Dazed And Confused escrita por venus


Capítulo 3
Beau




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— Beau. — ele sentiu alguém cutucar seu ombro com a ponta do dedo frio e úmido. — Beau.

Beauregard abriu os olhos com dificuldade. Percebeu que estava em casa. Suas pálpebras pesavam e remelas contornavam seus cílios, mas ele arregalou as orbes cor de mel quando viu aquela beldade sobre dele, montada em sua cintura. Seus cabelos eram cor-de-rosa e os fios grossos estavam escurecidos na raíz pela oleosidade. As narinas translúcidas se dilatavam e se contraíam; ela respirava com dificuldade e roía as unhas da mão direita.

— Quem é você? — ele esticou o braço na direção de seu rosto, porém ela desviou agilmente, e atrás dela, estava um homem hispânico vestido com um uniforme azul cheio de distintivos.

— Ele quer nos interrogar. — disse a garota de cabelo rosa.

— Sobre o quê? — indagou ele, arrogante.

— Sobre ontem à noite.

— Tá bom. — sentou-se da cama e encarou o policial com um olhar desafiador. — Manda aí.

O policial cruzou os braços peludos e limpou a garganta.

— Seria melhor se todos nós conversássemos na sala de jantar. — ele sacou um bloco de notas do bolso. — Seus pais estão em casa?

Beauregard imaginou seu pai olhando pela janela circular de um avião, sentado na cadeira de couro espaçosa da primeira classe e segurando um folheto com o mapa de Budapeste. Devaneou que, esporadicamente, ele visse os rostos de seus filhos e de sua mulher entalhados nas nuvens níveas do céu limpo e azul, e subitamente decidisse voltar para casa. Pensou em sua mãe, que à esta hora já deveria estar saindo do quarto de um hotel luxuoso, puxando uma mala de rodinhas atrás de si e abotoando sua camiseta Gucci, deixando um homem desconhecido nu sob os lençóis.

Todavia, ele só disse:

— Não.

— Algum maior de idade?

Beauregard lembrou de seu irmão, Benedict, que já era sócio de seu pai na empresa da família e trabalhava arduamente para conseguir comprar seu apartamento em Nova Iorque, que queria dividir com a sua namorada no ano seguinte. Ben passava muito tempo fora de casa e sua desculpa era que estava na casa de sua garota, e a sra. Godfrey ficava doida para conhecê-la, porém Benedict dizia: ‘‘Ainda não é a hora, mamãe’’.

— Não.

— Ok, então, eu quero interrogar um por um. — anunciou o homem, autoritário. — E não tentem fugir, porque já tenho o nome e o endereço de vocês anotados. Ela me passou tudo. — ele apontou para a garota de cabelo rosa, e as pessoas que estavam deitadas no chão, sonolentas, bufaram e xingaram-na silenciosamente, porém Beau não conseguiu sentir nada. Só uma estranha e férvida paixão, daquelas que são passageiras, porém intensas.

O policial deixou o suntuoso quarto e todos os adolescentes aborrecidos se botaram de pé.

— Como é que a gente veio parar aqui, meu? — perguntou um garoto do primeiro ano antes de se trancar no banheiro.

— A polícia chegou no Percy e a gente se mandou, ué.

— Mas o que é que eles querem agora? — questionou Gary Austin, coçando a careca.

— Sei lá, eu não fiquei ali parado pra ver o que eles queriam. Provavelmente ver se a gente tinha bagulho.

— E você? — Gary virou bruscamente para a garota. — Nem te conheço, esquisita, como é que tu sabe onde eu moro?

Ela pegou uma guimba de cigarro do cinzeiro e engoliu. Seus olhos, meramente separados como os de um tubarão martelo, piscaram para ele em resposta. Ela sabia de tudo.

— Mia. — murmurou.

— Desculpe? — perguntou Gary, impaciente. O piercing no septo lembrava a Beau um touro sendo atiçado.

— Meu nome.

— Mia? — ergueu as sobrancelhas. Então virou-se para Beau com um sorriso zombeteiro e sussurrou: — Que tosco.

— Eu achei exótico. — retrucou.

— Você dormiu com ela, não foi?

— Nem sei, cara. — e deu uma risada rouca. — Mas eu espero que sim.

Ela estava usando sua camiseta do álbum Daydream Nation e uma cueca samba-canção com estampa de notas de dólares — que ele tinha quase certeza de que não era dele. Mia sorria, exibindo os dentes acavalados e a gengiva vermelha brilhante.

— De onde você vem? — perguntou ele.

— De longe. Mas eu já saí de casa faz tempo. E você?

— Esse é o meu palácio. — ele abriu os braços, ostentando o piso de mármore branco, o lustre de cristais que produzia arco-íris nas paredes se a luz do sol fosse nele refletida, as cortinas de veludo pesadas e a paisagem de nuvens esparsas emoldurada pela janela aberta.

— Legal. — ela catou mais uma guimba do cinzeiro e botou na língua. Contudo, Beauregard delicadamente tirou-a de sua boca.

— Fumar já não faz bem. Imagine engolir um cigarro.

— Tanto faz. — ela revirou os olhos e deu as costas à ele.

— Você é meio difícil, não?

— Isso porque você não se lembra de ontem à noite. — ela sorriu.

E ela lhe contou sobre como eles deitaram na grama do jardim de inverno e ligaram os sprinklers e conversaram sobre serem filhos do cosmo e sobre Deus e as estrelas. Disse que ele lhe confidenciou todos os seus segredos e ela falou que revelou muitas coisas sobre si mesma, porém não ousou repeti-las novamente. Jogaram xadrez, ela venceu a partida e ele se revoltou e derrubou o tabuleiro no chão. Os dois escutaram o álbum The Wall inteiro enquanto discutiam sobre suas vidas desafortunadas — sobre os casos de sua mãe, sobre as constantes viagens de seu pai e sobre os problemas que Mia tinha em sua cidade natal — e ela falou que foi naquele instante que começou a amá-lo, e amou-o na cama, amou-o por inteiro, até amanhecer e a Lua levar seu amor com ela.

— Conta mais. — pediu ele, tentando segurar suas mãos, mas Mia se adiantou e recuou.

Os que sobraram no quarto — no mínimo, cinco adolescentes escapuliram pela janela — lançavam-lhes olhares fulminantes.

— Não tem mais.

A porta se abriu de rompante. Era o policial.

— Eu estou esperando. Você — indicou Beauregard. — será o primeiro.

Beau rolou os olhos para Mia, que continuou a encará-lo, sem demonstrar nenhuma reação.

— Eu já volto.

O policial fechou a porta após Beauregard ter passado e ralhou, sem olhar diretamente para ele:

— Você mora num castelo, moleque. Nem consegui chegar até o banheiro. Faça o favor de me mostrar alguma sala pequena.

Beauregard assentiu, sentindo-se mais comportado do que antes. Os dois dobraram corredores, passaram por portas, atravessaram um salão até chegarem a sala de leitura. O policial pairava estupefato ao seu lado.

— Senta aí. — Beau mostrou duas poltronas de couro reclináveis.

— Obrigado. — ele tirou uma caneta do bolso da camiseta azul. — Eu só quero fazer algumas perguntas básicas.

‘‘Você conhecia Angelina Smiths?’’

Uma imagem trêmula de uma mulher com um bronzeado alaranjado artificial se formou em sua mente. Ah sim, Angelina Smiths, de trinta anos, que paquerava garotos da sua idade e andava de patins nas tardes de sexta-feira, com um top listrado e o cabelo new wave ondulando no ar à medida que aumentava a velocidade.

— Sim. Ela era da vizinhança. Já apareceu aqui em casa umas duas vezes, para tomar um chá e fofocar com a minha mãe. Mas faz tempo.

— Você sabe se elas brigaram?

Beauregard refletiu por um tempo. Angelina não tinha virtudes que sua mãe procurava em uma amiga; não usava vestidos Balenciaga, nem prendia o cabelo sedoso num coque, nem pintava seus lábios num tom vermelho bordô mórbido, e muito menos era casada com um dono de hotéis cinco estrelas ou de restaurantes parisienses cujas especialidades eram ostras e lesmas. Angelina parecia uma garota de quinze anos aprisionada no corpo enrugado e era casada com o gerente de um supermercado local, barrigudo e fedido.

— Na verdade, nem sei porquê eram amigas.

— Sabe se ela tinha algum inimigo? — perguntou enquanto rabiscava seu bloco de notas.

— Não, ela era muito maneira com todo mundo. Vivia falando com a gente, tentando nos azarar, pra ser sincero. E tinha umas amigas no bairro, também. Elas ficavam patinando juntas.

— Ela já se envolveu com algum de vocês? Romanticamente, quero dizer.

— Não, não com os meus amigos. — ele soltou uma risada. — Ia ser muito engraçado. Ninguém deu muita bola pros flertes dela.

— Certo. — disse distraído. — Viu a sra. Smiths no dia de sua morte?

— Ah, foi ela que morreu?

— Claro que sim, moleque, pensou que eu estava perguntando sobre ela aleatoriamente? Você anda se drogando?

— Não, imagine! Sou um menino de família, senhor. Mas não, não vi ela ontem.

O policial pareceu decepcionado com a resposta.

— Muito bem, vejo que você não tem muito o que falar sobre Angelina Smiths. Quero saber sobre a festa. Quando começou?

— Sei lá, às seis ou às sete, por aí.

— E quando vocês viram que a polícia chegou, à meia noite, fugiram. É uma atitude muito suspeita, não acha? Agora, eu quero que seja muito honesto comigo, Beauregard. Por que fizeram isso?

— Não tem nada a ver com a Angie Smiths.

— Sim, mas tem a ver com drogas ilícitas? Ou até mesmo, lícitas? Vocês são menores de idade e segundo alguns vizinhos, ninguém na festa parecia muito sóbrio.

— É claro, senhor policial. Tem sempre aqueles que gostam de ficar chapados e tal. Mas Percy e eu fizemos a festa com o intuito de reunir as pessoas que nós gostamos e interagir e ter momentos divertidos e demonstrar nosso afeto por elas. — Beauregard soltou um suspiro. — Todavia, as drogas são inevitáveis em festas. Aqueles jovens inconsequentes, sempre estragando o barato dos outros, com a água que passarinho não bebe e...

— Chega. Entendi. — ele escreveu algo no seu bloco e repetiu em voz alta: — ‘‘Beauregard Godfrey é um jovem sóbrio e altruísta.’’

— Isso aí, cara.

— Mas você ainda não me explicou por quê fugiram. — ele estreitou os traços rígidos do seu rosto comprido e barbudo.

— Nada. Só ficamos assustados.

Beauregard se recordava muito bem da hora em que ouviu a sirene inconfundível da viatura e de como o medo tomou conta do seu corpo. Tinha um saco de maconha dentro da boxer e seu hálito fedia a álcool. Ele nunca estivera tão sóbrio quanto naquele instante; os faróis acusadores se aproximando em câmera lenta enquanto tomava fôlego para gritar ‘‘Vamo dar o fora daqui!’’.

Sua lucidez aparentemente se dissipara quando chegaram a salvos em sua casa, porque não se lembrava de ter encontrado Mia. E então, novamente, ele sentiu suas mãos gelarem e o cérebro esquentar, sobrecarregado, o gosto do medo em sua língua. Onde estariam Floyd, Raven e Finn? Park provavelmente estaria em casa, com a sra. Wakahisa; no entanto, ele se preocupava com a sua irmã e Floyd, presos naquele armário de vassouras enquanto tudo acontecia. E Finn, o ingênuo Finn, deveria ter permanecido e vomitado ao ver o cadáver da mulher. Talvez os três estariam no departamento policial até agora, dormindo no chão duro e gélido.

— Por quê? — tentou não demonstrar tanto interesse ou temor. — Alguém foi preso?

— Não sei. Tem algum motivo para alguém ser preso?

O saco plástico de maconha apertado contra a sua genitália parecia ter ganhado peso.

— Não. — engoliu a seco. — Não, senhor. De modo algum.

— Então, tudo bem. — o policial abriu um sorriso amigável. — Pode ir e chamar a próxima, a esquisita. Mia Person.

— É pra já!

Animado, Beauregard saiu da sala e disparou pelos corredores, salões, portas e atalhos, refazendo o caminho até seu quarto. Abriu as portas de mogno com ansiedade, para se ver num cômodo vazio, com a janela aberta e as cortinas frenéticas, e mechas longas de cabelo rosa claro caídas sobre a sua cama, junto de uma tesoura afiada e reluzente, as lâminas molhadas com sangue.


***


Beauregard, depois de analisar a tesoura e fitar o quintal pela janela, fugiu de casa, não se importando em deixar o policial irrequieto esperando por alguém que não viria. Ele pensou num lugar seguro, e instantaneamente lembrou que tinha um irmão que o encobriria em qualquer situação. Mas como não conhecia sua namorada, não sabia onde esta morava.

Rumou para uma casa tão singela e tão decadente, que ninguém o procuraria lá. Correu até a residência dos Wakahisa como um maluco, de cueca e a camiseta havaiana da noite anterior, sem perceber que idosas enroladas em seus xales de lã o observavam enquanto regavam suas madressilvas.

O telhado estava sujo de titica de pombas e faltavam-lhe algumas telhas de quartzito. As colunas de madeira da balaustrada ameaçavam despencar há anos. A caixa de correio jazia na grama rala do jardim e as tentativas de restaurar a beleza do quintal eram visíveis — havia algumas rosas encurvadas próximas da sebe monstruosa e violetas secas e amareladas rodeando as escadas rangentes.

Beauregard tocou a campainha. Bateu na porta. Ele tremelicava de frio, mesmo que fosse verão.

— Park, porra! Abre essa porta.

Beau escutou pés batendo e um arrastar de roupa no carpete áspero. A porta se abriu e para a surpresa e espanto dele, Raven pairava como uma assombração no portal, encarando-o com uma expressão impaciente. Seu rosto estava de um amarelo-esverdeado e as olheiras faziam seus olhos parecerem saltados das órbitas.

— Ah, oi, Rae. Ainda bem que você tá legal. Eu achava que depois que a polícia...

— Tá, entra logo, eu não quero saber de mais nada dessa festa. — e desapareceu dentro da casa, envolta no seu roupão de arco-íris.

Beauregard subiu as escadas, saltando do quarto ao sexto degrau, sabendo que o quinto estava rachado ao meio. Olhou de esguelha para o quarto da sra. Wakahisa e percebeu que a cama estava feita e as persianas abertas — ela já deveria estar de pé e fazendo compras na mercearia do pai de Floyd. Antes de passar pelos aposentos de Raven, tampou o nariz com a camiseta — o cheiro de incensos de lavanda era insuportável. Park estava caminhando pelo corredor, meio agachado em virtude da sua altura. Ao se deparar com Beau, levou tamanho susto que bateu sua cabeça no teto.

— Beau? — engasgou ele. Ainda vestia o macacão de flanela que usava como pijama. — O que que você tá fazendo aqui?

— É que a polícia veio me fazer umas perguntas sobre a festa e tinha uma gata de cabelo rosa meio doida que parecia bem suspeita porque ninguém conhecia ela, mas eu tenho certeza de que a gente dormiu juntos. E daí ela deixou uma tesoura ensaguentada na minha cama e sumiu. Ah sim, e eu deixei um policial na minha casa esperando por ela.

— Você só se mete em encrenca, cara. — ele coçou a nuca. — Legal, agora precisa ir embora.

— Por quê? Tá esperando alguém?

— Não, eu só ia tomar uma ducha.

— Ok, cara, eu não vou espiar você no banheiro, só quero me esconder aqui até a minha mãe chegar em casa. Não quero estar lá quando ela surtar.

— B-Bom, na verdade, — começou ele. — eu estou, sim, esperando por alguém. Por que não vai se esconder na casa do Finn?

— Porque eu não quero. Que foi? Cê tá escondendo uma gatinha de mim?

— Não, juro que não! — ele recuou até a escuridão de seu quarto. — Só que agora, você precisa ir embora.

Beauregard se aproximou do amigo. O odor de meia suada era pior do que o aroma forte dos incensos de Raven.

— Beleza. — ele ergueu os braços, indicando derrota. — Mas eu tô magoado.

— Obrigado, cara. De verdade.

Park ficou incrivelmente aliviado após aquilo. Beauregard pensou em dar as costas, ligeiramente se virar, correr até Park, empurrá-lo e dar uma espiada no quarto. Contudo, o plano não lhe parecia correto. Ele só acenou para o seu amigo, girou os calcanhares e desceu as escadas, perturbado pelo seu estranho encontro.

Mas ainda precisava de um lugar para se esconder. E também queria falar com alguém sobre Mia e a tesoura ensaguentada e o seu repentino sumiço. Pensou em Raven, cheia de conselhos e abraços maternais. Todavia, encontrou-a na cozinha, com a cabeça sobre a mesa e uma tigela de granola diante dela; estava desacordada. Beauregard não quis despertá-la, portanto beijou o seu monte de cabelos emaranhados e foi embora.

Percy provavelmente estava encrencado com sua mãe e Finn não era a pessoa adequada para se conversar. Floyd ficaria importunando-o com perguntas como ‘‘Mas por que você foi pra casa da Rae? Você falou com ela? Ela falou sobre mim? O que vocês fizeram?’’. Quis desesperadamente falar com seu pai, mas ele estava milhas e milhas distante; pensou em seu irmão, porém a distância entre os dois não era nem espacial — ambos haviam parado de se falar quando Benedict entrou na faculdade.

Foi aí que ele avistou um milagre.

Teddy Turner andava como um deus pela rua, fumando seu cigarro costumeiro. Ele tinha pintado o cabelo de rosa e escondera a raíz loira com um boné preto virado pra trás. Se Beauregard fosse uma menina, sua temperatura corpórea teria aumentado e ele talvez desmaiaria de amor. No entanto, só atravessou a rua e correu até Teddy.

— Ô Ted! — ele o comprimentou com uns tapinhas no ombro. — Será que eu posso me esconder na sua casa?

— Beleza. Eu tava indo dar uns tapas. Sabe, fumar um baseado, ficar legal. Gretel e eu brigamos de novo. Daí eu trepei com a Daria McAllister. — soltou uma risada de descaso.

— Puta merda, cara, cê se meteu numa enrascada. O Gary vai ficar muito puto contigo.

— E daí, cara? Tanto faz. — e continuou: — Mas você sabe, né? A tonta é meio psicótica e ficou gritando a noite inteira. Ficou ameaçando se matar, e tudo mais.

— E aí? O que que você fez?

— Aí eu tive que acalmar ela de novo, se é que você me entende.

Os dois riram.

— Você é muito louco, Beau. Tá de cueca, cara.

— Eu sei, eu sei. — suspirou. — É que eu nem tive tempo hoje, sabe? A polícia veio em casa e começou a fazer umas perguntas. Aliás, você me viu com uma garota de cabelo rosa que nem o seu? Magrinha, meio esquisita? Eu acho que dormi com ela, mas nem lembro.

— Vi não, foi mal, cara.

— Que pena, você ia adorar ela. Eu acho que tô gamadão.

— Que nada, Beau. Eu sou louco pela Gretel. Amo ela pacas. — ele olhou para os próprios tênis e assumiu uma expressão mais tristonha. — Mas a gente vive brigando. É difícil.

— É a vida, né? Agora mudando de pato pra ganso, teu cabelo ficou muito da hora assim.

— Valeu, cara. — tirou mais uma tragada do seu cigarro antes de tacá-lo na calçada. — Vamo ficar na piscina porque se não fica cheiro na casa.

A casa de Teddy Turner era ainda mais decrépita do que a dos Wakahisa. As camisetas xadrez e as meias estampadas úmidas ficavam penduradas num varal no quintal da frente, expostas para toda vizinhança. A tinta branca das paredes externas descascava e hera crescia no telhado esburacado de ardósia. Às vezes Beauregard se envergonhava de ser o garoto mais rico do bairro — ou talvez da cidade.

— Ah, eu lembrei! Tenho uma das boas na minha cueca. — extraiu o saco de maconha da boxer. — Espero que não se importe.

— Massa. — ele rasgou o plástico com os dentes, alinhou a erva no papel e o enrolou. — Prontinho.

Beauregard gostava de matar tempo com Teddy. Ele era uma boa pessoa e Beau sentia dó das meninas, que amavam-no com tanta devoção e piedade, que não conseguiam enxergar aquele lado de Teddy Turner — que podia não ser etéreo ou utópico, mas continuava sendo gente fina e divertido.

— Conta mais sobre essa garota. — pediu ele, acendendo o baseado.

— Bom, ela roubou a minha camiseta da Sonic. E o seu nome é Mia Person.

Teddy franziu o cenho.

— O quê? Você conhece ela? — indagou Beau, levemente mais agressivo.

— Não, não. Sei lá. Continue.

— E daí ela começou a falar que a gente jogou xadrez e ouviu Pink Floyd e depois demos uns amassos e daí dormimos juntos. Mas o preocupante, cara, é que eu não lembro de nada disso.

— Que menina estranha. — e sorveu o baseado.

— Ela é como uma mariposa elusiva e iridescente. Mas sim, muito estranha.

Beau observou Teddy espirar a fumaça pelas narinas, como um dragão, e viu a nuvem cinzenta descrever floreios no ar e se dissipar. Beauregard havia prometido a Benedict, anos atrás, pegar leve nas drogas, mas ao aspirar aquele olor doce, não conseguiu resistir e tomou o baseado das mãos de Teddy. Soltou algumas baforadas e devolveu à ele. Sua nuca ficou mais leve e ele tombou a cabeça pra trás.

— A Gretel é boa, mas ela é louca. Mais do que a Daria. — balbuciou.

Beauregard preencheu seus pulmões com mais fumaça. Escutou harpas tocando ao longe e querubins voando acima das suas cabeças. A água da piscina suja e pequena foi substituída por mel viscoso, da cor dos seus olhos, que formava ondas e exalava a fragrância açucarada dos sonhos. Ele encarou o asfalto da rua e ouviu a voz do Arcanjo Gabriel anunciar: ‘‘Um desastre está prestes a acontecer’’.

E uma linda ninfa da floresta apareceu no quintal de Teddy Turner, vestindo a camiseta da Sonic Youth e os pés descalços sujos de terra. Era a garota dos seus sonhos, o anjo celestial acima do desconsolo da ilusão. Entretanto, alguma coisa não se encaixava. As suas lindas melenas cor de algodão doce, que outrora cobriam seus ombros com ondas rosas, agora caíam sobre a grama em anéis sedosos. Sua careca luziu com a luz do Sol. Ela começou a chorar. Lágrimas de sangue escorreram pelas suas bochechas de cera, como uma estátua da Virgem Maria.


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Notas finais do capítulo

oioi gente, eu fiquei muito feliz com os comentários e tal, então quis dar uma apressada na postagem!!
espero que tenham gostado (porque eu particularmente amo o Beau). não se esqueçam de deixar um review ou acompanhar se for novo(a) aqui :)
aliás, se houver algum erro, me avisem por MP, porque eu não tive tempo de conferirrr
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