Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 6
Raven & Park


Notas iniciais do capítulo

oi gente!! corri pra fazer esse capítulo porque recebi uma recomendação muito linda da Violet :) mulher, tu não sabe o quanto eu fiquei feliz depois daquilo. acho que nunca vou superar as coisas que você escreveu lá, tipo eu tava mó emocionada e tal....
como tem prova de matemática vindo aí e eu sou de humanas, não tive tempo de corrigir o texto. desculpa aí galera :(
mesmo assim, comentem o que acharam :)
para os que nunca estiveram por aqui, acompanhem :) favoritem também :) ou recomendem como a Violet fez pra deixar uma pessoa com a autoestima lá em cima kk
espero que gostem



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Raven e Park não estavam preparados para a escola.

Ela pôs brincos de madrepérola e colocou uma calça que não era lavada há dias. Ele acordou mais cedo para tentar pôr lentes de contato nos olhos japoneses, contudo era inevitável piscar continuamente quando aquele círculo transparente e gelatinoso tocava em sua córnea. Raven usava os óculos escuros em forma de coração no topo da cabeça e Park se contentava com seus óculos de aros de tartaruga.

Eles se encararam por entre os pães e as caixas de suco sobre a mesa do café-da-manhã. Não trocaram uma palavra sequer desde a festa de Allison Foster, embora terem feito comentários engraçados durante o Saturday Night Live ou breves diálogos não muito significativos. Park continuava a passar lentamente pelo seu quarto, à noite, para se certificar de que ela estava dormindo ou se havia algum intruso em sua cama (ultimamente, ele a encontrava escutando o rádio sob o travesseiro). Raven continuava a ouvir suas conversas ao telefone (encostava a orelha na porta do quarto do irmão e pegava fragmentos de frases como ‘‘Escutei a música que você sugeriu’’ ou ‘‘Sim, tô bem’’).

— Como você vai pagar a cirurgia do Floyd? — questionou Raven, levando a caneca de leite à boca.

— Com dinheiro. Me passa a manteiga.

— Não, Park. Eu tô falando sério. A gente não tem dinheiro nem pra comprar aspirina, imagina isso.

Park suspirou, estressado.

— Não quero falar sobre isso. Me passa a manteiga.

— Não. Eu só vou passar se você me falar. — cruzou os braços e apoiou as costas na cadeira.

— Uau, Raven. Que chantagista. — esticou seu braço sobre a mesa para alcançar o pote de manteiga, porém acabou derrubando uma caixa de suco aberta. O líquido roxo jorrou pelo gargalo e se espalhou pelo chão. — Ah merda. Faça alguma coisa!

Ela continuou a olhar o suco escorrendo até que a caixa estivesse inteiramente vazia.

— Nós não conseguimos nem pagar direito pelas coisas que tão nessa mesa. — afirmou por fim, mordiscando sua torrada.

— Eu tenho uma namorada rica, ok? Esse é o segredo. — revirou os olhos e se levantou para pegar um pano e um esfregão.

— Ei, Park! — exclamou de boca cheia. — Você nunca me disse que tinha uma namorada.

Ele entrou na despensa e a sra. Wakahisa apareceu na cozinha, chacoalhando as suas formas rotundas e com o cabelo preso numa touca de banho. Abraçava seus próprios braços rechonchudos, cobertos por uma malha de lã rosa. Sentou-se ao lado de Raven e serviu-se com uma xícara de chá.

— O que é isso no chão? — indagou, levemente irritada.

— Mãe, o Park tem uma namorada e não contou pra gente.

— É verdade, meu pudim de coco? — perguntou num tom de voz alto para que o filho pudesse ouvi-la.

Park retornou com um esfregão e com uma expressão aborrecida. O pano encardido absorveu o suco derramado. Ele concordou com a cabeça vagarosamente.

— E quando nós vamos conhecê-la?

— Não sei, mãe. Ela é mais velha. Já trabalha e tudo mais.

A sra. Wakahisa pôs a mão sobre o peito estufado de orgulho. Terminou seu chá e se levantou da mesa.

— Oh, Parkie, quem diria, hein? — ela pegou dois sacos Ziploc do armário sobre a pia. — Ela é rica?

— Mãe! — reprimiu Raven. — Isso é pergunta que se faça?

— É que eu estou tão feliz pelo meu filhote! — apertou as bochechas de Park, que ainda limpava o piso. — De lanche você vai querer Oreo ou Red Vines?

— Tanto faz, mãe.

— Red Vines! — exclamou Raven.

A sra. Wakahisa jogou os doces vermelhos dentro dos sacos plásticos. Olhou para a mesa do café da manhã e pôs a mão na testa, subitamente abespinhada.

— Mas que droga! O pão integral acabou. Rae, por que você não dá uma passada na mercearia do Floyd depois da escola?

— Eu vou. — ofereceu-se Park.

— Não precisa. Quero ver se ele tá bem ou se precisa de alguma coisa.

— Bom, é melhor vocês se apressarem. O ônibus já deve estar chegando no ponto.

A sra. Wakahisa deu os sacos para cada um e os dois partiram, com as mochilas Ogio Shifter pendendo nos ombros. Raven e Park caminharam lado a lado até o conjunto de adolescentes reunidos em volta de um poste. Seguravam skates debaixo dos braços e tinham flanelas amarradas nas cinturas. As garotas usavam fivelas em forma de flores nos cabelos alisados e os garotos vestiam viseiras coloridas. Beauregard tentava escalar o poste e Allison Foster o fotografava de todos os ângulos. Finn estava sentado no meio-fio, fingindo que lia um livro e exibindo um band-aid sobre a ponte do nariz. Teddy e Gretel descansavam sob a sombra de uma palmeira, abraçados e dividindo um cigarro Viceroy.

— Espera aí, você disse que deu um tapa no Finn, não um soco no nariz. — murmurou Park.

— Isso não foi eu que causei. — encarou o amigo com compaixão. — Vou falar com ele.

Park ia pedir para que ela não o deixasse sozinho, no entanto sua irmã continuou andando e não olhou para trás.

— Ei, Finn. — cutucou-o no ombro.

Ele ergueu sua cabeça e franziu as sobrancelhas. Naquele momento, seus olhos azuis refletiram a luz do sol e ela se assustou ao perceber que nunca pareceram tão cerúleos e olímpicos antes. Finn se pôs de pé e discretamente limpou a poeira do traseiro.

— Oi, Rae. — fez uma pausa para colocar a camiseta para dentro das calças. — Me desculpa pelas coisas que eu disse. Juro que me arrependi depois.

— Tá tudo bem. Eu senti sua falta nesses dias.

— É. — sorriu. — Foram os dez dias mais tristes da minha vida.

Ele fez menção de se inclinar, porém hesitou. Em seguida, de modo ligeiro e recatado, roçou seus lábios quentes na bochecha direita dela. Raven sentiu a sua pele arder naquela região, como se tivesse sido marcada com ferro em brasa.

— Bom, eu... — tartamudeou ele. — Soube do Floyd. Ele tá bem?

— Sim, eu acho que sim. Não vi ele até agora. Tava no hospital se recuperando até ontem à tarde.

O ônibus chegou ao ponto com um rugido e a calota de um pneu caiu. O motorista abriu a porta e grunhiu para que entrassem rápido. Raven foi empurrada por uma massa de adolescentes apressados, que exalavam um odor de suor com spray de cabelo. Acabou se sentando ao lado de Allison, que segurava várias polaroids recém imprimidas.

— O Beau é tão engraçado!

Raven espiou as fotos — todas haviam saído borradas.

— Ele estragou a sua festa, Allison. Que desperdício de papel.

— Seria estranho se eu estivesse a fim dele? Não sei, ele parece ser bem... Espirituoso. — ela arregalou os olhos repentinamente. — E se você tentasse juntar a gente?

— Eu, não! O Beauregard não gosta das calouras.

— É, mas você é uma exceção! Vocês são amigos; outro dia eu vi vocês andando de skate. Não vai me dizer que você também tem uma queda por ele.

Raven agarrou sua mochila e se levantou. Cambaleou no corredor estreito do ônibus, já em movimento, e acidentalmente caiu no colo de algum garoto do segundo ano. Desculpou-se e encontrou Park, sentado em um dos últimos assentos, olhando para a janela e guardando o lugar ao seu lado com o casaco.

— Deixa eu sentar aqui, vai. — suplicou ela em voz baixa.

Park jogou as suas coisas no chão, sem tirar os olhos dos rastros figadais que os pneus haviam deixado no gramado.

— Eu gosto da Alli... — disse, tentando puxar papo. — Mas ela é tão irritante algumas vezes.

— Nem quero saber o que aquela louca aprontou.

Park empurrou os óculos para cima. Colheu um maço de American Spirit e colocou um cigarro entre os dentes. Tirou um isqueiro Cartier de prata do bolso da camiseta de botões, nele entalhado um anjo e a palavra ‘‘Eros’’ escrita em letras cursivas e sedutoras.

— A sua namorada também te deu isso? — apontou para o isqueiro.

— Sim. — falou enquanto acendia o cigarro. — Fala baixo, tá? Eu não quero que ninguém saiba.

— Por que não? Como vocês se conheceram?

— Se eu te deixar dar umas tragadas, você cala a boca por uma semana?

— Uma semana? Um dia.

— Dez tragadas, três dias.

— Dez tragadas, doze horas.

Ele soltou uma risada de escárnio. Ela retraiu os músculos do rosto.

— Dez tragadas, doze horas. Se não eu chamo o Beauregard aqui e conto pra ele.

— Merda, Raven! — passou o cigarro para ela com desgosto.

Assistiu sua irmã sorver a fumaça para dentro dos pulmões — aqueles pulmõezinhos vermelhos, jovens e saudáveis — e soltando-a pelo nariz, de olhos fechados.

— Adoro esses, maninho.

Ele contou pontualmente as dez tragadas e quando ela estava levando o cigarro à boca pela décima primeira vez, agarrou o rolinho dos seus dedos de maneira brusca.

— Chega. — falou antes de puxar a fumaça e expeli-la em forma de círculos.

— Me ensina a fazer isso, por favor! Que massa, cara.

— Claro que não. Fumar não é legal.

— Você que não é legal. E ainda por cima é hipócrita. — estapeou a mão do irmão, que sem querer largou a guimba no chão.

— Porra, Raven, você tá muito chata. Vai sentar com a Allison de novo.

Ela riu enquanto se recusava a se levantar. Ele puxou uma mecha de cabelo da irmã, que exclamou e correspondeu com uma cotovelada em seu queixo. Park apertou as extremidades do seu quadril — locais sensíveis do seu corpo que a faziam dar um chilique se pressionados — e Raven contingentemente acertou um chute em seu estômago. A cabeça vermelha de Beauregard apareceu sobre o encosto dos assentos.

— Cara, se vocês não fossem irmãos, eu ia achar que vocês tavam dando uns amassos aí.

Park o empurrou com uma risada. Afrouxou suas mãos ao redor da irmã e ela se encolheu no banco.

— Ah, Parkie... — suspirou, apoiando a cabeça em seu peito.

***


Park cabulou as últimas duas aulas para ficar vagabundeando pelos arredores da escola. Não suportava o ambiente da sala de aula; os ventiladores desmazelados assoprando um vento quente em sua nuca, as lâmpadas fluorescentes ofuscando a sua visão, as bolinhas de papel umedecidas com cuspe voando diante de seu rosto, as risadas atrás de suas costas, a voz dos professores tentando abafá-las. Preferia admirar os troncos esguios das palmeiras e arrancar tufos de grama amarela.

Acendeu o isqueiro inúmeras vezes. A chama parecia remeter à sua mente a imagem de candelabros, quadros comprados em leilões emoldurados com ouro, lençóis de seda amassados, taças de cosmopolitan e boates frequentadas por pessoas ricas. Park se sentiu culpado por não ter contado seu segredo à ninguém. Continuou a vagar pelo gramado até escutar algumas folhas se estalarem ao longe.

Pensou que fosse algum professor fazendo um intervalo nas aulas e se escondeu atrás de uma palmeira (mesmo que fosse magro, o caule fino da árvore não conseguia o ocultar completamente).

— Park, é você aí?

Ele espiou cautelosamente o indivíduo. Era Floyd, com o uniforme de Educação Física e meias brancas subidas até os joelhos. O antebraço direito estava enrolado em uma gaze. Sua franja áurea estava grudada em sua testa e seus lábios estavam avermelhados, como se tivesse acabado de beber água gelada.

— Hã... É. — retrucou meio sem jeito.

— Eu caí fora da aula. Não tava a fim de jogar futebol. Esporte é pra esses caretas riquinhos.

Park saiu detrás da palmeira e se aproximou de Floyd.

— Obrigado pela cirurgia. — agradeceu ele. — É bem da hora, às vezes eu consigo sentir as minhas veias.

— Ah, é? — respondeu desinteressado. Já previa a pergunta que se seguiria.

— Como arranjou a grana?

Park enfiou as mãos no bolso. Seus dedos enlaçaram o isqueiro de prata e acariciaram sua superfície lisa enquanto ele bolava uma resposta.

— Eu economizei. Sete anos de mesada, né?

— Ah sim. — concordou Floyd, pouco convencido. — Quer dar uma volta? Logo logo, a sra. Kruger vai sair pra fumar uns baseados e a gente vai ser pego.

— Hã, claro. Vamo pro estacionamento. Tenho uns cigarros.

Park havia deixado o Dodge na garagem de sua casa. A gasolina era cara e ele não queria gastá-la em vão. Portanto, ao invés de entrarem em um carro, esconderam-se atrás da caminhonete do prof. McDonald — rumores afirmavam que havia a roubado de um ferro velho.

— Quer? — perguntou Park, com um cigarro pendurado na boca.

— Não, valeu. A enfermeira disse que fumar não é legal quando se tem gangrena.

— Entendi.

Ambos emudeceram por alguns instantes desagradáveis. Floyd resvalou sua perna na dele sem querer e pediu desculpas. O rosto de Park ficou purpúreo.

— Ei, cara. — iniciou Floyd, apreensivo. — Posso te perguntar um negócio?

— O quê?

— É sobre a sua irmã.

— O que tem a Rae?

— E se ela começasse a namorar um moleque? — e acrescentou logo em seguida: — Tipo o Finn.

— Mas o Finn não gosta dela.

— Hipoteticamente falando. Se ela tivesse de rolo com um amigo seu, é o que eu quero dizer.

Park ergueu uma sobrancelha para ele.

— Você tá a fim da minha irmã? — indagou inesperadamente ciumento.

— Eu? — apontou para o seu peito. — Claro que não, que bobagem, ela é tipo uma versão feminina sua... Esquisitona, maior baranga...

— Ei. — repreendeu-o. — Também não é assim. Pega leve.

— É, tá, foi mal, não foi o que eu pretendia falar. Não diz nada disso pra ela, ok? Eu gosto muito da Rae. Como amigo, obviamente. Só queria te perguntar se você ficaria muito puto se ela começasse a namorar com alguém.

— Se fosse alguém como o Finn, — fez uma pausa para tragar o cigarro. — eu ficaria de boa.

— Sério? — sorriu de lado.

— É. — estranhou o comportamento de Floyd. — E não é pelo fato dele ser meu parceiro. O Finn é um moleque maneiro, sabe? Não se mete com bebida, nem nada. E eu teria certeza de que ele nunca, nunquinha mesmo, ia obrigar a Rae a fazer alguma coisa que ela não quisesse, se é que você me entende.

Floyd balbuciou alguma coisa num tom desanimado e tomou o cigarro das mãos de Park.

— Hã, cara, você não acabou de dizer que...

— Cala a boca. — retorquiu mal-humorado, sugando o fumo com raiva.

***


Raven colocou seus óculos de proteção. Vestia um jaleco branco, meio encardido nas mangas e com papéis de balas esquecidos dentro dos bolsos. O interior de seu armário estava preenchido por retratos do Christian Slater, galhardetes do logo da escola, garrafas de Evian mornas, lixas de unha e peças de Shakespeare. Pegou o livro de Química e fechou o armário. Ao se virar, deparou-se com um Teddy Turner de touca e calças folgadas, com um sorriso sacana no rosto.

— O Beau me disse que você é maneira.

Ela ajeitou os óculos no rosto. Sentiu-se suada e desarrumada perto dele, que irradiava uma graça imperial, mesmo vestido numa jaqueta repleta de remendos e comprada no brechó da sra. Gilligan. Teddy costumava se gabar, afirmando que esta pertencera à um homem do exército e que era possível até mesmo notar um buraco aberto por uma bala, localizado num ponto onde nem ele conseguia indicar.

— Ele disse, é? — encostou sua cabeça no armário.

— É. — pôs as mãos no bolso. — Você sabe por que o Park parou de andar com a gente?

— Estudos. Pelo menos é o que ele diz. — segurou-se para não mencionar sua nova namorada.

— Sei. Você tá a fim de dar um rolê de carro com a gente? Eu e o Gary.

— Vocês vão brincar de baseball de caixa de correios?

— Qual é, Rae. Cadê o seu senso de originalidade?

— O que é que vocês vão fazer?

— Surpresa. — ergueu as sobrancelhas e alargou o sorriso.

Raven revistou o corredor com os olhos. Num movimento rápido, abriu o armário e jogou o material de laboratório sem o mínimo cuidado. Teddy riu. Apontava para os óculos de proteção, ainda cobrindo boa parte do seu rosto.

— Deixa eu experimentar? — ela permitiu, tirou e entregou a ele, que pôs no rosto. — Ficou bom?

E o pior era que ficava.

Os dois andavam na direção do fim do corredor com uma displicência estudada, até que a porta do laboratório se abriu e Finn quase trombou com eles. Analisou os óculos de proteção com Teddy e o jaleco de Raven. Cruzou os braços sobre o peito.

— O Frank me mandou te procurar. — falou.

Finn era tão íntimo dos professores que se sentia autorizado a chamá-los pelo primeiro nome.

— Diga a ele que eu tô na enfermaria, ou algo do tipo.

— Ei, Finny, que tal a gente esquecer as nossas desavenças e matar a última aula? Sabe, como um grupo de amigos. Você e a Rae Rae como os calouros descolados, e eu e o Gary como os veteranos inconsequentes.

Finn ponderou sobre o chamado por alguns segundos. Seu pé direito batia contra o piso (Raven sabia que era um tique nervoso). Apertou a ponte do nariz, coberta por um band-aid velho e encarou Teddy com ressentimento. No final das contas, acabou concordando, com a desculpa que só estava lá para vigiar Raven. Ela sabia, no entanto, que qualquer garoto ou garota se mataria para cabular aulas com Teddy Turner, e que esta era uma daquelas oportunidades que só apareciam uma vez na vida.

Os três saíram da escola em estado de alerta. Gary Austin aguardava por eles dentro do Chevy 500, sentado no banco de trás. Contemplava a paisagem suburbana com uma expressão carrancuda, parecendo um presidiário com a cabeça raspada e a camiseta de botões laranja.

— Esperou muito tempo, margarida? — provocou Teddy, tomando a direção.

— Se fode, Ted.

Finn ocupou o banco da frente e Raven entrou no carro de forma cautelosa, espremendo-se na parte de trás com Gary. Prendeu a respiração discretamente. O automóvel cheirava a fezes de cão.

Teddy olhou para o amigo pelo espelho retrovisor central. Havia uma fagulha de ódio faiscando dentro de suas pupilas, que desejava queimar o seu rosto viril, digno de um Casanova. E então Teddy entendeu que Gary sabia do seu caso com Daria. Porém, não quis se entregar e deu uma risada ensaiada.

— Adivinha o que a gente vai fazer?

— Eu não ligo.

— Vai levantar os seus ânimos, Gary, tô te falando. Dá um chute, Rae!

— Não sei. A julgar pelo fedor, acho que vamos tacar merda de cachorro nas casas. — deduziu ela.

— Quase! — Teddy estralou os dedos e deu partida no carro.

O Chevy saiu do estacionamento com um rugido, criando marcas de borracha queimada no chão esburacado. Teddy pegou uma fita cassete do porta-luvas e a encaixou no toca-fitas, que a engoliu e começou a reproduzir um som estridente, semelhante a cordas de guitarra sendo arranhadas.

— Conhece essa música, Finny?

Finn franziu o semblante. Não era um apreciador de rock. Raven avançou entre os bancos da frente e aumentou o volume.

— The Stooges! — berrou.

— É isso aí, gatinha.

Teddy lambeu a sua bochecha salgada, deixando-a embebida com a saliva quente. Raven retornou ao seu assento, ruborizando violentamente. Finn repousou suas mãos sobre os joelhos, apreensivo e novamente se sentindo inferiorizado à ela.

O carro corria pelas ruas sinuosamente, dando alguns trancos e espalhando uma fumaça preta por todos os lados. Raven pôs a cabeça para fora da janela, com os cabelos esvoaçando desvairadamente como tentáculos de um polvo. Avistou uma dupla de veteranas rodeadas por cinco jogadores de futebol. Elas, com saias de tênis plissadas e rabos de cavalo no topo da cabeça, e eles, exibidos em suas jaquetas do time e com os topetes empapados de gel.

— Olha só pros caretas. — resmungou Teddy, ultrapassando-os com rapidez.

Os caretas estavam acomodados na caçamba de uma picape, escutando uma música ruim do B-52's no volume máximo. Comemoravam amistosamente a volta às aulas, cada um com uma lata de cerveja. Tinham peles claras cobertas de filtro solar, dentes brancos e lustrosos, e cílios longos que se embaraçavam quando piscavam. Eram tão imaculados e transcendentes quanto os apóstolos de Cristo.

— Sabe o que me animaria, Ted? Tacar merda de cão naqueles caretas.

Teddy encostou o carro no gramado de uma casa. Pulou para fora do Chevy, abriu o porta malas e retornou com duas sacolas penduradas nos braços.

— Cada um pega um punhado de bosta.

Raven mergulhou sua mão numa sacola, hesitante. Gary escorregou para o seu lado e logo, os dois estavam inclinados sobre a janela, com as mãos erguidas. Teddy começou a dar ré e Finn despontava no teto solar, içando o punho fechado. À medida que o som alegre se aproximava, o carro diminuía a velocidade.

— O treinador disse que vamos ter jaquetas com mangas de couro no ano que vem. — gabava-se um dos jogadores momentos antes de notarem a repentina aparição dos esquisitões.

Os caretas fitaram-nos como se fossem crias de Lúcifer. Tiveram tempo de fechar os olhos, todavia suas bocas permaneceram abertas e seus rostos celestiais ficaram desprotegidos enquanto as fezes voavam em sua direção. Raven viu a sua porção atingir uma garota na cabeça. Limpou a mão suja na porta do carro.

— Queimem na detenção! — bradou um dos jogadores.

— Eu vou chamar a polícia. É impossível que esses esquisitões saiam imunes!

Teddy cravou as unhas no volante de couro e afundou o pé direito no acelerador. Virou-se para Gary e trocaram sorrisos cúmplices, como se fossem comparsas de crime.

— Burguesinhos da porra! — gritou Finn do teto solar, mostrando seu dedo do meio para os seus iguais.

— Cara, eu nunca vou entender esse pessoal republicano... — suspirou Teddy, parando no semáforo.

Os quatro se largaram nos assentos. A música dos Stooges terminou e foi substituída por um silêncio pacífico. Teddy não deveria ter gravado outra música no cassete. Gary brincava com seu canivete, abrindo furos na palma da mão e salpicos de sangue brotavam de sua pele. Raven olhou de relance para o perfil de Finn, que tentava conter seu sorriso de satisfação. O rosto dele fora esculpido com formosura. Ela ainda se assustava com o primor de suas formas; desde o nariz proeminente até os cotovelos pontudos e ressecados. Finn a flagrou num momento de admiração e sorriu. Raven, embaraçada, desviou o olhar.

— Vocês tão escutando isso? — questionou Teddy.

— Não.

— Ah, sim. Parece até aquele som terrível do B-52's.

Raven se virou para trás. A picape avançava pela rua com ferocidade.Uma lata de cerveja atingiu a placa do Chevy.

— Merda, eles tão vindo atrás da gente, Teddy. — desesperou-se Raven.

— Que foi? Você tá com medo de uns caretas? — desdenhou ele, espiando-os pelo espelho retrovisor central.

— Cara, eles tão jogando cerveja na gente como se fosse uma coisa ruim.

Uma garrafa de vinho colidiu contra o vidro de trás e o estilhaçou. Raven soltou um berro e Gary ergueu o canivete.

— Rae, vem pra cá. — Finn a agarrou pela cintura e a puxou para frente. Ela caiu sobre as suas pernas e ele a segurou como se fosse uma criança.

Gary pegou a garrafa e saiu do carro, girando o canivete entre os dedos. Esquivou-se das latas de cerveja que voavam em sua direção e furou os quatro pneus da picape com a ponta afiada da faquinha.

— Valeu, imbecis. — agitou a garrafa no ar.

O motorista desceu do veículo com um bastão de baseball.

— Merda, Gary, corre! — berrou Teddy.

— Tá bom, cara, tá bom. Leva a Raven e o Finn pra casa que eu me viro.

Teddy mirou o crucifixo pendurado no retrovisor antes de acelerar. Eles se afastaram e a picape amarela diminuiu de tamanho, assim como Gary, que sumia atrás do muro de um casarão. Finn a segurava pelos passadores da calça jeans com a mão suja de fezes de cachorro. Entretanto, ela não se importou.

— Esse foi literalmente o melhor primeiro dia de aula da minha vida. — Teddy socou a buzina com entusiasmo.

— Hã, ei, Ted. Cadê a Gretel?

Teddy tinha seus olhos vidrados no horizonte. À medida que se afastavam da parte rica do bairro, as casas iam ficando menores e mais rústicas, e as ruas ficavam mais estreitas e cheias de lombadas.

— Quem? — indagou Teddy, parando diante da casa dos Wakahisa. — Vai, chispem daí que eu quero seguir aqueles caretas.

Finn abriu a porta do carro, meio desconfiado. Teddy agarrou o braço de Raven.

— Você viu como eles ficaram putos com a gente? Não foi maneiro?

— Foi. Foi, sim. — retrucou ela, tentando se desvencilhar dos seus dedos.

— Ah, Rae, eu vou pegar aqueles caretinhas antes mesmo daquele assassino.

— Que assassino?

Teddy segurou o volante com força. Encarou-a como se quase não a reconhecesse.

— Que assassino? — ele a imitou. — Sai, sai, vaza daqui.

Raven o obedeceu. Finn apertou os seus ombros com firmeza. O sol do meio-dia queimava as suas nucas. Ela arregaçou as mangas do jaleco e ele arrancou o band-aid do nariz.

— Vamos lavar as mãos.

Eles contornaram a casa, chegando ao quintal que servia como um depósito de lixo. Havia lascas de espelho, almofadas rasgadas, lâmpadas quebradas, potes de tinta velhos, pinturas que não deram certo, poltronas com estofado aparecendo e caixas de papelão vazias. Raven girou uma torneira grudada a parede externa.

— Por que não tá indo? Deve tá emperrada... A menos que tenha alguém usando água.

— A sua mãe não tá naquele culto wicca?

— Tem. E o Park deve tá na escola. — refletiu por alguns instantes. — Você acha que um ladrão tomaria um banho se invadisse uma casa?

— Nunca se sabe. — e deu de ombros.

Os dois entraram na casa e subiram as escadas, tentando não produzir tanto barulho. Podia se ouvir os ruídos estranhos do chuveiro do corredor. Raven escutou atentamente a água escorrer pelo ralo e uma voz masculina cantarolando alguma música do The Cure.

Finn arrombou a porta do banheiro com um chute. Uma brisa de vapor os revestiu (cheirava a sabonete de baunilha). Park estava de costas, nu, com as nádegas alvas viradas para os dois. Apavorou-se quando viu a irmã e o amigo, e cobriu o pênis com as duas mãos. Tinha uma escova de dentes pendurada em sua boca.

— Ah, cara, se cobre com uma toalha, por favor. — Finn fechou os olhos.

— Foi mal, foi mal. Merda, Raven, achava que você ia chegar mais tarde. Você... Você tinha aula de música depois... Ah, mas que merda, por que o Finn tá aqui? Ele não devia tá aqui.

— Ai, é a sua namorada no chuveiro? — sussurrou ela para o irmão.

Park relutou em responder. Uma voz grave preencheu o ambiente:

— Com quem que você tá falando, Park?

— É um amigo, é um amigo... — explicou para Raven, num tom baixo.

— Pode me passar o xampu, por favor? Por que você não entra aqui comigo? Tá geladinho. — a voz tornou a soar, desta vez mais insistente.

Park arregalou os olhos nipônicos e tirou a escova da boca.

— Você tá vestindo alguma coisa agora? — questionou Finn, abrindo um olho.

— É um garoto aí contigo?

A voz ganhou um corpo. Um homem jovem, na casa dos vinte e cinco anos, abriu a cortina do chuveiro e caminhou até eles. Os cabelos rúbeos estavam molhados e escorriam pela testa. Sua pele pálida e seus olhos cor de mel eram muito similares com os de algum conhecido. Beauregard. O homem era muito parecido com Beauregard.

— Oh, olá, Raven. — cumprimentou-a casualmente, como se não estivesse despido diante dela. — Oi, Finn. Não vejo vocês desde que tinham oito anos! Puxa, vocês... Vocês cresceram, né?

Era o irmão mais velho de Beauregard, Benedict. Ele abraçou os ombros desnudos de Park, num gesto quase possessivo.

— Esse é o Ben. Acho que vocês já se conhecem. — suspirou seu irmão. — Ele é a minha namorada.


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