La moitié...#Emison escrita por Zangada Bond


Capítulo 5
Reencontro


Notas iniciais do capítulo

Ola pessoinhas,tudo bem com voces? Demorei né? Mas ja estou aqui para atualizar e esse cap promete,espero que curtam e comentem o que acharem. Beijos de luz a todos.



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Aria precisa ir para casa a fim de preparar uns relatórios para uma reunião no dia seguinte, por isso nos despedimos do lado de fora do apartamento. Caminhando para o ponto de ônibus, de repente mudo de direção e me dirijo à biblioteca. Alguns dias antes, andando por Waterstones, me ocorreu que, se eu decidisse aprender italiano, poderia ver na biblioteca alguns livros para as aulas da noite nas quais vou me matricular em breve. E então, se eu encontrasse a Ali, seria por acaso. Só o destino dando um empurrãozinho útil.

Quando me aproximo, endireito a postura e fico mais alta uns quatro centímetros. Tento não olhar nem para a direita nem para a esquerda nem para ninguém quando entro, mas não resisto, e meus olhos começam a procurar de um lado a outro. Na biblioteca central a atmosfera é tão respeitosa quanto a de uma catedral, um lugar sereno onde seu QI sobe alguns pontos só de entrar no prédio. Ali dentro, pego os livros Buongiorno Italia!, que por acaso estão comigo, sentindo-me muito ridícula. OK, então... Nossa! Para um idioma romântico, é tudo mais difícil do que eu imaginei.

Depois de dez minutos de verbos intransitivos, eu mesma estou me tornando bem intransitiva.

Vamos tentar o italiano para ocasiões sociais: Reservar um quarto de hotel... Fazer apresentações... E minha mente já está vagando...

Flashback on...

Ali bateu à minha porta bem cedo no primeiro dia de aula, mas não tão cedo para chegar antes de Spencer, sempre a primeira a aparecer em todos os lugares. Eu estava bastante ansiosa, e meu rosto corava, como se tivesse tomado sol, com um pincel de blush enorme, fazendo biquinho na frente do espelhinho preso sobre a pia. Spence esticou as pernas de flamingo em cima da minha cama, segurando uma xícara grande cheia de chá. Era um alívio descobrir que as meninas de meu corredor não eram as malucas baladeiras loucas por sexo de meus pesadelos, mas apenas adolescentes ansiosas, com saudade da família, que estavam ali com caixas cheias de objetos trazidas de casa.

— Quem vem buscar você mesmo? — Spence pergunta.

— Uma menina do meu curso. Ela me entregou meu cartão de identificação.

— Ela? Ela é bacana?

— Parece ser muito bacana — digo, sem pensar.

— Bacana ‘bacana’?

Pensei no que responder. Nós éramos amigas havia apenas uma semana e, apesar de ela parecer legal, eu não queria descobrir o contrário de repente, quando ela começasse a gritar: “Minha amiga gosta de você!!” pelos corredores.

— Ela é bem bacana, sim — respondo com mais ênfase para ver se ela muda de assunto.

— Bacana quanto?

— Aceitável.

— Acho que você não vai ser capaz de fazer uma avaliação detalhada — Spence diz, olhando para nossa foto, Paige e eu, na minha mesa.

Foi uma foto que tiramos no bar, nós duas nos encolhendo para caber nela enquanto eu segurava a câmera apontada para nossos rostos. Nossas cabeças estavam encostadas, e os cabelos castanhos dela se misturavam aos meus castanhos, dificultando saber onde os de um começavam e os da outra terminavam. Paige e Emi. Emi e Paige.

Olhei para a imagem e senti um leve tremor. Nossa relação, recente e apaixonada, era instável, como as coisas novas costumam ser, e vivíamos separadas por 57 quilômetros. Fiquei muito contente quando ela me disse que desejava continuar me vendo.

Nós tínhamos nos conhecido alguns meses antes no meu bairro. Eu costumava sair com as amigas do colégio, e todas nós nos sentávamos bebendo cerveja e fazendo cara de apaixonadas para os sujeitos da banda que tocava ali. Eles tinham até carros e empregos, e os poucos anos a mais do que nós representavam um abismo de experiência e maturidade. Esse amor platônico perdurou por muito tempo. Eles viviam cercados de meninas, e era óbvio que gostavam das estudantes admiradoras que estavam sempre por perto. Paige era a única vocalista feminina entre o bando. Então, uma noite, eu acabei numa brincadeira, na qual duas pessoas se revezavam pedindo uma música e rebatendo com outra na jukebox. Sempre que eu escolhia uma música para tocar, a escolha de Paige seria outra que tivesse relação com o título. Se eu escolhesse Blue Monday, ela se levantava e tocava True Blue, e assim por diante. (Paige estava numa fase irônica. Pena que terminou muito tempo antes de planejarmos nosso casamento.)

Por fim, depois de muita risada, cochichos e moedas gastas, Paige se aproximou casualmente da minha mesa.

— Uma mulher como você merece uma bebida.

Em um momento de sangue frio que nunca consegui repetir, eu respondi:

— Uma mulher como você merece pagar.

Minhas amigas se surpreenderam, Paige riu, eu ganhei um malibu com limonada e o convite para me unir à banda no canto do bar que eles haviam monopolizado. Eu não conseguia acreditar, mas Paige parecia mesmo interessada em mim. Assim, a dinâmica a partir daquele momento foi a seguinte: ela, a mulher experiente, eu, a ingênua deslumbrada. Tempos depois, perguntei por que ela tinha ido atrás de mim aquela noite.

— Você era a garota mais bonita do lugar — ela respondeu. — E eu tinha um monte de moedas.

Escutei uma batida na porta do quarto, e Spence se levantou para atender correndo.

— Desculpe. Errei o quarto — uma voz feminina disse.

— Não, é aqui mesmo — Spence se animou, abrindo a porta para que Ali pudesse me ver, e vice-versa.

— Ah — Ali começou, sorrindo. — Eu sei que rolou um monte de coisas ontem com aquela confusão dos cartões, mas eu tinha certeza de que você não era loira.

Spence sorriu, tentando decidir se as palavras sugeriam que ela preferia loiras ou morenas.

Ali me olhou, com certeza tentando entender por que eu estava vermelha como um pimentão e se eu faria as apresentações.

— Spence, Ali, Ali, Spence. Vamos indo?

Ali disse “oi”, e Spencer cantarolou um “olá!”, e eu me perguntei se queria ver A Primeira Pessoa que Conheci nos Corredores com a Primeira Pessoa que Conheci no meu Curso. Suspeitei que não, pensando que seria complicado para mim se desse errado e solitário para mim se desse certo.

— Tenham um bom dia — Spence disse, com um tom de sensualidade na voz que não combinava com o horário do café da manhã, e então saiu pela minha porta, dirigindo-se para o quarto dela.

Peguei minha mochila e tranquei a porta. Nós tínhamos quase atravessado o corredor todo sem incidentes quando Spence me chamou:

— Oh, Emily, sobre o assunto que estávamos discutindo: ‘aceitável’ não era o adjetivo certo. Se você vai estudar Português, é bom que saiba disso!

— Tchau, Spence! — gritei, sentindo meu estômago revirar.

— O que foi isso? — Ali perguntou.

— Nada — murmurei, pensando que não precisava do bendito blush.

Ao ver a fila quilométrica à espera dos ônibus, Ali sugeriu que fôssemos andando até os prédios da faculdade. Passamos pelas folhas amareladas enquanto os carros percorriam a Oxford Road, e fomos compartilhando os detalhes de nossas vidas: de onde éramos, quais as nossas matérias curriculares, falamos sobre família, passatempos, vários assuntos.

Ali, do sul de Londres, foi criado pela mãe com o irmão mais novo, pois seu pai os abandonou quando ele tinha 10 anos. Quando passamos pelo prédio que parece uma pilha de torrada de concreto, eu já sabia que ela havia quebrado o braço ao cair de um muro, aos 12 anos. Ficou tanto tempo deitada que assistia à televisão o dia todo e, por desespero, leu tudo que havia na casa, todos os clássicos da Folio Society e até os romances de Catherine Cooksons, que pertenciam à mãe, até subornar o irmão para que ele fosse à biblioteca para ela. Uma clávicula luxada despertou seu entusiasmo pela literatura. Não lhe contei que o meu entusiasmo vinha do fato de não ser convidada para subir em muros com muita frequência.

— Você não tem sotaque do norte — ela disse, depois de eu contar um pouco sobre minhas origens.

— É o sotaque de Rosewood, o que você espera? Aposto que você acha que o Norte começa em Leicester.

Ela riu. Fez uma pausa.

— Minha namorada diz que eu não devo voltar para casa com sotaque de Manchester — comentei.

— Ela é de Rosewood?

— Sim. — Não consegui me controlar. — Ela tem uma banda.

— Legal.

Percebi a sinceridade respeitosa de Ali e a ausência de piadinhas a respeito de relacionamentos a distância não durarem, e fiquei contente por isso.

— Vocês estão namorando a distância?

— Sim.

— Boa sorte para ambos. Eu não poderia manter um relacionamento assim na nossa idade.

— Não? — perguntei.

— Este é o momento de aproveitar e se divertir. Não me entenda mal porque, quando eu me acertar com alguém, serei totalmente correta. Mas até lá...

— Você vai colecionar muitos porta-copos — terminei por ela, e sorrimos.

Assim que nos aproximamos do prédio da faculdade, Ali tirou um papel dobrado com uma planta baixa de dentro do bolso. Percebi que as marcas de dobra ainda estavam fortes, enquanto o meu papel já estava se desintegrando como papiro antigo depois de tê-lo dobrado e desdobrado tantas vezes, com nervosismo e as mãos suadas.

— Bem, onde devemos nos inscrever? — ela perguntou. Então abaixamos a cabeça juntas, olhando para o retângulo laranja fluorescente, tentando nos orientar. Ali virou o papel e apertou os olhos um pouco mais.

— Faz ideia,babe?

Minha alegria sumiu, e eu me senti envergonhada. Quantas garotas ela tinha conhecido no dia anterior?

— Meu nome é Emily — comentei, tensa.

— Vai ser sempre “Babe” para mim.

Nossa conversa a respeito do passaporte voltou e, aliviada, eu ri alto demais. Ela deve ter percebido a minha estranheza, porque sua risada também foi de alívio.

As melhores amizades costumam começar do nada, e nem sequer nos lembramos do ponto de partida. Mas houve um clique definitivo naquele momento, e eu soube que não nos separaríamos educadamente assim que pegássemos nossos horários de aula.

Olhei o mapa de novo e, quando me inclinei para a frente, senti o perfume de baunilha que ela havia usado. Apontei com confiança para uma janela.

— Aqui. Sala C11.

Nem preciso dizer que eu estava enganada e que nos atrasamos.

Flashback off...

****

A esperança derreteu, juntou-se numa poça a meus pés e evaporou pelo teto da Biblioteca Central, unindo-se à nuvem de tristeza coletiva na atmosfera da Terra. Nada de Ali, apenas a prova inevitável do quanto eu queria vê-la. Pensando melhor, não tenho certeza de que Spence não se enganou. Ela usa lentes de contato e começou com aquela coisa de gente de meia-idade de não saber distinguir garotas e garotas góticos.

Se Alison estava ali, deve ter feito apenas uma visita rápida para alguma pesquisa, e agora voltou para sua casa, longe, checando as correspondências, dizendo ‘oi’ para a mulher igualmente poderosa com quem vive. Totalmente alheia ao fato de que uma mulher que ela já conheceu se porta tão ridiculamente a ponto de estar sentada a 300 quilômetros da casa dela relendo a seguinte frase: “Com licença, onde ficam os Degraus Espanhóis?”, em uma tentativa de parecer complicada e atraente.

Saio de onde estou para andar pela sala, tentando parecer totalmente concentrada em minha aprendizagem. O chão de parquet marrom-claro é tão reluzente que brilha como uma miragem.

Ao passar os dedos pela coluna dos livros, eu me sobressalto ao ver uma mulher de cabelos loiros, provavelmente de 30 anos, de costas para mim. Está sentada a uma mesa entre as estantes que contornam a sala, de modo que, se eu olhasse por cima, as estantes pareceriam os raios de uma roda.

É ela. É ela. Ai, meu Deus, é ela.

Meu coração bate tão acelerado que é como se alguém com conhecimento de medicina tivesse pressionado minhas costelas para tentar me ressuscitar. Passo por onde ela está e finjo encontrar um livro interessante perto da mesa bem ali. Pego o exemplar e a observo. De modo pouco convincente, viro-me meio distraída enquanto estou lendo, e fico de frente para ela. Meu movimento é tão indiscreto que seria melhor jogar um aviãozinho de papel na mulher e me abaixar. Arrisco uma olhadela. Ela me olha por um momento, ajustando o aro dos óculos.

Não é ela. Uma mochila com tiras refletoras está perto dos pés dela, e as pernas da calça estão envoltas por uma presilha de ciclista. Fico pensando que é a mesma mulher que Spence também deve ter visto, e decido juntar as minhas coisas. Guardo tudo em segundos, sem me preocupar em ser interessante, sabendo que Alison nunca vai aparecer ali.

Eu não deveria ter vindo. Estou agindo de modo incomum e muito irracional devido ao estresse pós-traumático de ter terminado com Paige. Nem sequer sei o que diria a Ali ou por que eu desejaria vê-la. Na verdade, estou mentindo. Sei por que quero vê-la, mas os motivos não se justificam.

Um monte de pessoas e casacos pesados e chapéus, que parecem estar num tour guiado, bloqueia a minha saída da biblioteca. Impaciente, eu me afasto e dou a volta por eles. Distraída, vou de encontro a alguém que está vindo na outra direção.

— Desculpe — resmungo.

— Desculpe — ela murmura também, daquele modo reflexivo britânico de se desculpar por alguém ter sido obrigado a pedir desculpas.

Para realizarmos o breve tango de nos afastarmos, trocamos um breve olhar. De jeito nenhum essa mulher pode ser o Ali. Eu saberia, eu sentiria se ela estivesse tão perto. Mas olho para o rosto dela mesmo assim. No primeiro momento, registro “desconhecida”, mas logo depois se transforma em uma face familiar, numa sensação repentina de revelação.

Ai, meu Jesus Jesuzinho! É ela. É ELA! Retirada de minhas lembranças e bem ali, no mundo real, em full HD. Os cabelos, na época da faculdade um pouco mais curtos, e estão agora mais longos,e ali estão as características inconfundíveis, e, observando-as, sou transportada a uma década no passado. E, apesar de ter sido uma longa espera por um reaparecimento, Spence tem razão: ela continua de tirar o fôlego.

Desapareceu a carinha de bebê em formação que todos tínhamos no passado, e tornou-se ainda mais bonita. Há algumas marcas de expressão no canto dos olhos, os lábios estão mais sérios e o corpo, mudou pouco se comparado ao de antes.

É uma sensação muito estranha olhar para alguém que, ao mesmo tempo, conheço bem e não conheço nada. Ela também está me encarando, ainda que o olhar seja indecifrável: ela pode estar olhando porque estou olhando. Por um instante terrível, penso que ou Ali não vai me reconhecer, ou, pior ainda, vai fingir que não me reconhece. Mas ela não decola.

Entreabre os lábios e faz uma pausa, como se tivesse de lembrar com falz para produzir os sons.

— Emily?

— Alison? — (Como se eu não partido com uma vantagem injusta nessa brincadeira.)

Ela mantém as sobrancelhas franzidas, incrédula, mas sorri, e sou tomada por uma onda de alívio e alegria.

— Ai, meu Deus, não acredito. Como você está? — ela pergunta, com um tom de voz suave, como se nossas vozes fossem alcançar o andar de cima da biblioteca.

— Estou bem — respondo. — E você?

— Estou bem também. Meio surpresa neste momento, mas, tirando isso, bem.— Nós rimos, ainda de olhos arregalados. — Que loucura — ela continua. Na verdade, mais do que ela pensa.

— Surreal — concordo, tentando criar um clima de familiaridade, como quando ando dentro do quarto escuro, procurando me lembrar de onde fica cada coisa.

— Você mora em Manchester? — ela pergunta.

— Sim. Mas estou vendendo minha casa, prestes a me mudar para o centro. E você?

— Tambem. Eu me mudei de Londres no mês passado. — Ela me mostra uma maleta.

— Sou uma advogada chata, acredita?

— É mesmo? Você fez curso?

— Não, eu vou na lábia. Achei que, em determinado momento, depois de ver muito seriado na TV, poderia começar. Como no filme Prenda-me se for capaz.

Ela fala com tanta seriedade que fico chocada, e demoro um pouco para entender que se trata de uma piada.

— Legal — digo, assentindo. E então, rapidamente: — Sou jornalista. Mais ou menos jornalista de tribunais para o jornal da região.

— Eu sabia que você acabaria usando o diploma de Letras.

— Eu não diria isso. Não tenho que aplicar o que aprendi quando estou fazendo a cobertura do milésimo roubo de carro do ano.

— Por que está aqui? — Assusto-me com a pergunta dela, por causa de minha consciência pesada. — Aqui na biblioteca? — Ali acrescenta.

— Ah... Estou estudando, aprendendo italiano — respondo, gostando de como a revelação parece um investimento em mim mesma, apesar de me retrair por dentro. — E você?

— Exames. Essas maldições nunca terminam. Pelo menos isso significa que vou receber mais dinheiro.

As pessoas de casacos desviam de nós, e eu sei que logo seremos interrompidos ali no meio.

— Hum....Tem tempo para tomar um café? — pergunto, como se fosse uma ideia repentina, e fico tensa temendo que ela me dê uma desculpa.

— Se estamos há uma década sem nos ver, pode ser que precisemos de dois cafés — Alison responde sem pestanejar.

Estou radiante. Os mendigos lá de fora poderiam se reunir ao meu redor para esquentar as mãos com o calor que me invade.

***

Nervosas, mantemos uma conversa fiada sobre cursos, reais e fictícios, até chegarmos ao café meio vazio. Ela vai comprar os cafés, cappuccino para mim, e de coador para ela. Eu me sento à mesa, passo as mãos suadas no vestido e observo Alison na fila.

Ela enfia a mão no bolso da calça à procura de troco, por baixo de um casaco cinza em estilo militar que parece ter sido caro. Observo que Ali continua se vestindo como se protagonizasse um filme sobre si mesmo. Parece totalmente desnecessário andar assim quando se é advogada.

Ela deveria estar em um iate, fazendo um comercial de perfume, e não na vida comum com o resto de nós, destacando-se.

Não era tanto a aparência de Alison que enlouquecia as meninas, penso agora, ainda que ajudasse muito. Ele incorporava o que talvez os atores chamem de “presença”. O que Paige chama de ‘andar por aí como se conhecesse tudo.’ Ela se move como se suas articulações fossem mais flexíveis do que as das outras pessoas. E tem um humor ácido: comentários leves e rápidos totalmente inesperados por virem de alguém tão bonita. Estamos acostumadas a esperar que os bonitos sejam menos inteligentes, para equilibrar as coisas.

Mas, enquanto a olho e sinto que derreto por dentro, ela está conversando com a mulher de meia-idade que serve os café, totalmente normal e à vontade. Para mim, é um fato gigantesco.

Para ela, sou uma nota de rodapé na história. Essa enorme disparidade cheira a grande problema. Se isso fosse um conto de fadas, eu estaria completamente sedenta diante de uma garrafa com um rótulo de VENENO. Por enquanto, o gosto vai ser de cappuccino.

Quando Alison volta e coloca a xícara na minha frente, ela diz:

— Sem açúcar, certo?

Eu concordo, feliz por ela se lembrar. Então, vejo um detalhe novo e não trivial nela: uma aliança simples e prateada no terceiro dedo da mão esquerda. É claro que só seria assim, eu disse isso a mim mesma várias vezes, mas ainda tenho a sensação de que acabo de levar um tapa na cara.

— Sabe, os italianos só tomam cappuccinos de manhã. É a bebida do café da manhã — digo, sem qualquer motivo aparente.

— Você aprendeu isso em seu curso? — Ali pergunta de modo agradável.

— Hum... sim. — É neste momento que o destino peida na minha cara e a esposa de Ali, por acaso, tem ascendência italiana. Ela diz algumas frases completas, e eu finjo que estou apenas iniciando o curso. A esposa de Alison.

— Você ficou dentro de uma câmara criogênica desde a faculdade? — Ali pergunta. — Está igualzinha. É meio assustador.

Fico aliviada por não estar desarrumada, e tento não corar além do necessário diante do elogio implícito.

— A luz do sol, que causa envelhecimento, não entra nos tribunais.

— Só o seu cabelo está diferente, claro — ela afirma, fazendo um gesto com a mão no pescoço para indicar que está mais curto. Era mais longo na faculdade, mas eu o cortei um pouco abaixo dos ombros e dei luzes nas pontas,para reforçar a aparência mais profissional, depois de algumas ocasiões em que fui confundida, dentro do tribunal, com a namorada do réu.

Prendo uma mecha atrás da orelha, meio sem perceber.

— Ah, sim.- Falo sem jeito.

— Ficou bom para você — ela diz com delicadeza.

— Obrigada. Você também está ótima. — Respiro profundamente. — Então, conte-me sobre a sua vida. Casada, filhos?

— Casada, sim — Alison confirma.

— Fantástico! — esforço-me para que cada sílaba saia bem clara e feliz. — Parabéns.

— Obrigado. Olívia e eu comemoramos dois anos de casadas no mês passado.

O nome me dá uma pontada. Todas as garotas mais atiradinhas de nosso curso se chamavam Olívia, Tabitha e Verônica, e nós costumávamos rir delas. E o traidora casou-se com uma. Por um momento, gostaria de ter um Toby com quem me vingar.

— Muito bem — digo. — Vocês se casaram com toda a pompa?

— Ai, não. — Ali se remexe. — Nós nos casamos no cartório em Mary lebone. Contratamos um buffet e fizemos uma recepção aos padrinhos em um salão em cima de um bar. Foi um bom salão, claro, a Liv escolheu. Todo bonito, com crianças correndo no jardim depois, o tempo estava ótimo.— Balanço a cabeça e ela de repente acrescenta: — Meio clichê, aquela coisa de alegria e união, mas gostamos.

— Que ótimo. — Parece ótimo mesmo. E bacana, e romântico. Mas não quero saber o que a noiva vestiu nem quero ver as fotos. Está bem, quero, sim.

— Sim, foi. Nada de buffet caríssimo, DJ com sotaque americano falso, três milhões de parentes comendo um banquete que custou três milhões, nada dessas bobagens.

— É só uma libra por cabeça. Orçamento bem apertado.

Alison sorri de modo distraído, e vejo que ela está se lembrando de coisas que nada têm a ver com minha piadinha sem graça, as quais ela não vai dizer.

Por um segundo, ao perceber seu desconforto, eu analiso meu próprio masoquismo. Quero mesmo ficar sentada aqui escutando Ali me contar que jurou viver o resto de seus dias com outra pessoa? Será que eu não poderia ter adivinhado que isso ocorreria? Eu queria encontrar uma mulher arrasada? Não. Queria que ela estivesse feliz, e isso também doeria. Por essa razão essa ideia é tão ruim. Um dos motivos.

Bebericamos nosso café. Discretamente, limpo da boca um possível bigode de chocolate.

Ela continua:

— Filhos, ainda não.

— Está conseguindo gastar mais?

Eu me lembro dos dias em que eu e Ali íamos às lojas de roupas, e eu esperava do lado de fora dos provadores. Ela até aceitava meus conselhos a respeito do que comprar, era como se minha Barbie tivesse ganhado vida.

— Ah, sim — Ali responde. — Tenho que esconder minhas sacolas da Liv, por ser quem ganha mais. É castrador. E você? Casada? — Ela pega a colher e mexe o café, apesar de não ter acrescentado açúcar, e olha para baixo por um momento. — Casou-se com Paige?

Se estivéssemos ligados a polígrafos, a linha se alteraria toda.

— Ficamos noivas por um tempo. Mas, na verdade, acabamos de romper.

Ali parece verdadeiramente chateada. Ótimo. Saímos da alegria e caímos de cara na tristeza.

— Puxa! Sinto muito.

— Obrigada. Está tudo bem.

— Você deveria ter interrompido o papo sobre casamento.

— Eu que perguntei. Está tudo bem.

— É por isso que vai se mudar?

— Sim.

— Não tem filhos?

— Não.

— Que engraçado, eu tinha certeza de que você tinha filhos, não sei por quê — Ali diz, sem rodeios. — Uma menininha com os problemas de atitude da mãe, e as mesmas luvas bobas.

Ela me lança um sorrisinho e olha dentro da xícara de novo. O calor daquilo — a referência a algo desconhecido cujo sentido apenas nós dois entenderíamos, o fato que isso revelar que ela pensou em mim — faz com que eu emita um som baixo e abafado que se assemelha a uma risada. E então, um segundo depois, sou invadida pela tristeza. Como se meu peito estivesse cheio de água.

Evitamos nos olhar e continuamos falando. Alison me conta a respeito do escritório de advocacia para o qual trabalha, e que sua esposa também é advogada. Ela foi transferida de Londres para um escritório em Manchester para poder ficar com ela. Elas se conheceram em um jantar da Sociedade de Advocacia. Salão cheio, black-tie.

A cena percorre minha mente como o trailer de um filme de Richard Curtis que não quero ver.

Ela conclui, de modo brincalhão:

— Se eu sou uma advogada, e você, uma jornalista de tribunal, acho que não deveríamos estar conversando!

— Depende. Qual é a sua especialidade?

— Vara da família.

— Divórcios, essas coisas?

— Sim, acordos. Às vezes é pesado. Outras vezes, quando consigo o resultado certo, satisfação pesada.

Eu compreendo por que ela escolheu essa área, e ela sabe que compreendo, então só concordo.

— Acho que haveria mais problemas em conversar com uma jornalista se você estivesse na área criminal.

— Não consegui acompanhar. O amigo que conseguiu a vaga para mim aqui é advogado criminalista. Ele trabalha o tempo todo, num ritmo massacrante. Na verdade, ele estava me contando que precisa conversar com a imprensa sobre um caso. Posso lhe dar seu nome?

— Claro — respondo, disposta a agradar e a conseguir uma ligação.

Terminamos um café e, apesar de eu me oferecer para comprar mais um, Alison olha o relógio e diz que adoraria, mas que precisa ir andando.

— Sim, eu também, agora que você disse — minto, virando o relógio e olhando-o sem ver a hora.

Ali aguarda com paciência enquanto visto meu casaco. Espero que ela não esteja notando os cinco quilos que ganhei desde a faculdade. (“Cinco quilos”, Paige costumava brincar. “Cinco quilos que pesam trinta?”)

Saímos juntas.

— Foi ótimo encontrar você, Emily. Não acredito que já se passaram dez anos. Inacreditável.

— Sim, inacreditável — concordo.

— Precisamos manter contato. Eu e a Liv não conhecemos muitas pessoas aqui. Você pode nos dizer quais são os bons lugares de Manchester hoje em dia.

— Adoraria! — Como se eu soubesse. — Vou chamar a Spencer, a Aria e o Luiz também.

— Puxa! Você ainda tem contato com eles?

— Sim. Nós nos encontramos sempre.

— Isso é muito legal — Ali afirma, mas, ainda assim, sinto que é outro exemplo de minha inércia de dez anos, como se eu tivesse parado no tempo.— Vou lhe contar o que ficar resolvido nessa história. Qual é o seu número?

Ali também diz os números, e eu vou tentando me lembrar deles na sequência certa, ainda invadida pela adrenalina.

Ela olha para o relógio de novo.

— Droga, estou atrasada. E você? Precisa que eu a acompanhe ao ponto?

— É dobrando a esquina. Pode ir.

— Certeza?

— Sim, obrigada.

— Até breve, Emily. Eu lhe telefono.

Ela se aproxima e me dá um beijo no rosto. Prendo a respiração com o choque ao sentir sua pele quente contra a minha. Em seguida, bem um momento terrivelmente estranho no qual ela me dá mais um beijo na outra face, no estilo europeu sofisticado. Eu não estava esperando e quase batemos os rostos, e preciso apoiar a mão no ombro dela para me segurar, e entro em pânico temendo que esse gesto pareça muito atirado, e me corrijo dando um pulo para trás.

— Até mais! — digo, mas na verdade quero fazer tudo de novo sem ser tão tola, como uma criança mandona comandando uma peça no palco. — Você está aqui parada. Vai embora!

Caminho até o ponto de ônibus meio em transe, com estrelas de desenho animado girando ao redor de minha cabeça, e os dois pontos beijados em meu rosto ardem. Sinto a emoção por tê-la visto — e ela quer me ver de novo! — misturada com a confirmação decepcionante de que sua vida está linda, alegre, funcionando normalmente, e a minha, não.

Uma hora depois de chegar em casa, quando o sorriso já desapareceu de meu rosto e estou vendo a boa e velha TV no quarto extra, deixo as lágrimas rolarem. Quando a barragem se rompe, a água invade. Casada. Feliz. Olívia. E o lance do buffet?

Sinto-me como se tivesse acordado de um coma, trazida de volta à vida com a minha música preferida. Não sei se gosto do que vejo de minha cama. A experiência de encontrar Ali de novo é a completa definição da palavra “confusão”. E, então, duas perguntas muito claras se formam nas lágrimas, na meleca de nariz e no turbilhão que me toma: Como vou me sentir se ela não telefonar? E de que vai adiantar se ela telefonar?


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