá falando eu não faço nada! — negou o menino, esperto.

— Como não? Agora eu estou falando de violão!

— Violão eu toco! Aprendi em casa e na escola.

— Muito bem! — exclamou João Batista, apanhando o violão e entregando a Regis. — Mostre-me.

— Só tocar?

— Como só tocar? Você não pretende gravar um disco só de solos! Pretende?

— Não senhor!

— Então me mostre.

Regis tocou e cantou “Saudade da minha terra”, de Goiá e Abel Ferreira.Click para ver a letra.

João Batista ouviu inteira sem interromper, depois pediu:

— Música suas!

E então Regis cantou “filho de bêbado” de minha autoria.

Papai querido, eu lhe pergunto só agora,

Por que sempre toda hora você judia de mim?

Chega da rua sempre sempre embriagado,

Me chama desesperado, me bate é sempre assim.

Vejo mamãe com os olhos cheios de água,

Do amor só resta mágoa, a bebida fez assim.

Papai querido eu sempre quis lhe dizer,

Gosto tanto de você, mas agora é o fim.

Por que papai que você sempre me condena?

Me chama e minha pena é apanhar sem ter um fim.

Meu corpo nu tenho vergonha até de ver,

Marcas de sangue faz saber, o que sou é gente sim.

O meu carinho é chicote em sua mão,

Me bate sem ter razão, minha vida é assim.

Se mamãezinha corre pra me socorrer

Só a vejo padecer, pois apanha igual a mim.

Os meus colegas, vendo meu corpo marcado,

Se juntam como aliados, só para rirem de mim.

Sempre alegres vejo eles comentando,

Por isso vivo chorando, é tudo sempre assim.

Peço por Deus meu querido papaizinho,

Quero ser seu amiguinho, ou minha vida vai ter fim.

Quero no rosto, ter sorriso de criança,

Dizer te amo com esperança, que o senhor venha a mim.

— Seu pai é malvado, hem menino!? — ironizou o produtor. — Fique aqui que vou adotar você.

—Malvado!? — franziu o nariz, Regis, demonstrando que às vezes cantava uma música, mas ainda não era maduro o suficiente para assimilar o que cantara.

— O garotinho vai ser um grande artista, podes crer — foi incisivo o produtor. — O que se precisa mesmo é saber trabalhar com ele. Ele ainda tem a voz muito infantil. Quantos anos você tem, garoto?

— Oito!

— E já fica depenando o sabiá! Não? Tome cuidado!

Voltou a nós e prosseguiu:

— Oito anos, a voz é muito verde e vai mudar muito com o tempo. Acho que vocês estão precipitando as coisas. Por que não esperam mais uns dois anos?

— É muito tempo! — interferiu Regis.

— Está muito apressado pra ser artista, garoto! Mas artista não é ter um disco gravado! Você já é um artista! Mas ainda acho que deveria esperar mais uns dois anos pra gravar.

— É muito! — desanimou o menino.

— A menos que façamos igual se fazia na Rússia antigamente, pros garotos cantarem ópera sem que mudasse a voz, ao atingirem a puberdade. — Insinuou o produtor.

— O que? — entusiasmou-se Regis.

— Castrá-lo! — exclamou o produtor fazendo gesto de cortar.

— Ãh! — Não gostou da brincadeira, o pequeno.

— Não estou brincando! — negou o produtor. — Você não sabia que é assim que eles mantinham a voz das crianças verdes, como está hoje a sua?

Ele olhou para nós.

— Dizem que é verdade, Regis — aleguei. — Pelo menos dizem!

— Assim tô fora! — negou ele.

— Que isso menininho! — insistiu João Batista. — Só vamos tirar duas bolinhas. O resto fica.

— Sai de mim! — protestou o pequeno.

— O senhor acha que ele gravando agora, depois mudará a voz e ficará ruim? — Perguntei a João Batista.

— Realmente, se ele gravar agora e for bem divulgado, poderá vender muito bem, pois os adultos gostam muito de ver e ouvir crianças cantando. E é o que o mercado está precisando. Não existem crianças artistas hoje em dia. Só que no momento em que ele mudar a voz poderá surgir problemas. Quantos artistas que fizeram grande sucesso quando muito criança continuam fazendo sucesso até hoje? A maioria desaparece quando atingem quatorze anos de idade.

— O senhor quer dizer que com o tempo ele aprenderá mais… — perguntou o senhor Pedro.

— Naturalmente. Vai afirmar mais a voz…

— Aprenderá melhor o violão — emendei.

— Claro! Se bem que violão não é problema! Na gravação quem toca são os músicos.

— Por favor, moço, grave eu! — pediu o pequeno artista.

— Pra se gravar disco, garoto, precisa ser homem… Gostar de garotas… Não ficar tocando…

— Eu não fico tocando nada! — negou Regis, sério. — E gosto de garotas!

— Ótimo! Então vou levar você pra assistir um streep-tess. Topa?

— O que é isso?

— Não sabe nem o que é streep-tess. É onde as garotas dançam tirando a roupa.

— E a gente, o que faz?

— Nada! Fica olhando!

— E qual é a graça em apenas ficar olhando? — riu Regis, vingando por sua vez do produtor.

— Ah é? Então vou te levar a um meretrício! Aceita?

— Não sei o que é!

— Depois te explico melhor, longe de seu pai! Não quero que tome umas cintadas!

— O senhor é muito gozador! Não acha?

— Nada disso! Só falo sério! Você tem namorada?

— Não! — negou sério.

— Nunca teve?

— Já! Mas ela me deixou!

— Por quê? Você a traiu?

— Ela se mudou!

— E deixou seu coraçãozinho louco apaixonado?

Atendeu ao telefone que tocava. Depois de um minuto desligou e nos perguntou:

— Então vocês não pretendem esperar este artista crescer um pouco mais?

— Ele gostaria de gravar, na medida do possível — praticamente implorei.

— Na medida do possível está quase impossível — riu o produtor.

— Poderíamos fazer uma experiência com Regis — insinuou o senhor Pedro.

— É uma experiência caríssima. Os altos preços do petróleo e a crescente desvalorização do cruzeiro nos dificultam as coisas. Vocês veem, nenhuma gravadora quer investir em novos talentos. Mesmo os cantores mais consagrados sofreram uma queda enorme em produção e venda. Gente que gravava um disco por ano passa-se dois e até três anos sem entrar em um estúdio de gravação. Tudo está muito caro.

— Sabemos disso e entendemos também — confirmei.

— E tem mais! Existe uma bendita lei, chamada estatuto da criança e do adolescente, que complica ainda mais a situação de nosso miniartista.

— Como assim? — admirei.

— Essa lei, reza que nenhuma criança menor de quatorze anos pode trabalhar. Acima dos quatorze, até os dezoito, só pode trabalhar como aprendiz, em ambiente apropriado.

— Vixi! — admirou-se Regis.

— Pois é meu amiguinho! Tem certos barbudos de dezessete anos e onze meses, que são considerados crianças e não podem trabalhar! Só que pode matar… roubar… estuprar… bater nos pais…

— Gravar disco... seria proibido? — perguntei.

— Até que não! — negou João Batista. — Mas disco não dá dinheiro! O que realmente dá dinheiro pros artistas são os shows! E shows, geralmente começam depois das dez horas da noite. Mesmo que consigamos uma brecha na lei para que Regis faça shows, o estatuto da criança e do adolescente reza que após este horário as crianças devem estar dormindo. Portanto, a lei deve ser analisada com bom senso. Mas se vocês estiverem em uma determinada cidade, onde exista um juiz de direito que seja cricri ou queira se aparecer e Regis sendo famoso como sei que será, esse juiz poderá embargar o show devido à idade de nosso pequeno tocador.

— Apesar disso, ainda gostaria de gravar o disco — alegou meu amiguinho. — Eu fico amigo do juiz!

— Você é quem manda! Vamos fazer o seguinte — propôs João Batista. Vocês me pagam um pouquinho e nós gravaremos o disco.

— Quanto seria esse pouco? — perguntou-lhe o senhor Pedro.

— Pelo menos cinquenta mil cruzeiros.

— Muito caro! — desanimei.

— Caro? Por esse preço ninguém consegue fazer! Nem eu consigo! Veja bem, o tape é muito caro, cerca de quinze mil. Cada músico vai me pedir oito mil; fotolito, mixagem, corte, prensagem, playback. Tudo é muito caro! E olha que temos sorte, pois não precisamos alugar estúdio. Somos privilegiados com estúdio próprio.

— Só que pra gente arranjar cinquenta mil cruzeiros assim de repente, não é nada fácil — neguei.

— Vocês me darão vinte e cinco mil agora e os outros quando montarmos a voz.

— Não dá pra fazer por quarenta mil? — contra propus.

— Aí eu teria que investir muito e não dá! As coisas não estão fáceis!

— Quarenta e cinco então!

— Desde que seja à vista.

— Não temos! — neguei. — Vinte e cinco hoje e o resto na montagem.

— Assim eu tomo muito prejuízo. Vocês sabem que estão numa das melhores gravadoras do Brasil e temos um nome a zelar. Não vamos fazer porcaria, igual muitas gravadoras fazem e estragar um artista que está no começo. Se não capricharmos no primeiro disco, pode até estragarmos o artista pra sempre. Capricharemos no disco e o divulgaremos muito bem. Aliás, falando nisso, só a divulgação desse astrinho nos custará mais de cinquenta mil cruzeiros. Como você mesmo disse, faremos uma forte experiência com o garoto. Se ele conseguir despontar com essa idade, será lucro a vocês e a mim também. Se ele não conseguir tomarei muito prejuízo, pode ter certeza.

— Está bem! — concordei. — Vinte e cinco mil hoje e vinte e cinco na montagem da voz.

— Ótimo! Vocês não se arrependerão! Depois, mesmo que o primeiro disco ele não venda bem, como acontece com a maioria dos artistas, estará abrindo caminho para outros discos.

Pediu à secretária que preenchesse um contrato muito bem redigido e assinamos juntamente com ele, que ainda concluiu:

— Faço mais um negócio com você, menininho! — direcionou-se a Regis. — Não gravamos agora! Esperamos mais dois anos, acompanho sua vida de artista e prometo fazer o melhor disco do mundo pra você, sem cobrar-lhe um centavo e ainda lhe ofereço um contrato remunerado já no primeiro disco. Nenhuma gravadora faz isso.

— Dois anos é muito tempo! — reclamou ansioso, o menino.

— Faço o melhor disco do mundo pra você. Promessa séria! Confio em seu talento.

— Vamos arriscar agora? — pediu o pequeno. — Vou me esforçar ao máximo!

— Olha bem — insistiu o homem, olhando para nós adultos. — no primeiro disco vocês não terão contrato remunerado. Estou lhes oferecendo isso pra daqui a dois anos, com o melhor disco do mundo sem gastar um centavo...

— Queria gravar agora. — entristeceu-se o pequeno.

— Tudo bem! — desistiu João Batista. — Ainda acho que vocês deveriam esperar no mínimo esses dois anos. Mas como nosso tocador está com muita pressa, vamos fazer de tudo pra que ele seja um grande astro.

Já íamos saindo quando ele ainda disse a Regis:

— Fala pro Miguelzito que depois eu pego ele lá fora!

— Ãh! — espantou-se o menino.

— Miguelzito é o meu tio da outra gravadora, Regis — informei-o.

— Pra ele parar de arrumar problemas pra mim! — concluiu o produtor.

©©©

Naquela mesma tarde, enquanto retornávamos para nossa querida São João, em ônibus da viação Cometa, a qual faz o trajeto São Paulo, Poços de caldas, Regis, na janelinha, eu no corredor das poltronas trinta e sete e trinta e oito, enquanto o senhor Pedro estava na poltrona vinte e dois.

— Está feliz em conseguirmos programar a realização de seu sonho? — Perguntei a Regis.

— Muito feliz — disse ele sério.

— Não parece muito!

— Estou cansado, Willian!

— Verdade! Também estou. Sorte que amanhã é sábado e não irei trabalhar.

— Aquele homem é muito chato!

— Quem?

— Aquele produtor! Não gostei dele!

— O que há de errado com ele?

— Acho que ele deveria me respeitar mais.

— Como assim?

— Não é respeitar eu! Respeitar mais as crianças! Eu tenho só oito anos! Não devia ficar falando tanta besteira pra mim.

— Ah sim! Agora sei o que você está falando.

— Quando eu tiver uns dezesseis anos, vou gostar muito de mulheres! Vou querer namorar e no futuro até me casar. Mas por enquanto eu gosto mesmo é de violão.

— Está certo — achei interessante. — E a Lúcia?

— Gosto dela! — riu ele, depois concluiu. — Mas como amiga!

— Mas você disse que a beijou!

— Beijo de amigo!... Eu acho!

— Na boca!?

Ele balançou os ombros. Pensei um pouco e concluí:

— Pensando bem, acho que o produtor não estava caçoando de você. Nem brincando! Acho que ele estava falando sério.

— Sai pra lá oh! João Batista!

— É sério, Regis!

— Ele deveria saber que apesar de papai ser muito bom, a gente não tem tanta liberdade assim. Ficar falando bobagens perto dele! Morri de vergonha!

— Ele estava testando sua timidez… sua inteligência… sua educação… Um artista não pode ser tímido! Tem que ser desembaraçado.

— Precisa ir tão longe?

— Foi assim que ele te analisou!

— Foi assim que papai me proibiu de voltar ao circo.

Ele cantarolou baixinho:

Derrubei em sua boca

Uma gotinha de amor

Nunca fiz greve de cama

Pra abusar do teu suor

— Esta música é besterenta, Willian?

— Digamos que não é pra sua idade.

Regis inclinou a poltrona o máximo que conseguiu e fechou os olhos.

— O que estou falando em respeito ao produtor é mera suposição. Não tenho certeza. Não sou psicólogo! — Conclui.

— Acho que é safadeza mémo!

— Mémo?! — chamei-lhe atenção para a palavra.

Calou-se por alguns segundos depois disse:

— Acho que num futuro não muito longe, desrespeitar uma criança será crime.

— Como você sabe disso?

— A criança é indefesa e deve obedecer e respeitar os adultos. Por que os adultos não devem respeitar as crianças?

— Eu diria que tem que ser o contrário, o adulto deve respeitar e amar as crianças. Só assim ele vai conseguir ser respeitado também.

— Gosto de você porque você me entende, Willian!

— E eu gosto de você porque você merece o nome que tem!

— Como assim?

— Sabe o significado de seu nome?

— Não!

— Regis significa beleza, humildade, cortesia, influência, caridade, companheirismo, inteligência... O nome Regis já demonstra generosidade desde bem pequeno. Tudo a ver com você.

— Você está inventando!

— Nadinha! Li num livro.

— Baboseira! — reclamou ele. — Onde se viu! Eu sou assim porque mamãe me batizou por Regis! Se tivesse me batizado por... Lucas, eu seria outra pessoa?!

— Sei lá, Regis! Eu não escrevi o livro!

— O nome é só um nome! Eu sou assim por me chamar Regis. Se eu me chamasse Sebastião, seria a mesma pessoa.

Balancei os ombros como a não saber o que falar.

— Quando eu for ter um filho, vou ler este livro pra decidir qual será a... índole dele.

— Poxa meu! — admirei. —Tá gastando!

— Como assim? — franziu o nariz.

— Não é qualquer menininho de oito anos de idade que sabe o que é índole!

— Minha professora me explicou. Nesse livro de decidir a... vida das pessoas, o que significa Willian?

— Protetor corajoso, ou aquele que deseja proteger... Não gosta de ser humilhado.

— E quem gosta? — riu meu amiguinho. — Acho que encontrei a pessoa certa pra ser meu tutor!

— Como assim?

— Protetor absoluto! Preciso mais? — riu ele mostrando a covinha na bochecha.

— Tutor... Protetor! — articulei. — Tá aprendendo rápido!

Calamos-nos e em poucos minutos, cansado, ele estava dormindo.

A viagem demorou aproximadamente três horas e durante todo o percurso permaneci acordado. Nunca consegui dormir em viagens de ônibus, mesmo em viagens mais longas.

Acordei Regis quando estávamos próximo à estação rodoviária de São João, que ficava bem no centro da cidade.

Ao desembarcarmos, ele e seu pai seguiram de ônibus coletivo para suas casa, enquanto eu, a pé, segui para o meu apartamento alugado, ali mesmo no centro da cidade.


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Notas finais do capítulo

Espero não perder meus poucos leitores devido a linguagem utilizada pelo tal produtor.
Caso alguém prefira que eu mude, faça uma crítica nos comentários.



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