Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 8
Beau


Notas iniciais do capítulo

olá, turminha do barulho, voltei depois de muito tempo, mas espero que estejam acostumados com a minha demora :)
gostaria de agradecer todos vocês que comentaram (mês passado, a história tinha uns quarenta e poucos comentários, três recomendações e poucos favoritos e acompanhamentos). um obrigada à Anna (LadyCinnamon) que recomendou e fez uma fanart muito fofa de DaC, e à carey, por ser fodinha e ouvir os meus desaforos no Twitter.
NOW BEHOLD: DAZED AND CONFUSED 2.0 (2.0 por causa do novo banner, de resto, tudo continua a mesma coisa).



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Beauregard se inquietou na poltrona.

— Glenda Dylan. — ribombou o sr. Sedwick, passando um slide da foto do anuário de uma garota mestiça, de sorriso aparelhado e cílios postiços. — Faleceu nesta primavera. Que Deus a tenha.

O sr. Sedwick era o tipo de professor que gostava de expôr a aliança reluzente no dedo anelar. Dava aulas de Filosofia e também era o orientador da escola. Vivia pavoneando pelo colégio com a camiseta social embutida na calça xadrez e a careca polida refletindo as luzes matinais que entravam pelas claraboias. Haviam-no pagado para dar a palestra sobre álcool e drogas, porque o corpo docente acreditava que se alguém mais próximo dos estudantes os aconselhasse a temerem um baseado ou uma carreira de pó, eles imediatamente lhe dariam ouvidos.

— Alfred Pilgrim. — um garoto de olhar vago brilhou na escuridão. — 1979. Descanse em paz, meu filho.

Raven estava sentada ao seu lado. As costas eretas, o pescoço erguido, o nariz empinado. Ao tudo que indicava, estava tensa e ansiosa para se manifestar. Toda vez que o sr. Sedwick mudava de foto, ela pressionava seu cotovelo, repousado no apoiador da poltrona, contra o de Beau e franzia o cenho.

— Eu sei aonde ele tá tentando chegar com tudo isso. — suspirava ela, exasperada. — Porco asqueroso.

Finn se sentava do lado esquerdo de Beau e quase adormecia, afundado em seu assento. As bochechas rúbeas e os cílios espessos o deixavam parecido com uma boneca de porcelana. Havia puxado a gola tartaruga do suéter bege até a ponta do nariz, como se estivesse incomodado com o odor fétido do anfiteatro.

— Henri Buell. — o garoto tinha salpicos de barba espalhados pelo queixo e óculos estilo John Lennon arredondavam seu rosto oval. — Outubro passado. Amém.

Beauregard começou a chutar a poltrona à sua frente, impaciente. Floyd a ocupava, mas não parecia se importar. Ele se assemelhava àquele mesmo Floyd, só que sob os efeitos da morfina, de olhos distantes e absorventes como buracos negros, lábios secos e debilmente entreabertos, e testa encerada e oleosa. Beau não sabia se ele havia parado de se picar. Nunca perguntara. Só sabia que o amigo exibia escoriações nas maçãs do rosto e marcas de dedos grossos no pescoço.

— Brick Ford. — colar de conchas adornando a clavícula, semblante fechado, uma espinha abaixo da narina esquerda. — Ano retrasado. Pobre Brick, era um menino e tanto.

Descansando em sua diagonal, estava Park, silencioso e desconfiado. Brincava com o isqueiro de prata com os dedos hábeis, delicados como os de um jardineiro. De raro em raro, olhava para Beauregard de esguelha e voltava a acender a pequena flama.

— Heidi Sallinger. — uma menina de pele cor de oliva, com os fios de cabelo negros trançados e olhos roliços delineados de um azul vibrante. — Três anos já, hein, Heidi? Tinha um futuro brilhante, grande menina.

Gretel Dorothea não estava à vista. Allison Foster engolia a seco enquanto prometia a si mesma nunca mais consumir álcool em sua vida. Poucos alunos haviam comparecido nas aulas. O céu estava cinzento e constipado.

— Garrett Austin. — um garoto de cabeça raspada surgiu na tela. O piercing no septo e os olhos venturosos de um lunático, atribuía-lhe um ar de presidiário. — Sexta-feira passada. É uma grande perda, Gary.

Teddy Turner estava na primeira fileira. Teddy Turner nunca se sentava na frente. Entretanto, naquele dia ele estava ali, e ninguém nunca havia o visto soluçar tanto. As lágrimas ensopavam seus cílios claros e traçavam uma trilha até sua camiseta branca, embebida ao redor da gola. Estupidez de quem diz que garotos não choram. Eles choram, e muito.

— E vocês sabem o que estes quatro... Seis, isso mesmo, seis! Sabe o que estes jovens têm em comum? — o sr. Sedwick esperou por murmúrios de negação. — Eles eram viciados em álcool e drogas.

‘‘Glenda morreu de overdose, assim como Brick. Alfred entrou em um coma alcoólico e em dois dias, passou desta para melhor. Henri dirigia embriagado. Heidi faleceu sufocada com o próprio vômito. Vocês estão rindo? Saibam que Hendrix morreu do mesmo jeito aos 27 anos. E Garrett Austin, mesmo não tendo morrido por estes motivos, seria encaminhado para um reformatório juvenil por posse de drogas.’’

— Diz o cara que gosta de fumar uns baseados na sala dos professores. — murmurou Beau.

O sr. Sedwick desligou o projetor e acendeu as luzes do anfiteatro. Todos os estudantes presentes cerraram as vistas com o repentino fulgor dourado. Alguns funcionários posicionaram um microfone numa extremidade do palco enquanto o professor fazia gestos veementes e cuspia durante a fala.

— Por favor, subam ao palco os alunos Finn Swanson e Lulla Lester.

Beauregard despertou Finn com uma cutucada no braço. Ele levantou num salto e ensaiou um sorriso simpático para o sr. Sedwick, que o cumprimentou com palmadinhas afetuosas nas costas.

Lulla Lester usava uma saia xadrez até os joelhos e as unhas quadradas estavam lixadas numa medida adequada — não eram vulgares a ponto de estarem muito longas, não eram roídas até o sabugo e haviam sido pintadas numa cor discreta. Seu cabelo tinha uma coloração esquisita, loiro ninho-de-rato, e alcançava o final da cintura. Às vezes, Beauregard se pegava pensando em como garotas de cabelo comprido conseguiam se sentar em uma privada.

— Muito bem, Lulla e Finn vão encenar algumas situações e eu quero vocês façam uma fila atrás do microfone para sugerirem soluções à esses dilemas. — instruiu o sr. Sedwick.

Finn e Lulla trocaram alguns cochichos antes de começarem. Beauregard se virou para Raven e a flagrou com braços e pernas cruzados e um olhar fulminante.

— Meu nome é Cheryl e eu tenho quinze anos. — iniciou Lulla numa entonação entusiasmada simulada. — Meu namorado me levou à uma festa. Nossos amigos ofereceram cerveja para nós e ele aceitou. Só que é ele quem está tomando conta do volante hoje à noite. O que devo fazer?

A plateia deu algumas risadinhas. Mãos perfuraram o ar e os bons alunos que possuíam soluções foram conduzidos até o microfone. O primeiro a falar foi um menino do segundo ano, esquálido e de óculos com lentes grossas.

— Bem, Lulla... Quero dizer, Cheryl. Você deveria pegar a cerveja da mão do seu namorado e ligar para a polícia. Porque, afinal de contas, vocês ainda são menores de idade e não podem beber.

— Palmas para o Wes, galera! — trovejou o sr. Sedwick, enquanto dava um abraço apertado no aluno. — Antes dos demais responderem ao dilema, vamos apresentar a segunda situação.

Finn brincou com a gola do suéter antes de começar. Encarou os colegas, apreensivo.

— Hã, meu nome é Roy e eu tenho quinze anos. — discursou ele, num tom monótono. — Acho estudar chato e meus amigos me disseram que fumar uns baseados te faz descolado. E agora, minhas notas caíram e estou de recuperação.

Beauregard aplaudiu o amigo em pé. Raven o acompanhou e chutou as cadeiras do irmão e de Floyd, que assoviaram e soltaram gritinhos agudos.

— Isso foi tubular, campeão! — uivou Beau, provocando gargalhadas no anfiteatro.

Os professores, sentados na primeira fileira, volveram-se para o encrenqueiro com indignação. O sr. Sedwick não parecia encolerizado ou sequer magoado.

— Beauregard, por que você não usa esse vozeirão para sugerir uma solução aos dilemas dos nossos amigos? — propôs o professor, com uma expressão de triunfo.

— Mas é claro, sr. Sedwick. Será um prazer.

Lançou um olhar cúmplice à Raven. Ela balançou a cabeça, como se estivesse repreendendo os futuros atos de Beauregard, dos quais ele possivelmente se arrependeria. Beau desceu as escadas que ligavam a plateia ao palco e tomou o microfone das mãos do outro aluno.

— Sobre a questão da Cheryl, eu queria dizer que uma cerveja não te deixa chapado. No máximo, você fica meio avermelhado, mas isso não vai causar um acidente catastrófico. E em segundo lugar: Cheryl, você é uma garota forte, então se o seu namorado for um pinguço, pare de sair com ele e pegue carona com um moleque maneiro, sacou? E beba umas cervejinhas pra descontrair o clima, porque você merece.

— Beauregard, acho que o que estamos tentando discutir aqui... — interviu o sr. Sedwick, estendendo o braço para pegar o microfone dele.

— Espera aí, professor. O senhor não me pediu sugestões? Falta uma. É a mais importante.

‘‘Roy, meu camarada, vou te contar um segredo. As suas notas não estão caindo por causa da maconha. Não é porque você é burro, ou porque você não estudou. É por causa da porra desse sistema escolar. Os boletins te definem pela sua capacidade de decorar todas as matérias e tentar botar todo o conteúdo num papel durante sessenta minutos. Os testes não te medem pela inteligência. E eu tenho certeza de que você é inteligente pra cacete, Roy, e que você tem outras metas além de tentar orgulhar seus pais com notas máximas.’’

— Muito bem, Beauregard, já deu... — disse o sr. Sedwick, com um ar incomum de seriedade.

Finn o fitava com as faces cetrinas. Enfiara as mãos nos bolsos porque elas tremiam. A luz morna e gloriosa do holofote o cegava. Beauregard, impulsivo como sempre, continuou a pregar.

— E olha quem tá te ensinando, Roy! São uns coroas que acham que George Bush é o cara. Roy, você é mais do que isso. Saia dessa, fume uns baseados e quando acabar a escola, por que não tenta escrever uma novela? Ou formar uma banda? Tem certas coisas na vida que nem a aula de Economia Doméstica por te ensinar. Você tem que se virar, Roy, estourar a bolha em que vive.

— Beauregard, minha sala, agora. — impôs o sr. Sedwick, erguendo o tom de voz.

— E você, sr. Sedwick, não chame o Gary de alcoólatra ou traficante. Ele não estava condenado à nada. Ele não ia pra reformatório nenhum. Ele foi assassinado. E sabe o que eu acho?

— Entregue esse microfone agora.

— Eu acho que você é a porra dum serial killer republicano. — ele largou o microfone no chão, produzindo um zumbido excruciante aos ouvidos. — Roy, você é o cara!

Beauregard se dirigiu à saída, com o holofote o seguindo e palmas impetuosas o congratulando. Assim que saiu do anfiteatro, dirigiu-se à sala do orientador.


***


Beauregard se lembrava nitidamente da sala do orientador. Visitara-a incontáveis vezes no sétimo ano. A mesa rústica era organizada; dois livros de auto-ajuda junto de um maço de panfletos sobre integração social, um cinzeiro de cristal que nunca era usado, um vaso de crisântemos murchos, um abajur de renda antiquado e cinco cigarros de palha enfileirados.

A careca do sr. Sedwick, outrora radiante e luzente, agora estava oleosa e enrugada. Ele uniu as palmas das mãos e mirou Beauregard com os olhos coléricos.

— Você sabe que está encrencado porque me chamou de serial killer republicano, não é? — Beau assentiu. — E sabe que é errado chamar os professores de coroas, sim?

— Sim, senhor.

— E sabe que será posto na detenção por um mês, não sabe? E que pode levar até uma suspensão?

— Sim, senhor, eu tinha tudo isso em mente desde o momento em que pisei no palco.

— Bom, então por que fez toda aquela cena?

— Porque você tava chamando o Gary de alcoólatra junkie. E é claro, porque eu gosto de chamar atenção.

O sr. Sedwick pegou um cigarro da mesa e extraiu um isqueiro da gaveta, sem desviar os olhos de Beauregard. Deixou a ponta do baseado queimar para soltar uma fumaça densa em forma de arabescos. O olor era tão insuportável que Beau não conseguiu conter uma tosse.

— Perdoe-me, então. Não foi a intenção. Não quis chamar o Gary de um alcoólatra junkie. — ele dispersou a fumaça com um abanar. — Eu só não entendo como um garoto como você consegue ser tão encrenqueiro.

‘‘Digo, você anda com esse pessoal; esses garotos e garotas condenados. Eu fui um desses jovens, Beau. Você não sabe como é. Você finge que sabe, mas nunca vai entender.’’

— Desculpa, sr. Sedwick, mas eu não sei do que o senhor tá falando.

O ventilador de teto amarelo dava giros vagarosos sobre eles. O relógio de pêndulo tiquetaqueou duas vezes e badalou. O sr. Sedwick abriu um pacote de amendoins e arremessou um na boca.

— O que você acha que vai acontecer com eles quando crescerem? Que vão se tornar artistas? Escritores com prêmios Nobel de literatura? Músicos famosos? O Finn Swanson, por exemplo, é brilhante; já leu alguma dissertação dele? São todas ótimas, cheias de argumentos e personalidade. Acha que ele vai se tornar um colunista do New York Times? Ah, Beau, essas crianças estão condenadas. Você está preso nesta cidade temporariamente. Eles estão presos aqui para sempre.

Beauregard agarrou os apoiadores da cadeira com força. A raiva, pulsante e borbulhante, transbordava em sua cabeça. Ele não era vidente, muito menos Deus. Não poderia adivinhar os destinos de seus amigos.

— Você não entende, garoto. — o orientador tragou mais uma vez o cigarro de palha. — Pare de ser pretensioso.

— Bom, — ele tentou pensar em alguma retrucada avassaladora, todavia falhou. — coma os meus shorts, Patrick! Sim, eu sei o seu primeiro nome.

E se pôs de pé num pulo, não antes de esbarrar na pilha de panfletos. Eles redemoinharam no ar antes de pousarem serenamente no carpete lígneo. Abriu e fechou a porta da sala com um estrondo, e esperou alguns segundos para verificar se o sr. Sedwick o seguiria. No entanto, ele não o fez.

Gary Austin estava morto. Beauregard vira seu corpo prostrado, sua cabeça afundando no travesseiro, suas mãos cadavéricas segurando um rosário pela eternidade. O Gary que ele conhecia, aquele que chicoteou os traseiros dos geeks no vestiário junto com Beau, havia sucumbido para o lar dos mortos.

O corredor estava abarrotado de adolescentes catinguentos, guindando suas mochilas nos ombros e colando fotos instantâneas nas portas dos armários. Daria McAllister esfregava uma sombra azul metálica em suas pálpebras e tentava recobrir os filetes escuros de lágrimas com rímel preto, que eram absorvidos pela sua pele. Gretel Dorothea não se assemelhava com a beldade nórdica que incorporava; naquele momento, desfilando entre a multidão, era uma típica Rainha do Baile derrotada.

Percy McKiddie se encontrava encurvado sobre o armário. As mãos cavoucavam seu interior com vigor e os olhos, negros como duas jabuticabas, mal piscavam. A ponta do nariz estava vermelha e seus joelhos tremiam sob as calças moletom. Toda vez que alguma menina vinha lhe confortar, ele a afastava com um movimento brusco com o ombro.

— Ei, Percival. — falou Beau, cauteloso. — Que foi?

— Quê? Nada. — tirou as mãos de dentro do armário e o fechou. — O Drácula me convidou pruma festa no posto de gasolina. Tá a fim de ir?

— Festa? Cara, eu realmente não tô no clima de festa. Você tá bem mesmo?

Percy pestanejou e desviou o olhar.

— Sim, é que eu acabei de me picar. Nunca tinha feito isso antes. Tô me sentindo legalzão. E aí? Você quer ir?

— Depois o que aconteceu com o Gary? Vou perguntar pro pessoal, se eles quiserem, então eu vou. O pessoal no caso é o Floyd.

— Massa, massa... Aparece lá às seis. Metedrina é foda. Vou vazar.

Beauregard assentiu e começou a andar contra a corrente de pessoas. Elas lhe aplaudiam, davam-lhe beijos no rosto, apertavam sua mão e o parabenizavam pelo sermão no anfiteatro. Encontrou Finn, Floyd, Raven e Park apinhados ao redor de um armário, com semblantes sérios e roendo as unhas.

— Os policias vão fazer perguntas. — ele escutou um fragmento da fala de Park. — Raven, Finn, os dois, prestem atenção. Aparentemente, vocês foram os últimos a verem o Gary. O que vão falar pros tiras?

Finn, o menino brilhante das dissertações, não parecia ter nada inteligível a dizer. Puxava a gola tartaruga com agonia, como se esta estivesse o sufocando. Raven, ajeitando a saia azul da aula de Educação Física, falou casualmente:

— Que nós irritamos uns caretas, eles ficaram putinhos e vieram correndo atrás da gente com garrafas de vinho pesadas.

— Convincente. — elogiou Park, sempre sensato. — Eles vão perguntar se viram algo de suspeito.

— Quando o Gary saiu do carro, um jogador de futebol americano foi correndo atrás dele com um bastão de beisebol. Só que não sei o nome de nenhum dos caretas e aposto que não consigo distinguir algum deles.

— Óbvio. — manifestou-se Beau. — Eles são todos iguais.

— Rapaz, eu achava que você não ia sair vivo dessas. — suspirou Raven, aliviada.

— Ei, cara, você mandou bem. — Floyd abraçou seu pescoço, fungando. Sua nuca estava pegajosa de suor e sua voz saía anasalada e débil.

— O que você anda tomando, Floydster? — murmurou Beauregard para o amigo.

Floyd recuou e sorriu para Beau com os dentes amarelados. Não havia se lavado no dia anterior, ele sabia. Beauregard não o culpava por contaminar seu sangue — sangue bom, tão límpido que poderia ter carpas e salmões nadando em suas artérias — com anfetaminas e sedativos; às vezes, era a forma mais eficaz de amenizar a dor. E Beauregard sabia que os cascudos do velho sr. Dolovan doíam e o amarguravam, e mesmo que sentisse uma repulsa descomunal por ele, nada poderia fazer além de convidar o amigo para passar a noite em sua casa ou persuadi-lo a contatar o Serviço Social.

— Se isso te anima, a gente pode dar uma passada no Drácula. Ele vai dar uma festa no posto. — sugeriu ele.

— Quem é Drácula? — questionou Park, desconfiado.

— Lembra do Lionel Haring? O moleque albino que saiu da escola no nono ano? — Park meneou afirmativamente com a cabeça. — Então, agora ele mora num posto de gasolina abandonado com dois homens casca-grossa e vende erva vinda de Los Angeles. A melhor de todas e é cara pra chuchu.

— É um traficante?

— É.

— Só avisando: Raven, você não vai pra essa festa. — sentenciou Park, defrontando a irmã com uma fachada austera.

— Você só é dois anos mais velho e se acha o meu pai, que saco, Park. — rebateu ela, batendo o pé direito no chão.

— Você é uma criança, o que quer que eu faça?

Um insulto pendia na ponta da língua de Raven quando o sinal estrepitou pelo corredor. Park pôs os cadernos sob o braço, apertou as mãos dos amigos e segurou o ombro da irmã, meio desajeitado.

— Boa sorte com o interrogatório. — encorajou ele antes de sair andando.

Raven revirou os olhos e bufou, como uma criança marrenta. A professora Kruger cutucava os alunos por onde passava, apontando para as salas de aula e alastrando seu hálito amargo de cinzas e ameixas secas. Assim que avistou Raven e Finn, correu até eles com as sandálias de borracha arrastando no chão.

— Garotos, estava procurando você desde o fim da palestra! Boa performance, aliás, sr. Swanson. Podem me acompanhar, por favor? A polícia quer interrogar vocês. — explicou ela, atenciosa.

— Obrigado, sra. Kruger. — agradeceu ele.

— Não há de quê. Agora, por favor, para a biblioteca. — a professora os agarrou pelos ombros. — Vocês dois, Beauregard e Floyd, para a sala de aula, imediatamente.

Raven avançou sobre Beau e o pegou pelo colarinho da camiseta havaiana.

— Você vai me levar pra festa, né? — intimidou ela, numa voz baixa.

— Se você quiser ir.

— Eu quero.

— Tá bom, então. Passo com o Corvair, às seis.

— Raven! — repreendeu a sra. Kruger. Ela a chamava de ‘‘Raven’’ porque não sabia pronunciar seu sobrenome, mesmo após cinco anos a ensinando latim. — Por favor, venha e deixe o Benny voltar à classe.

— É Beauregard, sra. Kruger. — corrigiu ele. — É Beauregard.

***

Beauregard descansou no encosto do banco.

Havia carros estacionados de qualquer jeito na rua; carros de espelhos retrovisores estilhaçados e com recados zombeteiros escritos a dedo na sujeira das janelas. A placa amarela tremeluzente indicava o posto de gasolina abandonado. Desligou o rádio do carro e checou o banco de trás pelo espelho frontal — Raven e Floyd, ambos de cinto de segurança, contemplavam receosos aquela ruela senil, de ladrilhos podres e construções decrépitas.

Beau saiu do Corvair vermelho e desabotoou a camiseta floral, deixando seu peitoral lúrido exposto.

— Então... Vocês vão sair, ou não? — questionou Beauregard, agachando-se na janela aberta detrás.

Floyd gargalhou e empurrou a porta do automóvel. Raven não parecia tão convicta quanto ele; tiritava sob a jaqueta jeans e tinha passos vacilantes com os coturnos luzidios. Havia uma cerca encardida contornando o posto. Uma placa pendurada numa porta de grade entreaberta dizia: ‘‘Posto fechado para revisão. Não trespassar.’’

— Vamo entrar. Tá aberto.

Alguns garotos andavam de skate por entre as bombas de gasolina desativadas. Na entrada do lava-rápido, Beauregard vislumbrou algumas tendas amarelas, com um ar de desamparadas. Uma fumaça turva e entorpecente saía pela porta da loja de conveniência, sucumbindo ao céu azul-ciano e se dissipando na metade do caminho. Eles entraram na penumbra da loja, alucinados pela súbita escuridão. Floyd, percebendo o espanto notório de Raven, acalentou-a ao passar o braço pelos seus ombros.

Havia algumas mesas espalhadas pela loja, cada uma acompanhada por garrafas de Grey Goose na metade e uma lâmpada de plasma. Beauregard conseguiu distinguir algumas figuras da tenebrosidade delirante do ambiente. Encontrou Percy resfolegando, cheirando pó num cartão de crédito. Um garoto da classe dele, Darwin Amberson, atracava-se com Daria McAllister num canto, que usava correntes de ouro e anéis pesados não pertencentes à ela. As garotas usavam rabos de cavalo no topo da cabeça e brincos de argola gigantes e reluzentes. Os garotos repartiram seus cabelos ao meio e enrolaram a franja com brilhantina. Uma música do The Velvet Underground tocava em algum ponto distante.

Beauregard se impressionava com cada vulto que rodeava. Isso até lobrigar um indivíduo singular, que chegava a resplandecer no lusco-fusco. A pele cândida e os olhos rubros como um pôr-do-sol lhe atribuíam características futurísticas. O apelido fazia jus à sua fisionomia. Lionel Haring, albino e esquálido, assemelhava-se a um vampiro sanguinário.

— Beauboy! — exclamou ele ao avistá-lo, abrindo os braços. — E Pink! Há quanto tempo, meu velho. Ouvi falar do seu braço, espero que tudo tenha dado certo. E as pílulas que eu te vendi ontem à noite, tão funcionando bem?

— Que pílulas? — interrogou Raven, diligente.

— Você fala do teu irmão, mas você é controladora que nem ele, hein? — gracejou Floyd, arreganhando um sorriso aflito.

— Você é irmã do Parkie? — interviu Drácula, umedecendo os beiços com a língua escarlate e ofídica. — Ele costumava vir aqui com bastante frequência. Qual é o seu nome, docinho?

— Corta essa, Lionel. — vedou Floyd, apertando Raven contra a lateral do seu corpo. — Ela é uma caloura ainda.

— Raven.

— Como o pássaro?

— É. Como o pássaro.

Drácula a mediu, curioso. Gorgolejou uma garrafa de Bacardi Breezer de abacaxi, direto do gargalo. Raven era um corvo, de asas negras esplendorosas e de gralhar agourento. Vivaz e balsâmica como margaridas frescas. Lionel Haring pôs as presas para fora e parecia estar prestes a abater sua primeira vítima.

— Eu falei pra vocês que colocamos umas tendas no lava-rápido? Funciona como um acampamento para desabrigados. Cinco dólares por noite. E um segredo. — relatou Drácula, enfiando os dedos no furo de calça.

— Um segredo?

— É. Cada coisa que escuto, caras. É sinistro. Eu acho que você deveria dar uma olhada nas tendas, Beauboy. Uma garota, ela me falou sobre você. Não posso contar, é confidencial. — e deu um gole na bebida novamente.

— Antes disso, você não quer me passar essa garrafa? Não posso deixar uma festa sem ter bebido alguma coisa. — solicitou Beauregard.

— É claro, Beauboy. Toma tudo.

Ele segurou a botelha, surpreendendo-se com a sua leveza.

— Pelo Gary. — murmurou antes de deslizar o rum na faringe. — Não tire os olhos da Rae, Floydster. Já volto.

— Eu posso tomar conta de mim mesma, cacete. — resmungou ela, desvencilhando-se de Floyd e rumando na direção da multidão.

Beauregard saiu pela porta de vidro. As nuvens desditosas e purpúreas se apressuravam pelo céu cobalto, como se estivessem fugindo de algo. O chão do lava-rápido era bolorento, com baldes verdes rodeados de mosquitos e mangueiras vazantes. Havia uma quantidade de tendas difícil de calcular, uma vez que algumas se mesclavam em uma e que outras eram pequenas demais para abrigar uma pessoa.

Não havia ninguém ali. Exceto por uma pessoa, que mais se parecia com um alienígena do que com um ser humano. Beauregard viu a sua silhueta encarcerada, encurvada sobre a luz bruxuleante de uma vela. Possuía uma cabeça oval bizarra, que o fez se lembrar de Gary e o seu couro cabeludo luzente. Aproximou-se da tenda e a abriu de rompante.

Olhos separados como os de um tubarão martelo. Uma camiseta do álbum Providence. Um corte na nuca, que antes era oculta por extensas melenas róseas. Qual era o seu nome? Mandy? Mindy? Maya? Mia. A garota misteriosa que engolia guimbas de cigarro, com quem ele supostamente havia passado uma noite — uma noite que fora deletada de sua memória, jogada nas águas do rio Lete.

— Você raspou a sua cabeça! — disse Beauregard, ébrio. — Tá parecendo a Martha Plimpton em Março.

— Como você me encontrou? — questionou em sua voz enfadonha, isenta de qualquer emoção. Ela segurava uma mochila no colo e a abraçava com os braços rijos, como se pensasse que Beauregard pudesse roubá-la.

— Você ainda tá usando a minha camiseta? Droga, deve ser osso usar a mesma coisa por semanas. Tomou um banho ou algo assim?

— Eu tô em fuga. Não tenho tempo pra isso.

— Sabe, eu achava o seu cabelo rosa bem maneiro. Eu tenho um amigo de cabelo rosa. — ele se apertou pela fresta da tenda e sentou em um cobertor, afrontando a garota. — O nome dele é Teddy e ele é foda.

Mia ofegou, como se houvesse escutado seu pior pesadelo. Em questão de segundos, no entanto, voltou ao seu estado impassível e esfíngico.

— Beauregard, eu tenho que te falar uma coisa.

Tinha algo em seu olhar que fedia a picles em conserva e corpos em decomposição. Ela passou o dedo indicador pela vela, fazendo a diminuta chama tremular.

— Você não tá grávida, né?

— Deus, não. — ela rolou os olhos azuis congelantes. — Eu tô assustada.

Mia era uma caveira com a luz áurea ressaltando os côncavos de seu rosto. Ele descobriu minúcias passadas despercebidas em seu primeiro encontro; o buço claro acima dos lábios, a falha na sobrancelha esquerda, as juntas ensanguentadas de seus punhos.

— Por quê?

— Eu sei quem é.

— Quem é o quê?

Seus orbes rutilantes se perolaram com lágrimas. Ela apagou a vela trêmula com um sopro, afundando a tenda num negrume desesperançado. Beauregard foi puxado pela gola da camiseta e fagocitado por uma criatura faminta, insaciável. Uma boca voraz e esbraseante o engolia. Sua cabeça formigava, seus músculos descolavam de seus ossos, seu sangue estagnou. Em Mia, provou o sabor amargo da miséria e do ácido gástrico. Beauregard afagou sua careca oleosa, com fios de cabelo loiros milimétricos.

Aqueles cinco segundos delirantes se esgotaram com o abrir repentino da tenda. Beauregard se encontrava em estado de torpor e se deixou ser levado por braços franzinos. Mia abraçava a mochila e esfregava as costas da mão contra os lábios, orvalhados de saliva acrimoniosa.

— Quando a gente vai se ver de novo? — indagou ele, pouco antes de ter o corpo puxado para fora da tenda.

— Nos seus sonhos, otário.

Floyd e Raven eram os braços que o afastavam de Mia. Ele jogou a cabeça para trás e admirou a lua rechonchuda maquiando a noite com seu manto vaporoso branco. Os amigos entraram no carro; Floyd na direção, Beauregard deitado no colo de Raven. Ela sangrava, sua testa expelia aquele líquido rubro e viscoso, e escorria pela sua face. Tentava estancá-lo com a manga da jaqueta. O motor do conversível rugiu e o Corvair começou a se movimentar, desalento, entre o proletariado que mais parecia um aglomerado de mortos-vivos com maletas de merenda.

— Rae, o que aconteceu a sua cara? O Park vai me matar. — ciciou ele, tocando na testa da amiga.

— Uma briga. Depois te conto tudo. Você tomou alguma coisa? Parece que tá chapado.

Beauregard negou. Ele estava bêbado, seus miolos rebentavam e pontinhos negros estorvavam sua visão. A garrafa de Bacardi Breezer não era o suficiente para o inebriar; Beauregard ficava chapado com o mero ato de viver. Bêbado de alegria, bêbado de paixão, bêbado de fúria.

Ele teria que aproveitar sua estadia naquela cidadela, antes que se tornasse um empresário de terno pomposo e cabelos compridos, emanando um odor de colônia Diesel e charutos cubanos, com os dedos calejados de tanto assinarem papeladas e digitarem no teclado de um Apple Macintosh SE/30. Todos estavam fadados a algo. Gary estava condenado à morte, Finn ao fracasso e Beauregard à vida pacata e razoável que tanto menosprezava.


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Notas finais do capítulo

qualquer erro de ortografia, avisem-me.
espero que tenham gostado, mesmo que tudo ainda esteja confuso.
comentem o que acharam, é muito importante para mim