A Cortesã escrita por Ami Ideas


Capítulo 9
Intempéries


Notas iniciais do capítulo

Este é um capítulo que eu chamo de "alavanca" mais conhecido por "Transição", pode parecer meio estranho, mas depois dele algumas coisas vão se transformar e outros segredos começarão a surgir. Espero que gostem.

Boa leitura,



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A Marquesa de Rothandberg leu os papéis atentamente vezes sem conta, os olhos negros viam os bens que o Infante atribuía a sua amiga. A propriedade, um espaço de terra e um valor fixo anual sobre a renda. Arqueou as sobrancelhas.

— São documentos reais. — Disse para o Intendente que acabara de carimbar os papéis e colocara o selo real. O homem era carrancudo, tinha pernas e braços curtos, e embora a sua fama de contador de moedas fosse além-fronteiras, o seu aspeto deixava a desejar.

— Fitzadam exigiu que assim fosse. — respondeu, sem deixar muitas explicações. Sabia que não deveria se meter em assuntos onde não era chamado. As conspirações a que fazia parte estavam longe de se comparar àquela. Abriu uma gaveta que se escondia por trás da mesa, e passou um pequeno saco de couro pesado. — A sua parte no combinado.

— Generoso. — Marie torceu os lábios, recebendo o pagamento. No entanto não estava satisfeita. Não sabia como Price pretendia jogar, mas estava em causa muita coisa para ele começar a bancar o altruísta. Fora o Rei que lhes encarregara daquela tarefa, não deveriam brincar e nem deixar que Charlie Dumont no final saísse bem daquela história. — Pois bem, levarei o acordo para que a Cortesã os assine. Cega demais para confiar em quem não conhece, e igualmente orgulhosa para acreditar nos seus atributos encantadores que levariam um Infante a esmorecer á seus pés!

O Intendente continuou quieto, alheio a situação que se transformava. Estava ali apenas para administrar o que lhe tinha sido ordenado, começando a ficar impaciente com aquela viúva perigosa a sua frente. Perguntava-se o que a prostituta tinha de tão importante que fora obrigada a sair da França e se refugiar no meio de um ninho de cobras.

Marie Du Rothandberg estava a fazer bem o seu papel, uma amiga dedicada e amorosa, sempre disposta a estar do lado de Charlie, mesmo que isso custasse a sua reputação. E apesar da herança deixada pelo falecido marido, algumas fortunas a mais seriam sempre bem-vindas. Esperava que Fitzadam Price não falhasse, e realmente caísse nos encantos da bela mulher. Isso sim, seria perigoso.

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Sem muito que fazer, Charlie passava os dias após assinar o acordo de tutelagem com o Infante, pelo jardim enorme que cobria a sua casa, este começava belo e bem cuidado, com rosas brancas e relva verde, e aos poucos se transformava num matagal afastado de sua propriedade. Muitas vezes se sentava ali sozinha a apreciar o pôr-do-sol que dava uma cor completamente surreal ao Castelo dos Reis que se situava um pedaço mais a frente. Pretendia com a solidão afastar-se da ribalta e fazer com que seu nome fosse menos lembrado no paladar amargo dos demais.

Naquele fim de tarde a Cortesã foi surpreendida ao encontrar uma companhia no lugar onde costumava ficar. Era magra como uma tábua, com os cabelos pretos lisos e compridos até ao centro das costas, os olhos eram escuros e grandes e a pele pálida demais quase parecia cinzenta. Uma imagem quase viva de Ana York, salve a cor dos olhos.

— Lizzie? — O coração da mulher da vida parou por alguns instantes. O passado inundou seus olhos, provocando sensações desconfortáveis. Aprendera a amar Elizabeth pelas palavras de sua Senhora, e pela devoção daquele que um dia amara.

— Vinha vê-la, senhora. — Falava devagar, como se abrir os lábios fosse um exercício difícil e doloroso. Tentou caminhar na sua direção mas tropeçou sobre os próprios pés sendo amparada pelos braços negros que um dia ampararam sua mãe.

— Por favor, meu nome é Charlie. — Reverenciou, olhando para a mulher frágil e doente. Lizzie sorriu para ela com afeto, deixando-se cair para a relva seca e junto ao corpo da Cortesã que a acompanhou.

— É o símbolo dos desejos nos olhos do Infante — afirmou com calma e paciência, os lábios secos e a face limpa. — Talvez se eu ficasse melhor, o meu marido pudesse me amar. O que pensais?

Realmente pensava muita coisa, mas nunca esperara ter Elizabeth em seus braços. A mais nova York tinha sempre sido alguém inalcançável, a figura endeusada pela família para a qual um dia trabalhara.

— Eu […]

— Elizabeth! — A voz de James York, fez saltar os olhos da cara de Charlie. Aquele dia realmente estava cheio de surpresas, afinal tinha tido o privilégio de estar diante de dois membros da família que um dia achara pertencer. James usava um casaco longo que voava contra o vento, o estilo marcado e os olhos azuis iguais aos de sua mãe, chamavam a atenção. — O que andarás a conspirar, senhora Dumont? Como conseguiste atrair minha irmã até si?

Não foi a prostituta que riu, e sim Lizzie que procurou se sentar com dificuldade. Todo seu corpo doía, e respirar também não era uma tarefa tão fácil, tinha conseguido escapar do Castelo mesmo na hora da medicação.

— Venha mais perto, irmão. — Chamou com a mão fina e óssea. — A nova cocote do Infante teria parecença com a mulher que me descrevias quando éramos felizes. A mulher que amavas.

Charlie e James cruzaram os olhares com uma certa amargura, e o Duque se apressou a vir para perto da irmã, e afasta-la do colo da Cortesã como se esta tivesse uma doença grave, e não a outra.

— Estaria muito longe de o ser. — afirmou entre dentes, a cara virada de lado como se encarar a jovem negra fosse algo que não deveria ser feito.— Tal mulher não passou de imaginação minha, Lizzie. Agora vamos.

Charlie prendeu o ar, se sentindo indignada. O maxilar estava tenso, e a mão agarrava a relva com força entre os dedos escuros. Teria jurado para si mesma nunca mais sentir nenhuma dor diante de James, não compreendia agora por que não conseguia.

— A culpa não foi minha, senhor York. Sabeis disso! — Confrontou-o perdendo a pouca razão que lhe restava. Os olhos escuros fixavam o Duque que virou-se para vê-la, ainda com a irmã em seus braços.

— Não pretendo dissertar sobre tal assunto, senhora. Só existe algo que nos une neste momento, e sabe o que é. — Cuspiu as palavras como veneno. Há dias que não dormia, não visitava o leito de sua noiva e só pensava naquela maldita mulher a sua frente.

— Se ele não tivesse…

— Ofereceste-te para ele, Charlotte! — James esqueceu Lizzie, dando lugar a sua raiva contida por tantos anos. A mão masculina tremia, e a face ficara toda vermelha. — Eu quase acreditei em suas palavras, durante anos tive dúvidas se não teria sido injusto, mas veja no que se tornou.

O desprezo não estava camuflado entre as palavras do Duque de Mountabatten, tal como a mágoa de Charlie estava visível e exalava por todos poros de seu corpo. Era óbvio que entre ambos havia muita coisa por dizer que fora simplesmente presumida e que teriam acreditado que o tempo curaria. O tempo não cura! Apenas faz com que a dor adormeça dentro e com que consigam viver com ela.

Duas empregadas surgiram com ares aliviados assim que viram o irmão da mulher do Infante com ela nos braços. Ajudaram a levar Lizzie de volta para o Castelo, olhando com curiosidade para a Cortesã de quando em vez. Era como se a mais nova York tivesse ido até ali com um único propósito.

— Não se importe quanto a isso Senhor York. O que eu me tornei foram pequenas consequências do passado. Promessas destruídas e traumas indesejados. — Charlie se levantou com o queixo para frente. O ar frágil de há pouco dera lugar a mulher confiante que estava habituada a ser.

— Não me importo! — bradou intensamente e deu meia volta preparado para ir embora atrás de sua amada irmã.

— Posso ajudar Lizzie tal como ajudei a Senhora de York certa vez. — garantiu. Fazia aquilo por Ana, tinha sido como uma mãe que nunca se lembrara ter. Viu o jovem York se virar apoplético, como se acabasse de ouvir um absurdo.

— Elizabeth já visitou os melhores médicos de toda Europa. Não seria aquela gente suja que trataria dela, isso, sem contar que minha mãe morreu.

— Morreu de desgosto. Isso lhe poderei garantir. — Volveu Charlie sem hesitar. Ainda deitou um olhar para James, antes de se virar em direção a sua casa. Não tinha visto o pôr-do-sol, não desfrutara da solidão naquela tarde que fora tudo, menos tediosa.

Voltou para casa onde Edith preparou o banho e a refeição. Depois de se preparar para dormir, Charlie pediu a criada que lhe acompanhasse a mesa, pois nem a Marquesa lhe viera visitar nos últimos dias. Lembrava-se agora por que jamais aceitava um tutor, pois a vida nos bordéis era muito mais agitada e cheia de gente. Fitzadam vivia metido em obrigações Reais, e o tempo que por ali passava era rápido e frio.

Charlie procurou um livro, e se sentou junto ao divã encostado na janela. Era um ritual já habitual pois dali conseguia ver a lua por cima do Castelo, e o rio iluminado, por baixo. No entanto a noite não fora diferente daquela tarde, no seu jardim rosado, um par de olhos azuis a encaravam atentamente. Os olhos se encaixaram em palavras não ditas, embora o momento tenha se quebrado tão rápido quanto viera. A Cortesã ainda se lembra de ouvir James gritar seu nome, mas a pancada que levara na testa fez com que tudo rapidamente se tornasse escuro. Escuro como o coração que batia em seu peito.


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Notas finais do capítulo

Intempéries: Figurado. Condições adversas; circunstancia infeliz; momento desfavorável; desgraça: é preciso enfrentar as intempéries da vida.

Não mordo, trinta e tal leitores fantasmas que não comentam. Não tenho medo. Apareçam na Caixa abaixo e façam uma pequena autora feliz. :)